Campus impresso - ano 43 número 393

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Foto: Monique Rodrigues

Campus

Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013 | Número 393 Ano 43

Sem o selo de qualidade Metade da carne bovina consumida no Distrito Federal tem origem clandestina. Armadilhas para o consumidor estão em feiras, açougues e supermercados Legenda express

Menina aqui, menino ali

Câmera e cartola

Tradução da sua série favorita em uma semana, ou seu download de volta (pág. 3)

Lojas de brinquedo em Brasília dividem produtos por gênero e reforçam estereótipos (pág. 6 e 7)

Ao usar o próprio corpo como suporte, Ricardo Joffily se transforma no Photoman (pág. 8)


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Campus | Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013

Carta do Editor João Bosco Lacerda O processo de produção de um jornal muitas vezes passa por imprevistos. Repórteres, como qualquer pessoa, estão sujeitos a problemas pessoais. Cabe à redação resolver os imprevistos da melhor forma possível, o que, em geral, resulta em grande aprendizado. Sendo assim, esta edição do Campus apresenta excepcio-

nalmente duas matérias em páginas duplas. A primeira delas, O mundo em azul e rosa, da repórter Marina Baldoni Amaral, cumpriu com maestria dupla função. Destinada a apenas uma página, a matéria evoluiu para uma intrigante radiografia de uma estrutura maniqueísta na venda de brinquedos que divide meninos e meninas e dobrou de tamanho sem que a qualidade fosse prejudicada.

A outra matéria de duas páginas, Sem o selo de qualidade, das repórteres Isabela Bonfim e Ananda Borges, tem como tema a carne clandestina presente nos açougues e supermercados do Distrito Federal, e os potenciais problemas que podem ser causados ao consumidor. Desmistifica também alguns dos temores que muitos têm em relação à carne vendida em feiras, e calcula o

Ombudskvinna* Paloma Suertegaray A edição nº 392 do jornallaboratório Campus melhorou em vários aspectos, como precisão das informações e estrutura dos textos. As chamadas de capa são concisas e mais eficientes do que as do número 390. A reportagem Admirável micromundo traz um tema inusitado, porém não aprofunda os pontos

prejuízo que o não pagamento de impostos sobre a carne traz ao Governo do Distrito Federal. Coube a Pedro Menezes em Legendas em 3,2,1... encontrar personagens quase invisíveis, que trabalham sob a proteção de codinomes e abdicam a noites de sono para traduzir em menos de 24 horas seriados cujo conteúdo é produzido em inglês. Assim, alimentam a paixão de aficionados

em séries, um enorme grupo entre os usuários de internet. A Página 8 foi dedicada a um perfil de um curioso personagem brasiliense. Quem frequenta os bares da cidade já deve ter cruzado com um fotógrafo de cartola brilhante e tela no dorso. Muitos conhecem o Photoman. Pouca gente conhece, no entanto, Ricardo Joffily, inventor, funcionário público e pai de três filhos.

*Feminino do termo sueco ombudsman, que significa “provedor de justiça”, discute a produção do jornal a partir da perspectiva do leitor.

mais curiosos. Os entrevistados dizem dedicar horas às micronações. Fazendo o que exatamente? Fundamentada num levantamento bem realizado, a matéria Brasília: quase uma cidade parque denota o cuidado das repórteres em descrever em detalhes a situação de diferentes parques. A diagramação, no entanto, dá a impressão de que faltou texto para preencher as páginas.

Em O Brasil que treme, observa-se uma ótima organização do texto. Mesmo que dificuldades para viajar até os lugares mencionados sejam reconhecidas, a reportagem ficou devendo mais personagens. Os brasileiros que vivem os tremores num país conhecido pela suposta ausência de terremotos são a parte mais interessante do assunto. A presença dessas fontes afastaria o tom de

livro didático que às vezes toma conta do texto. A proposta do perfil da Página 8 está confusa. Não dá pra saber por que a Elenita foi escolhida como personagem. É porque perdeu um filho? Ou porque imigrou para Estrutural? É por estar em depressão? Um problema está presente, em maior ou menor medida, em todas as peças desta edição: o tom

Hoje, quase sete anos depois, a pirataria de produtos audiovisuais está em decadência. Com o aumento do número de brasileiros com acesso à internet, filmes, músicas e seriados de TV são “baixados” rapidamente e a compra de CDs e DVDs piratas vem caindo gradualmente. É bastante comum os aficionados fazerem o download de seriados assim que são disponibilizados na rede, em inglês e sem legenda, que é baixada depois, em

sites brasileiros especializados no assunto. A matéria Legenda em 3, 2, 1... traz os bastidores desse fenômeno e coloca em foco a figura dos legenders. O aspecto legal da prática de legenda informal de seriados e filmes ainda não está claro. Segundo a Associação Antipirataria de Cinema e Música (APCM), a tradução de uma obra só pode ser feita após dada a autorização do autor. Porém, segundo o artigo 184 do Código Penal Brasileiro, a

atividade só é considerada ilegal se visar lucro. É crime ou não é? Por via das dúvidas, a maioria dos legenders prefere usar um codinome para manter o anonimato.

burocrático. Os personagens são os números e as pessoas passam pelas matérias apenas para ilustrálos, sem realmente dar destaque à dimensão humana das pautas (isso fica bastante evidente, por exemplo, em Entre a falta e o excesso). O espaço de um jornal laboratório é a grande oportunidade para correr riscos, ir além do texto-relatório e fazer os primeiros experimentos no terreno da grande reportagem.

Memória Publicada no Campus em maio de 2006, na edição de número 305, a reportagem intitulada É pirata ou não é? tratava de pirataria: a prática ilegal de cópia, venda ou distribuição de material sem o devido pagamento dos direitos autorais, de marca ou de propriedade intelectual e de indústria. “As ações do governo são muito importantes, mas sem o papel do consumidor a polícia não conseguirá acabar com a pirataria”, escreveu Ana Paula Feliciano.

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Editor chefe: João Bosco Lacerda Secretária de redação: Vanessa Arcoverde Editores: Dayana Hashim, Jorge Macedo e Rafaela Lima Repórteres: Ananda Borges, Isabela Bonfim, Marina Baldoni Amaral, Monique Rodrigues, Pedro Menezes e Talita Amorim Diretora de arte e foto: Ramilla Rodrigues Fotógrafos: Guilherme Alves, Monique Rodrigues e Rogerio Verçoza Diagramadores: Gabriela Alcuri, Luana Luizy e Rafaella Felix Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha Stemler, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde Professores: Solano Nascimento e Sérgio de Sá Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares

Homenagem Durante a produção desta edição do Campus, fomos surpreendidos pela tragédia que emocionou todo o país no dia 27 de janeiro. Em homenagem aos colegas mortos em Santa Maria, Rio Grande do Sul, esta edição conta com uma tarja preta em todas as suas páginas. A redação do jornal envia seus sentimentos a todos aqueles afetados pela tragédia.

Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910.900 E-mail: campus@unb.br Diagramação: Ramilla Rodrigues


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Legendary

Legendas em 3, 2, 1... Aficionados por séries televisivas trocam o sono por tradução em equipe e satisfazem legião de fãs na internet Pedro Menezes

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dias após exibição do episódio é o prazo máximo para a postagem da legenda no Legendas.tv Organizados em equipes, cada legender fica responsável por traduzir e legendar um trecho específico do episódio. “É necessário, antes do inglês, saber bem português, para então poder encontrar boas soluções”, diz PenélopeC., 27 anos, mestranda em Administração, tradutora e revisora da equipe InSUBs. Em séries de 40 minutos, por exemplo, há geralmente cinco tradutores; e, dependendo da popularidade do seriado, variam os prazos de entrega dos trechos ao revisor, que irá juntar todas essas partes.

35 tradutores. Eles são responsáveis por legendar, além de Arrow, 25 outras séries, como Two and a half men, Grey’s anatomy e How I met your mother. A InSUBs, por sua vez, é uma dentre 32 equipes coordenadas pelo Legendas.tv, que legendam, sem fins lucrativos, um total de 215 séries. Há, ainda, mais 38 seriados traduzidos por 14 pessoas que não integram nenhum grupo. A divisão de novas séries entre as equipes é feita pelos administradores do Legendas.tv, que, depois de receberem pedidos de revisores interessados em assumi-las, analisam a qualidade das legendas feitas até então pelas equipes, assim como a velocidade com que foram postadas. Segundo Junio_Tk2, 17 anos, estudante, tradutor em seis equipes, além dos critérios de qualidade e rapidez, a tradição do grupo também conta: “A inSanos

Bastidores Billy e PenélopeC., assim como outros legenders, preferem ser identificados pelos seus nicknames, apelidos utilizados na internet com os quais assinam os créditos das legendas. Nos sites das equipes, por receio de ações antipirataria, não há nem mesmo os contatos individuais de cada membro. Para alguém de fora falar com algum deles, é necessário enviar mensagem ao email compartilhado por toda a equipe, também o principal meio de comunicação interna: “O revisor, antes de o episódio sair, faz a chamada por email e os tradutores se manifestam para traduzi-lo ou não. Depois disso, a conversa se passa só entre eles”, ressalta Billy. Ele é um dos 16 revisores da InSUBs, que conta também com

Segundo a Associação Antipirataria de Cinema e Música (APCM), baseada no artigo 29 da Lei de Direitos Autorais, a tradução de uma obra depende primeiramente da autorização do autor. Porém, segundo o artigo 184 do Código Penal Brasileiro, só cabe punição se a atividade visa lucro. Sites de legenda já foram fechados e em seguida reabertos, sem definição sobre a legalidade da prática dos legenders.

geralmente faz ação, assim como a CreepySubs costuma fazer terror”. Ele é um dos fundadores e administradores da equipe ComicSubs, que legenda séries como Pretty little liars e The Carrie diaries. “Um amigo soube de uma série [Jane by

design] meses antes de estrear, e, como não havia certeza se algum grupo a pegaria, decidimos arriscar e fazer nós mesmos.” Para ele, a maior qualidade que uma legenda feita por fãs pode ter é a “fidelidade à série”. “Se há várias temporadas e os personagens utilizam uma expressão recorrente, é preciso ter atenção para traduzi-la sempre de um mesmo jeito”, exemplifica. Ao legendar Game of thrones para a equipe DarkSide – as legendas do seriado têm a segunda maior média de downloads do Legendas.tv: 90 mil por episódio, atrás de The walking dead, com 100 mil –, Junio_Tk2 e os demais tradutores recorrem aos livros que a originaram para conferir nomes de cidades e personagens. Para Lorena Dantas Macedo, 27 anos, estudante de Direito e “super viciada” em séries, o diferencial do trabalho feito pelos legenders é o respeito para com aqueles que acompanham os seriados: “Eles se esforçam muito só pra saciar a vontade dos fãs. Têm uma vida à parte, trabalham, estudam, e mesmo assim correm pra disponibilizar as legendas”. Ela assiste a mais de dez seriados, e sabe o dia da exibição de cada um deles. “Já passei madrugada esperando legenda de The Vampire diaries e Hart of dixie”, conta, “às vezes sai com um ou outro errinho, mas não tenho do que reclamar. O que eu faria sem eles?”.

Motivações Algumas pessoas começam a legendar – voluntariando-se por meio dos sites das equipes e realizando um teste de tradução – para que fãs como Lorena possam acompanhar suas séries favoritas; outros, como Junio_TK2, “apenas por hobby”; o objetivo mais comum ao se tornar um legender, porém, é a possibilidade de praticar o inglês. É o caso de Aleudi, 20 anos, es-

Pedro Menezes

Às 23h de quarta-feira, horário de Brasília, no canal norte-americano The CW, mais um episódio de Arrow vai ao ar. Durante uma hora, cerca de 3,5 milhões de espectadores acompanham o Arqueiro Verde, personagem de história em quadrinho da DC Comics que, desde outubro de 2012, é também de série televisiva. Passadas em média duas horas do término do episódio, ele já está disponível para download nos principais sites de compartilhamento; pouco depois, está também, em inglês, a legenda CC (closed-caption, para deficientes auditivos), em sites especializados como o Addic7ed. É aí que começa o trabalho dos legenders.

“No caso de Arrow, uma das nossas maiores séries no momento, o limite de envio ao revisor é 7h da manhã”, conta. Por conta do alto número de downloads – a legenda de um episódio é baixada, em média, 40 mil vezes no site Legendas.tv, o principal portal brasileiro de legendas de filmes e seriados – a série recebe a designação ASAP, “as soon as possible”, algo que soaria em português como “o mais rápido possível”. Quando recebe as partes da legenda, Billy, 30 anos, engenheiro elétrico e revisor da série, tem como tarefa “assistir ao episódio, olhar a tradução linha a linha e fazer as correções necessárias; depois, se der tempo, assisto mais uma vez”. Até o fim da tarde, ele deve postar a legenda nos sites da equipe e do Legendas.tv para que fique disponível de forma gratuita – menos de 24 horas depois da exibição do episódio na emissora norte-americana.

tudante de Tradução na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), que começou enquanto estava na oitava série. “Depois decidi fazer Tradução principalmente porque gostava muito de legendar. E por saber fazer legendas já dei inclusive minicursos na UFU”, conta. Aleudi aprendeu a língua assistindo e legendando filmes e seriados, e, hoje, não é mais legender. “Quando comecei, queria melhorar meu inglês, mas eu mesmo parei de usar legendas há alguns anos”, conta ele, que acompanha, no momento, 56 séries. Organiza-se em meio a tantas pelo site Orangotag, que avisa o usuário quando há episódios novos. O portal também condecora com medalhas e denominações aqueles que assistem a muitos seriados – no caso de Aleudi, ele, além de premiadíssimo, ganha a inscrição “provavelmente não dorme”. Nesse aspecto ainda não deixou de ser legender.

Edição: Rafaela Lima Diagramação: Luana Luizy


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Saúde

Perigos da carne clandestina Ministério da Agricultura estima que metade da carne bovina consumida no Distrito Federal tem procedência ilegal. Selo de fiscalização diminui riscos à saúde Ananda Pimentel Isabela Bonfim Quem acha que viver na capital é sinônimo de segurança alimentar, com produtos fiscalizados, bem conservados e próprios para consumo, pode se surpreender ao saber que o comércio de carne clandestina no Distrito Federal é uma preocupação para os órgãos de fiscalização. As apreensões de carne clandestina dobraram entre 2010 e 2011, quando os fiscais retiraram de circulação mais de 67 toneladas de carne bovina, suína e caprina. Em 2012, o Serviço de Inspeção Federal (SIF), sistema de controle do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estimou que o comércio clandestino de carne no DF alcança a casa dos 50%.

O que torna a carne clandestina é a ausência de selo SIF, que garante certificação de origem, o que significa dizer que os procedimentos de vacinação, abate e transporte seguiram as normas do ministério. Em âmbito local, o selo da Diretoria de Inspeção de Origem Vegetal e Animal (Dipova), subordinada à Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Rural, normaliza a produção interna de carne do DF. É importante entender que esses selos tratam das condições de tratamento da carne anteriores à comercialização e não têm ligação com a conservação em supermercados, açougues e feiras, regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso pode ser um risco ainda maior para quem consome o produto clandestino. De acordo com

pesquisa feita pela Embrapa em 2006 sobre o perfil do consumidor de carne bovina no DF, o brasiliense não costuma verificar os selos de fiscalização na hora da compra e se preocupa mais com outros aspectos, como cheiro e cor. Se a carne não está aparentemente estragada e fora do prazo de validade, ela é ideal para consumo. Aí mora o perigo, porque carne clandestina não é sinônimo de carne estragada. A carne pode estar aparentemente sadia, mas não ter recebido as devidas vacinas que evitam doenças como raiva, tuberculose e cisticercose. O caso se torna ainda mais grave quando se trata da carne de ovinos e caprinos. Em 2012, a Secretaria de Agricultura calculou que, das 50 toneladas produzidas no DF, 33 eram clandestinas, cer-

ca de 66%. José Mota de Oliveira, comerciante de carne caprina na Feira da Ceilândia, assume que a carne que vende não tem selo. De acordo com Oliveira, dificilmente essa carne é encontrada em frigoríficos registrados. “Não há para vender no frigorífico porque a procura é pequena”, comenta. Ele não está enganado: das 380 toneladas de carne caprina consumidas no DF por ano, apenas 13% são produzidas e abatidas aqui. A maior parte vem do Uruguai ou do Rio Grande do Sul com selo de fiscalização nacional, o que dificulta a inserção do produtor local no mercado. Um dos motivos do comércio clandestino é o preço. Os quatro frigoríficos autorizados do DF pagam R$ 12 por quilo de carne abatida, segundo a Secretaria de Agricultura. Frigoríficos clandestinos pagam cerca de R$ 16. De acordo

com pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a carne clandestina chega ao consumidor entre 13% e 15% mais barata que a carne fiscalizada. Esse atrativo financeiro pode levar o consumidor aos açougues, feiras e mercados não registrados, onde a maior parte da carne clandestina é comercializada.

Perigo mora ao lado A pesquisa da Embrapa mostra também que o consumidor no DF prefere comprar carne em grandes redes de açougues e supermercados. O comportamento é uma forma de se proteger da falta de higiene e a má conservação que o produto pode enfrentar em pequenos estabelecimentos e feiras. “Compro na feira para fazer um agrado à minha sogra, mas lá em casa essa car-

Monique Rodrigues

Mesmo com o selo de fiscalização, a carne pode causar riscos à saúde se for manipulada sem higiene e conservada em ambiente impróprio, como em algumas bancas da Feira da Ceilândia


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Arte: Vanessa Arcoverde

Na clandestinidade, você não controla nada: vacinação, tratamento, doenças parasitárias, vermes. O animal está sem garantia de saúde.” André Godoy, gerente de Alimentos da Vigilância Sanitária

ne não entra, tenho receio”, explica a dona de casa Maria do Socorro. Outro engano, já que o risco da carne clandestina não está na conservação, mas na origem. Dênis Lima, comerciante na Feira da Ceilândia, trabalha com carne que respeita as normas de fiscalização. “A carne vendida na feira vem do mesmo frigorífico que a do supermercado, o que a Vigilância reclama é que a carne não deveria ficar exposta”, conta. Aleandro Monteiro, 61, é cliente assíduo da feira: “Sempre compro aqui porque o preço é melhor e a carne não está congelada como no supermercado”. Na banca de Dênis, a carne abatida é guardada em câmara fria; durante o dia, ele expõe os pedaços já cortados, que costumam ser vendidos em menos de uma hora. A maioria da carne clandestina comercializada em Brasília já vem abatida do Mato Grosso e de Goiás. Em geral, a carne é transportada em carros pequenos de passeio, para burlar a fiscalização nas estradas. Embora os estabelecimentos não registrados sejam os maiores receptores do produto clandestino, a melhor forma de se resguardar ainda é conferindo o selo de fiscalização. De acordo com Allex Moraes, gerente de fiscalização da Anvisa, se a atuação em feiras fosse mais efetiva, a maioria das bancas não ficariam abertas, porque existem muitos problemas de conservação, mas alerta: “Para cada atuação em feira, fazemos dez em supermercados, e sempre encontramos alguma coisa, especialmente problemas com carne clandestina”.

Questão de saúde No Brasil, todo ano são registrados diversos surtos de doenças transmitidas por alimentos. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2011 foram registrados mais de 300 casos, nos quais as carnes bovina, suína e de frango estão entre os quatro alimentos mais envolvidos, perdendo apenas para água, leite e derivados e sobremesas. Só no DF, segundo dados da Secretaria de Saúde, entre 2011 e 2012, mais de 650 pessoas deram entrada em hospitais da região apresentando alguma doença transmitida por alimentos (DTA). O caso mais emblemático no DF ocorreu em outubro de 2011, quando pelo menos 25 pessoas foram internadas com náusea, vômito, diarreia, dores no corpo e febre. Todas sentiram esses sintomas depois de comer no Churrasquinho do Barbosinha, estabelecimento localizado no Gama. A perícia foi acionada, mas, segundo o proprietário do estabelecimento, nenhuma análise foi conclusiva no que diz respeito à qualidade da carne. “O que aconteceu foi uma fatalidade, por isso não fui multado, mas tive que fazer algumas reformas”, afirma Barbosinha. Ele conta que compra carne há 10 anos no Açougue Santana, que é credenciado. Os sintomas são característicos de uma intoxicação alimentar causada por bactéria, como a salmonela, que contamina alimentos manipulados sem higiene. A qualidade da carne depende de vários fatores, que envolvem práticas profissionais desde o nascimento do animal até a hora do abate. Quando a carne é produzida em locais onde não há fiscalização, não há garantia de que regras de segurança e higiene são obedecidas.

Fonte: Ministério da Saúde Em geral define-se surto de doença transmitida por alimentos, incluída a água, como um incidente no qual duas ou mais pessoas apresentam uma doença similar resultante da ingestão de um mesmo alimento contaminado.

Estabelecimentos produtores de carnes devidamente registrados precisam seguir o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA, que dispõe sobre o funcionamento dos estabelecimentos, as condições sanitárias, o abate, as formas de embalagem, o transporte, entre outros. “Na clandestinidade, você não controla nada: vacinação, tratamento, doenças parasitárias, vermes. O animal está sem garantia de saúde. E animal doente com certeza tem um risco muito maior de levar uma contaminação para o consumidor”, afirma o gerente de alimentos da Vigilância Sanitária, André Godoy. Segundo ele, as possibilidades vão se restringindo quando se tem um tratamento adequado tanto para o animal quanto para a matéria prima, que é a carne. Para que não haja problemas no alimento que chegará ao consumidor, os animais de abate necessitam ser frequentemente vacinados contra diversas doenças,

entre elas tuberculose, botulismo e toxoplasmose, que podem ser transmitidas aos humanos por meio da carne. Os animais também devem tomar remédio contra vermes para que não desenvolvam para*sitas como a tênia, cujos ovos, ao serem ingeridos, entram na corrente sanguínea e se alojam no cérebro, olhos, coluna ou músculo, desenvolvendo grave doença chamada cisticercose, que pode levar à morte. O transporte tem de ser feito com atenção para que o animal não se machuque nem se estresse. Feridas na pele do animal podem causar infecções e contaminar a carne com bactérias como a salmonela, que provoca diarreia, dor abdominal, febre

e perda de líquido, que podem evoluir para desidratação grave. Quando o animal se irrita, as reservas de hormônios diminuem, deixando a carne escura, dura e ressecada. Há também aumento da acidez, que reduz a vida útil do alimento. Na hora do abate, quando o animal sente medo, libera hormônios que tornam sua carne pálida e mole. Para Godoy, um dos maiores riscos da clandestiniwdade é a forma de abate. O animal pode estar em perfeito estado de saúde, mas se for abatido em lugar impróprio, sem higiene e com técnicas de sangramento erradas, as chances de a carne ficar contaminada e transmitir doenças para o consumidor são grandes.

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Saiba mais De acordo com o assessor especial da Subsecretaria da Receita, Hormindo Almeida Jr., em 2012 o Distrito Federal perdeu quase R$ 5 milhões (R$ 4.973.550,88) em arrecadação de impostos devido ao comércio de carne clandestina, porque não há tributação sobre a carne que não é fiscalizada. Esse tipo de imposto pode ser aplicado em qualquer área base do governo, como educação, saúde ou transporte. Com esse valor, seria possível comprar 23 novos leitos de hospital, construir 209 moradias populares, levar saneamento básico a 1.686 domicílios ou manter 1.720 alunos por um ano na educação básica. Os números são estimados pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) para gastos do governo federal em todo o país.

Edição: Jorge Macedo Diagramação: Gabriela Alcuri


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Infância

O mundo em azul e rosa Cada um no seu devido lugar: cores delimitam os espaços nas prateleiras das lojas de brinquedo. Divisão reforça padrões tradicionais de gênero da sociedade Rogerio Verçoza

Marina Baldoni Amaral Bruno Pinheiro, 10 anos, não costuma explorar todas as prateleiras da loja de brinquedos na hora de escolher o preferido. “Eu já fui do outro lado uma vez”, diz, se referindo à metade da loja reservada para bonecas e castelos. Explica que frequenta o lado dos produtos azuis porque “tem mais brinquedos com criatividade e esperteza”. Seus escolhidos são os blocos de montar. Usando batom e roupas corde-rosa, Maria Eduarda, 3 anos, visitava a segunda loja do dia em busca de um guarda-chuva com temática feminina. Não aceitou se proteger da água sob cores “de menino”. A mãe, Ana Leão, diz que a filha “já sabe quais são os brinquedos de meninos e meninas”. Vaidosa, a garota é fã da Cinderela. Em Brasília e no resto do país é assim. As lojas de brinquedo delimitam espaços, refletindo estereótipos do que seria esperado agradar cada gênero. O rosa e o azul demarcam a fronteira a ser explorada. No lado “dos meninos”, azul, laranja, amarelo e pitadas de verde e preto mostram que naquele território objetos de consumo giram em torno de velocidade, explosões, lutas e agilidade. Cruzando a fronteira “neutra” dos brinquedos para bebês, com predominância de amarelos, verdes e vermelhos, um novo uni-

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mil diferentes tipos de brinquedos foram oferecidos no mercado brasileiro em 2012

verso vem à tona. Rosa e lilás, de preferência acompanhados por altas doses de purpurina (ou glitter, como chamam as meninas), dão o tom de fantasia e glamour que envolve bonecas, castelos, princesas e, por que não, panelinhas, fogões e pequenos aspiradores de pó. O corredor da “primeira infância”, para crianças de zero a 3 anos, ainda não foi dividido por gêneros. Lá são permitidos amarelo, verde, vermelho, roxo e laranja. De forma geral, os brinquedos são unissex e isso incomoda alguns pais e mães. “Uma mãe deixou de levar um carrinho colorido para o filho porque as rodas eram cor-derosa. Sempre querem alguma coisa com ‘menos rosa’”, diz o vendedor Diego Domingos. Segundo a mestre em Educação Márcia Acioli, assessora política do Instituto de Estudos Socieconômicos (Inesc), a disposição dos brinquedos na loja revela um mundo dicotômico, dividido entre masculino e feminino. “Esta divisão é arbitrária e cruel. Nada tem a ver com a natureza humana do feminino ou masculino e nem com habilidades ou competências”, diz a arte-educadora. Este padrão vem sendo questionado no Brasil e no mundo. Mães e pais, como a servidora pública Fabiana Reis, acreditam que as crianças podem experimentar um leque mais amplo de opções para brincadeiras do que o estabelecido pela indústria. “Tento criar meu filho para não separar tanto as coisas. O brinquedo não vai influenciar a sexualidade no futuro.” Pedro Vaz, 8 anos, concorda com a mãe. Apesar de preferir brinquedos de montar, acha que menino também pode brincar de boneca.

“Rosa claro com glitter” é a cor preferida de Alice Silva, mas a menina também brinca com carrinho e bola

No Reino Unido, desde 2011 lojas tentam embaralhar os limites entre brinquedos. A primeira delas foi a Hamleys, rede que tem filial em Londres considerada a maior do ramo no mundo. A loja eliminou as placas que indicavam corredores de meninos e meninas. Em julho do ano passado foi a vez de a tradicional Harrods seguir o exemplo e separar objetos por tipos, em vez de cores. Mas segundo o jornal The Guardian, apesar das iniciativas, as divisões de gênero continuam presentes, já que a indústria ainda produz de acordo com estes parâmetros. No Brasil, a Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) não possui dados sobre vendas por gênero e não discute o assunto. Alguns fa-

bricantes estrangeiros começam a dar pequenos passos em direção à diversificação da oferta. No Natal passado, chegou ao mercado norte-americano uma linha de blocos de montar da boneca Barbie. Segundo a fabricante, uma tentativa de aproximar pais das brincadeiras das filhas. O Lego, mais famoso bloco de encaixe, oferece a coleção Friends, que em rosa e lilás busca conquistar as consumidoras. Mas uma rápida busca na internet por antigas propagandas da marca revela que o Lego nem sempre foi dividido entre azul e rosa. Anúncios da década de 1980 mostram meninos e meninas, em roupas confortáveis e coloridas, exibindo suas criações com as peças: casas, aviões, carrinhos, moinhos. As embalagens traziam

crianças sem distinguir o público alvo do produto. A brincadeira era para todos. O que dizem as bonecas “Eu odeio matemática” era uma das frases repetidas pela primeira Barbie falante, lançada em 1968. Na época, protestos de feministas tiraram das prateleiras esta versão “loira burra” da boneca que, desde 1959, é modelo para gerações de meninas. Hoje, Barbie ainda está no topo das vendas e na primeira fileira das lojas. Segundo a Abrinq, quatro em cada dez brinquedos vendidos no Brasil são bonecas, o que revela a pouca variedade oferecida no setor. Com a linha Eu posso ser..., a Barbie agora permite que crianças escolham a profissão dos


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sonhos: bailarina, professora, pediatra, pop star, atriz de cinema, veterinária, entre outras. Um leque de opções que, segundo a coordenadora de Educação e Cultura da Secretaria de Políticas para Mulheres, Hildete Pereira de Melo, reflete papéis tradicionalmente ocupados pelas mulheres na sociedade. “Os brinquedos femininos são aqueles que consolidam nas meninas o papel do cuidado. Uma boneca é uma pessoa. Meninos ganham bola, avião, arma. São brinquedos que podem destruir, desmontar e quebrar.” Para ela, os brinquedos são “o último reduto do padrão de uma sociedade misógina, e têm uma marca pesada de consolidar os papéis: o que é ser mulher e o que é ser homem na sociedade”. Apesar de carregar valores tradicionais, os brinquedos precisam, mesmo que lentamente, acompanhar as mudanças que

ocorrem na sociedade. Exemplo disso é a Barbie presidente. Vestida com tailleur rosa e branco, é uma das opções da coleção Eu posso ser.... Mas, segundo vendedores, ficou longe de ser a mais pedida no Natal de 2012. As meninas preferiram a veterinária e a atriz de cinema. No lado da loja “para meninas”, panelinhas, máquinas de lavar louça e fogões ficam ao lado dos castelos, sugerindo que o mundo do fantástico engloba as tarefas do lar. A psicóloga Laís Fontenelle, do Instituto Alana, referência em

Misoginia, do grego misos (ódio) e gyné (mulher), é o ódio, desprezo ou aversão ao sexo feminino. É diferente do machismo, a crença na inferioridade da mulher.

direitos da infância, diz que estes brinquedos ficaram datados na visão de mães contemporâneas, mas “são importantes pois reproduzem o mundo adulto”. Ela ressalta que utensílios domésticos e bonecas devem ser oferecidos também aos meninos, porque quando crescerem poderão dividir cuidados com a casa e os filhos. Menino também pode O desejo dos filhos por brinquedos que não condizem com estereótipos de gênero é um medo que acompanha pais, principalmente em relação aos meninos. Meninas conseguem transitar com mais facilidade entre os dois universos. Vendedores dizem que é comum garotas comprarem brinquedos de encaixar peças e jogos de aventura, que ficam no corredor masculino. Já meninos

Um pouco além da fronteira Outra loja é a Carlota Ophir, que leva o nome da proprietária. Preocupada com as necessidades de mães e crianças, Carlota estudou design de produtos em Israel. Ela produz e vende brinquedos “práticos e pedagógicos, com funcionalidade”. Tem dois filhos e 35 sobrinhos. A experiência se reflete nas criações: mochilas para transportar material de desenho, estojo para guardar carrinhos, bonecas de pano para colorir. A loja vende brinquedos nacionais e importados, sendo 40% produção própria. A questão de gênero é uma das preocupações de Carlota. “No exterior, essa distinção é menor”, diz. A designer fazia coleções com bonecos e objetos em cores neutras. Mas o público não aceitou a inovação. “Em Brasília as pessoas

feita para meninas. Os príncipes costumam ser escolhidos. “Normalmente as mães fazem isso escondido do pai da criança. Dizem que pelo menos assim o filho não vai brincar com uma boneca”, revela Domingos. Para Márcia Acioli, educadora e assessora do Inesc, esse medo de que a criança transgrida a fronteira do gênero acontece porque os pais fazem uma relação entre o brincar e a sexualidade da criança. “Quando os adultos se dão conta de que a brincadeira é um importante instrumento de socialização e que os brinquedos estão separados por gênero, temem que o desenvolvimento da sexualidade siga a mesma trilha dos interesses que têm sobre o mundo do outro. Isso é uma tremenda bobagem porque sexo e gênero não são a mesma coisa.”

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Rogerio Verçoza

Ainda existe um lugar onde a brincadeira não é dividida por gênero: na seção de brinquedos pedagógicos das papelarias. O item está nas listas de material escolar de muitas crianças. Normalmente feitos de madeira, estimulam criatividade, raciocínio e coordenação motora. Nas prateleiras, são separados por idade, não por cores. Em Brasília, além das papelarias, poucas lojas se especializam no setor, uma delas é a Abracabrinque. Com maior oferta de produtos, boa parte dos brinquedos segue a lógica da indústria: boneca para ela, carrinho para ele. Apesar disso, oferece opções que fogem dos estereótipos, como fantoches, jogos de raciocínio e brinquedos clássicos como o telefone de latinhas.

comprando brinquedos “de menina” é mais raro, mas a curiosidade por parte deles existe. Os irmãos Alice, de 4 anos, e Heitor Silva, de um ano e meio, conseguem transitar pela barreira dos gêneros. A garota se identifica com o mundo das bonecas e princesas, mas também brinca com carrinhos e bola. O irmão já sabe dizer que adora Barbies, revela a mãe Maria Silva, que não vê problema nas brincadeiras escolhidas pelas crianças. Para os vendedores Diego Domingos e Roseane de Sousa, o comportamento da família é exceção. Nenhum deles se lembra de um pai ou mãe comprar uma boneca para o filho, apesar de atenderem meninos que pedem princesas e Barbies. O mais perto que esses garotos chegam de ter seus desejos atendidos é quando a mãe compra um boneco masculino de uma linha

são muito caretas. Em São Paulo e no Rio aceitam melhor.” Os bonecos ficaram encalhados e não são mais produzidos.

Serviço

Abracabrinque CLS 106, bloco B, loja 1B Asa Sul 3242-4824 Carlota Ophir CLS 116, bloco B, loja 21 Asa Sul 3245-8300 Didática Brinquedos Pedagógicos CNC 5, lote 2, loja 1 Taguatinga Norte 3354-5759

Blocos de montar oferecem linhas diferentes para garotos e garotas

Edição: Dayana Hashim Diagramação: Rafaella Felix


Campus | Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013

Página 8 Perfil

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de um Quixote

Com câmera na mão, tela pendurada no peito, cartola e vários cartões de visita no bolso, o Photoman vai às ruas Rogerio Verçoza

Monique Rodrigues – E aí, como funciona isso? – É assim ó: plaft (o clique é dado inesperadamente). Está vendo a cara de assustado que você fez?! É assim. Agora, se você quiser fazer uma cara mais séria, dar um sorrisinho ou posar pra foto, fica melhor. É muitas vezes com clique espontâneo que o Photoman aparece, quer dizer, que o “homem-foto” surge. O personagem caminha pelas noites de Brasília em busca de interação com o público. Carrega uma câmera digital e um monitor de LCD para que, ao fazer as fotos, as pessoas possam interagir de imediato. Ao se despedir, entrega um cartão com o endereço do blog vinculado ao Flickr, onde já postou mais de 15 mil fotos que podem ser baixadas gratuitamente. “O Photoman surgiu na minha cabeça como personagem, um homem usando cartola, magro, até mais alto que eu, e tomou vida”, conta Ricardo Joffily, o criador. Ricardo é carioca, mas escolheu Brasília para viver. Aos 52 anos, constrói um universo próprio. Mora em sítio próximo a Sobradinho, onde sustenta uma oficina cheia de bugigangas e objetos que fazem nascer as mais diversas criações: desde o aparato que dá vida ao Photoman a lentes infláveis e assentos de bicicleta dinâmicos. O homem-foto surgiu há cerca de oito anos a partir do desejo de Ricardo de ajudar o amigo Seu Marinho, figura conhecido nas noites brasilienses. O senhor de 77 anos de idade ganha a vida há 23 com impressões instantâneas das fotos que tira em

Ricardo Joffily incorpora Photoman, personagem das noites de Brasília

bares e restaurantes. No começo, usava câmera polaroide, mas há pouco tempo trabalha com uma impressora portátil. Para solucionar o problema do amigo, em relação ao alto preço dos materiais, que “roubam o lucro do fotógrafo”, Ricardo desenvolveu o protótipo do display ligado à câmera. Seu Marinho lembra do receio de usar a invenção. “Sabia que não ia dar certo porque meu cliente quer a foto na hora. Eu não quis e Ricardo falou: Vou fazer!”. Teve início então a trajetória do inventor e artista para colocar a criação em prática, aprimorá-la, e descobrir “aonde isso iria dar” – questionamento que diz não ter resposta até hoje. Ricardo começou com uma câmera alimentada por memória em

mini CD, o que possibilitava a venda do material e a obtenção de algum lucro. “Fazia uma série de cinco fotos, tostava o CD, vendia para a pessoa e recebia entre R$ 15 e R$ 20.” Fez o teste pela primeira vez quando estava de férias no Rio de Janeiro, em uma caminhada pela Avenida Atlântica. Foram sete CDs vendidos, número que o incentivou a continuar com o trabalho. Apesar do sucesso, o equipamento tinha vários problemas. Às vezes, os CDs não gravavam os arquivos de imagem, que eram perdidos para sempre e o cliente ficava desapontado. Foi quando percebeu que a criação estava para além do lucro obtido e que precisava investir no equipamento e na performance, mesmo sem receber dinheiro em troca. Ricardo, possibilita-

do por um emprego que o sustentava – era servidor público na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) –, viu no Photoman uma paixão a que se dedicar. O artista, com formação superior em Direito, mergulhou em estudos e pesquisas sobre fotografia, especialmente de retratos, que o fizeram aprimorar a técnica. E isso lhe rendeu grande mudança na carreira profissional. Surgiu uma vaga para fotógrafo na Defensoria Pública da União (DPU) e ele se candidatou. Logo, por ter experiência e também equipamentos necessários, foi requisitado para o órgão. “Além de ser uma coisa que ainda pode me abrir muitas portas, o Photoman me deu uma profissão”, relata. Com isso, conquistou a carteirinha profissional da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) que lhe dá o título de repórter fotográfico. O verdadeiro objetivo profissional de Ricardo é se consolidar como inventor. Na oficina que tem em casa, passa horas e horas trabalhando nas criações. A esposa, Rosiene, com quem tem três filhos, conta que ali é um refúgio, aonde ele vai para descansar. O descreve como reservado, mas diz que tem um lado artista pulsante. “É muito criativo e tem uma qualidade que eu acho admirável: a de tornar sonhos em realidade, de materializar todas as ideias.” Para Rosiene, Ricardo sempre foi mais artista que inventor. Em casa, conta a esposa, é muito brincalhão e assume também outros personagens, como o Tio Juan. “É um cara que só fala espanhol. Às vezes, acorda perso-

nagem, brinca com os meninos, me paquera e passa horas assim.” Ao se referir ao Photoman, o criador sempre usa terceira pessoa, como se fosse alguém de carne e osso, que “tem vida própria, e é, inclusive, muito mais simpático que eu”. Apesar de se encantar pelas outras criações, o Photoman é a verdadeira paixão de Ricardo, que afirma ser o projeto mais bonito que já criou profissionalmente. “É um acontecimento dentro da vida de inventor, e, como tem um lado humano muito forte, acabou puxando uma porção de coisas.” Em 2010, o cineasta José Pedro Gollo fez o minidocumentário No meu peito há um monitor em cujas veias corre cristal líquido sobre o Photoman. Não se conheciam, mas Gollo chegou ao personagem por meio de indicação feita por funcionários do bar Beirute. Na verdade, procurava por Seu Marinho, mas passaram a informação errada e foi “daquele tipo de erro que acaba virando acerto”. O cineasta se encantou pelo Photoman, ficou admirado com a reação das pessoas, que respondem, entram na brincadeira, posam para as fotos e acham aquilo incrível. “O Ricardo é um Dom Quixote. Saiu e fez. Inventou o personagem e descobriu como fazer. É um herói por isso.” Agora, imerso na oficina que tem em casa, Ricardo faz testes para usar iPad como tela. Dessa maneira, as pessoas terão mais liberdade para interagir com o Photoman, excluir fotos e ver detalhes que lhes interessem. Isso, exalta o inventor, “é demais!”.

Edição: Rafaela Lima Diagramação: Luana Luizy


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