Edição especial
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Campus
Número 394 Ano 394 Ano 4343 Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013 Número
Meio século de silêncio Em Ipatinga (MG), onde em 1963 a Polícia Militar metralhou operários da Usiminas, repórteres do Campus encontram rastros de violência, impunidade, mistério e do medo que até hoje cala testemunhas do massacre
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Campus | Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013
Carta do Editor Iasminny Thábata O sol mal havia nascido na capital mineira quando cinco estudantes de jornalismo da Universidade de Brasília aterrissaram no aeroporto de Confins, 708km distante de Brasília. Semanas antes, ainda na redação do Campus, a percepção de que um conflito entre policiais e trabalhadores nos prelúdios da ditadura militar, ocorrido há 50 anos, ganhava ares de esquecimento fez nascer em nosso grupo um espíri-
to aventureiro, curioso e inquieto. Como o jornalismo poderia ajudar a sociedade a conhecer parte de uma história que, inevitavelmente, se apaga com o tempo? Não seria fácil buscar a resposta, já que os envolvidos no episódio aprenderam a viver com o silêncio e a repressão. Em Ipatinga, onde tudo aconteceu, a primeira impressão foi de espanto. De bagagem na mão e hospedadas em um quarto sujo e improvisado ao lado da rodoviária da cidade, começamos uma saga.
As distâncias eram grandes, o calor era intenso, os interurbanos, caros, e os envolvidos, silenciosos. Era então o primeiro dia dos quatro que construiriam uma edição especial do jornal. Nós ainda não sabíamos, mas chegaríamos à mesma conclusão da jornalista e escritora Eliane Brum: se um dia voltássemos as mesmas depois de uma pauta, estava na hora de desistir do jornalismo. Entrevistamos sobreviventes do massacre, encontramos outros pelas ruas, visitamos cidades vizinhas.
Soubemos que a notícia das mortes chegou como guerra, revolução. A rádio citava de hora em hora nomes de mortos. O dono de um caminhão da cidade vizinha Fabriciano, muito conhecido, foi chamado para ir até a Usiminas e carregar feridos. Crianças se esconderam embaixo da cama, a escola não funcionou no dia, nem no dia seguinte. As informações eram desencontradas, ninguém sabia o porquê daquilo e, como ninguém explicou depois, ficou por isso mesmo. Quem começou a atirar? Quan-
tas pessoas morreram? Por que, até o fechamento desta edição, não recebemos respostas nem da Polícia Militar, nem da Usiminas? A Faculdade de Comunicação da UnB também teve papel importante. Como instituição pública, foi sensível para perceber que o investimento na viagem era um modo eficiente de retornar à sociedade uma parcela do valor pago em impostos pelos brasileiros. No final, todos se envolveram e ganhou o país, com uma edição valiosa do Campus.
blemas de fotografia e dessa vez a capa não sai fora. Imagem é representação, cria sentidos novos. Apesar da objetividade da foto, fica muito estranho olhar aquelas carnes de boi ao lado de uma fita preta que enuncia luto. É impactante e desnecessário. Além disso, havia manchete muito melhor para chamar na capa. Legendas em 3, 2, 1... é uma excelente reportagem, mas menciona algumas séries como se o leitor soubesse de que gênero se trata. Não custa lembrar que o jornal não
é uma revista especializada e pequenos cuidados podem facilitar a leitura de quem pouco entende do assunto. Senti falta de alguém que condenasse o trabalho de tradução às escondidas. Até agora Retratos de um Quixote foi a Página 8 mais bem aproveitada. Ricardo, o Photoman de Brasília, é uma pessoa interessantíssima. Fica apenas uma pergunta: a repórter seguiu o Photoman em ação na noite brasiliense? Por incrível que pareça, a matéria mal resolvida do jornal é a manchete. Perigos da carne
clandestina é de interesse público e teve o trabalho de dimensionar os problemas da arrecadação tributária, mas foi feita às pressas, enche linguiça ao repetir informações, ocupa espaço desnecessário e apresenta erros grotescos. Cisticercose é uma doença que, no homem, acontece apenas no ciclo da carne suína. Falar imprecisamente da enfermidade numa discussão em que o debate principal é a carne bovina deixa o leitor achando que vai pegar a doença no primeiro bife contami-
nado e morrer. Não instaurem o medo gratuitamente no público de vocês, é eticamente absurdo. A sacada de mestre fica mesmo para O mundo em azul e rosa. A repórter Marina merece ser mencionada aqui porque fez um trabalho excepcional, que coloca o jornalista, como dizem alguns professores por aí, como um cientista social do imediato. A melhor matéria que o ombudsman leu até hoje no Campus, sem sombra de dúvida. Só não gosto da palavra estereótipo, para mim ela também é um estereótipo.
Ombudsman Tiago Amate Tragédias unem pessoas e homenagens deixam jornais mais humanos. Sem condições estruturais de fechar uma matéria em cima da hora sobre Santa Maria, o símbolo e dedicatória de luto na edição 393 do Campus declara o apreço, preocupação e respeito da redação com o público universitário. Lado a lado do leitor, a solidariedade fortalece a identidade estudantil do jornal. A bonita diagramação do Campus ainda tem sérios pro-
Memória Há 20 anos, o Campus publicou suplemento sobre a invasão da Universidade de Brasília (UnB) em 1968. No dia 29 de agosto daquele ano, estudantes foram postos em fila com as mãos na cabeça. Policiais estavam munidos de fuzis, bazucas e cassetetes, sob o pretexto de cumprir mandato de prisão contra cinco líderes estudantis. Honestino Guimarães, na época presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB), não conseguiu escapar da perseguição. Foi preso e espancado em público.
Acesse www.fac.unb.br/campusonline e conheça o jornal laboratório virtual da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.
Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília Editora chefe: Iasminny Thábata; Secretária de redação: Celina Guerra Editores: André Vaz,
Fellipe Matheus Bernardino e Lucas Vidigal Repórteres: Camila Rodrigues, Elis Tanajura, Iasminny Thábata, Isabella Corrêa, Kelsiane Nunes, Laila Leite e Lorena Soares Diretor de imagem: Paulo Figueiredo Júnior Fotógrafas: Camila Rodrigues, Iasminny Thábata e Kelsiane Nunes Diagramadores: Ezequiel Trancoso, Irina Adão, Ivan Sasha, João Paulo Neves Cabral e Vanessa Arcoverde Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde Professores: Sérgio de Sá e Solano Nascimento, Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910900 E-mail: campus@unb.br Diagramação: Irina Adão e Ezequiel Trancoso
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Massacre
Ipatinga segue calada Chacina ocorrida na cidade completa 50 anos e ainda silencia ex-operários da Usiminas e moradores da região Isabella Corrêa Os pés descalços do jovem José Augusto de Moraes desfilavam pelo campo de futebol no centro do município de Timóteo, interior de Minas Gerais, quando a rádio transmitida por um auto-falante anunciou um massacre em frente à siderúrgica Usiminas, na cidade vizinha, Ipatinga. Então com 11 anos de idade, em 1963, o garoto caminhou os 14km que separam as duas cidades à procura de notícias do pai, empregado da usina. Encontraram-se na estrada, quando um ônibus trazia trabalhadores sobreviventes. Desde então, nunca mais tocaram no assunto. O conflito começou por volta das 7h30 do dia 7 de outubro de 1963. Na noite anterior, metalúrgicos insatisfeitos com a violência dos seguranças da Usiminas haviam anunciado uma greve para a manhã seguinte. Policiais militares foram chamados pela empresa para conter a massa trabalhadora durante a paralisação. O embate virou tragédia. As máquinas da siderúrgica silenciaram-se diante do abuso sofrido pelos trabalhadores. A maioria havia deixado seus lares espalhados pelo país em busca de uma vida melhor na cidade mineira. O silêncio do massacre alastrou-se como praga. “Depois, parece que colocaram uma pedra em cima, e a gente não ouvia falar muita coisa. Quase não havia comentários sobre o assunto”, recorda o engenheiro José Maurício Coelho Vasconcelos, 67 anos, que na época da chacina trabalhava no almoxarifado da Usina.
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O massacre foi escondido da nossa cidade a vida toda” Marilene Tuler Historiadora
Reprodução/Internet
Atendente em uma loja do shopping, Ângela Linda, 25, descobriu por acaso que embaixo de seus pés havia uma história guardada. “Meu pai trabalhou muitos anos na Usina e nunca comentou comigo, só fiquei sabvvendo esta semana, conversando com as meninas aqui do shopping.” Ela ainda arrisca uma explicação: “Dizem que foi a Usiminas que fez esse negócio, né? Mas não sei quantas pessoas morreram. Até pensei em pesquisar na internet.”
Cidade Usiminas
Caminhão que transportava policiais no dia do confronto e de onde saíram os tiros de metralhadora
Meio século após a tragédia que causou oficialmente oito mortes – extraoficialmente, até dezenas – e deixou mais de cem feridos, restam apenas versões de uma história mal contada e o silêncio de quem viu a morte de perto naquele dia. “Você tenta conversar com os aposentados da Usiminas sobre o massacre, mas eles não falam”, confirma José Augusto de Moraes, que escreveu nove livros sobre Ipatinga e dedicou-os ao pai. “É uma cultura que foi colocada na cabeça do pessoal.” Um dos sobreviventes chegou a agendar uma entrevista para
o Campus, mas mudou de ideia. Sua filha, a bibliotecária Rogéria, explica que o operário aposentado recusa-se a comentar o assunto. “Naquela época, eles não podiam nem abrir a boca para falar nada, acho que isso ficou na cabeça dele e por isso ainda sente medo de falar”, diz. Para não contrariar o pai, Rogéria pediu que o sobrenome da família fosse preservado. A historiadora Marilene Tuler, autora do livro O Massacre de Ipatinga – Mitos e verdades, acredita que a razão para tanta discrição é o fato de a Usiminas querer manter sigilo em relação ao
assunto. “O massacre foi escondido da nossa cidade a vida toda”, afirma. Segundo ela, após o incidente, a empresa deu casas aos operários, criou times de futebol e deixou o tempo fazer a sua parte para apagar a história. Atualmente, a maioria dos lugares onde os eventos aconteceram já se esconde atrás de edifícios modernos. “O massacre começou onde hoje é o shopping da cidade, por exemplo. Você esconde um episódio horroroso construindo um prédio e as pessoas nem imaginam o que aconteceu ali”, acrescenta Marilene. Edição: Fellipe Bernardino
O silêncio do massacre de 1963 parece passar despercebido diante da megaestrutura da cidade. A Usiminas se assemelha a um conjunto de órgãos e sistemas, onde Ipatinga é o corpo humano. Um não vive sem o outro. “Ipatinga existe em função da Usiminas, os bairros são construídos de tal forma que a Usiminas está no meio: separa a cidade em duas”, destaca Marilene. Pelas ruas das cidades vizinhas é possível perceber como a siderúrgica possibilitou desenvolvimento em Ipatinga, enquanto as outras ainda apresentam ar interiorano. Região de interior, porém grande e forte como uma metrópole. Pouco parece faltar ali. “Não temos uma rua sem asfalto e todas as casas têm luz, água e coleta de esgoto”, afirma o escritor José Augusto de Moraes. A usina chegou a Ipatinga quando a região era apenas um bairro, em 1956. Com ela, vieram os investimentos em escolas, hospitais e centros de lazer. “A Usiminas é uma mãe”, reforça a historiadora.
Diagramação: Ezequiel Trancoso e Paulo Figueiredo Júnior
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Massacre
Os mistérios por trás da fumaça da
A falta de documentos e as versões controversas sobre a chacina na cidade mineira mantêm Laila Leite
Acervo jornal Estado de Minas/Hilton Rocha
Segundo ele, a segurança implicou com a quantidade levada. “Não era roubo. Eu sei que o massacre teve início por conta do leite.”
Colaboração: Camila Rodrigues e Kelsiane Nunes
A nuvem de fumaça que sai da Usiminas e que acinzenta os céus de Ipatinga há mais de 50 anos encobre o sol e também deixa na escuridão respostas que esclareceriam o massacre de 1963. As dúvidas vão desde a origem do conflito até o número de mortos. Na noite de 6 de outubro, houve um desentendimento entre operários e vigilantes que controlavam a entrada e saída dos trabalhadores. A gênese do conflito é controversa. O ex-soldado e atual advogado José Francisco de Oliveira (leia mais na página 6), 78 anos, conta que a segurança teria pedido a um operário para abrir a marmita. “O operador se negou a abrir e a pegaram à força, notando que realmente havia objetos furtados”, diz o ex-policial. Porém, o ex-operário Ismael Pereira Lima, 80, contesta a versão. Segundo Lima, era comum na época trabalhadores levarem leite que sobrava do lanche para casa. “A encrenca começou na guarita de vigilantes porque os trabalhadores queriam levar o leite”, explica.
Outubro de 1963 Arte: Elis Tanajura e Lorena Soares
De oito a 33
No dia seguinte ao massacre, operários indignados com os acontecimentos ateiam fogo em caminhão
Dia 6
Dia 7
22h
Como ocorre diariamente, seguranças revistam operários na saída da Usiminas. O conflito nesta noite é maior que o usual, a situação se agrava na portaria 1 (Barreira 57), e o Regimento da Cavalaria Militar de Governador Valadares é chamado.
O número de mortos também é controverso. Segundo o vereador Agnaldo Bicalho, 41, integrante de uma comissão que investiga o ocorrido, o número oficial, com base em certidões de óbitos, é de oito mortos. Porém, a memória de testemunhas registrou mais corpos do que os números oficiais. Em meio às lembranças que não gosta de resgatar, o ex-mensageiro José Maurício Coelho Vasconcelos recorda ter visto pelo menos 10 corpos, mas ouviu falar em 33. “Falam que foram 11 mortos, mas ninguém sabe ao certo”, conta o ex-operário Hélio Mateus, 77. A única coisa que o vereador e os sobreviventes do massacre concordam é que a quantidade de vítimas fatais é bem maior do que a oficial. O fundamento da desconfiança, disseminada entre sobreviventes e investigadores, tem base em dois episódios distintos. Geral-
6h um pouco mais tarde ...
Após dispersarem os trabalhadores, policiais militares realizam patrulhamento no bairro dos alojamentos dos operários. Atos de violência são praticados no bairro de Santa Mônica e pelo menos cem trabalhadores são detidos.
Dois mil operários fazem paralisação na portaria da Usiminas e exigem a libertaçã de colegas detidos na noite anterior. Surg novos conflitos com vigilantes. A direção Usiminas chama a Polícia Militar.
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a siderúrgica
Falam que foram 11 mortos, mas ninguém sabe ao certo” Hélio Mateus, ex-operário
m o caso em aberto até hoje
Balas militares ou civis O que matou as vítimas do massacre foram balas, essa é uma certeza que prevalece. Mas há dúvidas sobre a autoria dos disparos, afirma Oliveira. Segundo o ex-policial, o bebê que está entre as vítimas foi alvejado por uma bala de um projétil calibre 23. “Esse calibre a polícia não tinha. Calibre 23
é de revólver”, declara. Vasconcelos observava o conflito, não acreditava que iriam atirar, prestou atenção a cada detalhe e, por isso, com a certeza de quem presenciou o ato, nega: “Só havia uma metralhadora no caminhão da polícia. Isso eu pude notar muito bem. O policial estava com capacete, era um cara moreno pardo, tinha a face magra, aparecendo o osso.” Uma das vítimas era Eliane Martins (veja na página 8). A criança estava no colo da mãe, que a levava para uma consulta no prontosocorro. “Depois que o caminhão saiu da portaria, os soldados continuaram a atirar durante o percurso, e foi aí que a mataram”, assegura o historiador José Moraes.
firmada pelos dez depoimentos do inquérito que julgou os policiais. “Todos eles falam a mesma coisa: que havia um líder operário, que tinha roupa vermelha, barba grande e apelido de Fidel Castro. E aí se constroi a versão.” Marilene acredita que essa foi apenas uma maneira de tentar atenuar o ocorrido. “Os militares disseram que não atiraram em operários, atiraram em perigosos comunistas”, ironiza. Moraes também crê que essa versão não passa de uma estratégia. “Foi um episódio à parte. É, inclusive, muito perigoso relacionar os dois eventos porque você exime a culpa da Usiminas.”
Um tal Fidel
Para tentar entender o que se passou em 7 de outubro de 1963, foi instaurada, em maio de 2012, uma Comissão da Verdade na Câmara Municipal de Ipatinga. Grande parte dos documentos que podiam trazer à luz um esclarecimento total está na Usiminas. Membro da comissão, o vereador Agnaldo Bicalho explica que, quando foi privatizada, a empresa ficou com tudo e não repassou os arquivos que eram públicos. Afirma, ainda, que vá-
Ocorrido às vésperas da ditadura, o massacre não escapa de questionamentos que o relacione ao golpe de 1964. Segundo o ex-soldado Oliveira, existiam entre os operários da Usiminas ativistas infiltrados que agitavam a massa. “Eles andavam uniformizados, camisa vermelha, com o símbolo no braço.” A historiadora Marilene Tuler afirma que a declaração de Oliveira é con-
Comissão
rias audiências foram realizadas e, mesmo sendo convidada, a Usiminas nunca compareceu nem mandou representante. O Campus entrou em contato com a metalúrgica, mas, até o fechamento desta edição, não obteve nenhuma resposta. A iniciativa dos vereadores de Ipatinga, que tem ligações com a Comissão da Verdade nacional, poderá trazer novos fatos à tona. Com a conjuntura política da época, a seis meses do golpe militar de 1964, muitos outros documentos foram centralizados no governo federal. A comissão pode ter acesso a informações privilegiadas e esclarecer detalhes do massacre. Bicalho acredita ser esta a última chance de conseguir as peças que faltam nesse complexo quebra-cabeça. “Ou nós levantamos mais informações do massacre agora ou não vamos levantar jamais.” A intenção não é responsabilizar culpados, mas a comissão pode preencher uma lacuna. Sem apontar culpados, o inquérito aberto para investigar o episódio foi arquivado já durante o regime militar que se seguiu ao golpe de 1964. Assim, a impunidade pelo massacre também está fazendo aniversário.
Kelsiane Nunes
ão gem da
do Rocha, na época com 28 anos, era alfaiate e, dominado pela curiosidade, foi para a área do conflito. Levou um tiro, foi sepultado na roça, mas o atestado de óbito registrou como causa da morte uma anemia. Outro fato encontrado pelo jornalista Marcelo Freitas na Santa Casa da Misericórdia de Belo Horizonte é um documento que mostra que foram adquiridos pela Usiminas, na data do massacre, 32 caixões. Contudo, na contramão, o ex-operário e escritor José Augusto de Moraes explica que a compra era frequente. A metalúrgica mantinha um depósito porque Ipatinga não tinha funerária. “O almoxarifado já tinha caixão estocado, pois quando a Usiminas chegou isto aqui não era cidade.”
Dia 8 9h50
A aglomeração já reúne mais de 4 mil pessoas, e grande número de operários está fora dos portões da fábrica. Do outro lado da rodovia, está um caminhão com policiais fortemente armados, inclusive com metralhadora. O confronto tem início, os policiais atiram e operários são mortos.
à tarde...
O comando geral da Polícia Militar determina a abertura de um inquérito e a prisão dos policiais envolvidos no episódio da manhã.
Em protesto aos atos violentos ocorridos no dia anterior, operários ateiam fogo à cadeia pública da cidade e destroem um caminhão da Polícia Militar. O fato fica conhecido como Operação Vingança.
Edição: André Vaz
Diagramação: Ezequiel Trancoso Ivan Sasha e Vanessa Arcoverde
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Massacre
Por detrás do gatilho Ex-policial militar presente no confronto de 7 de outubro de 1963 dá sua versão para o que ocorreu naquele dia Camila Rodrigues
do escritório central, viramos para a direita, então ouvimos o pipocar da metralhadora. Foi uma coisa horrível. O capitão Zamprogno ficou apavorado. A metralhadora disparou e morreram sete pessoas. Quando ouvi esses tiros, o capitão gritou “volta, volta, para, para, para!”. Os policiais estavam completamente doidos, a gente não tinha nem tempo de falar um com o outro.
Isabella Corrêa Colaboração: Camila Rodrigues
O que provocou o início do massacre? Em 1962 houve um grande furto de 32 ventaneiras (válvulas feitas com cobre) dentro da Usiminas. Em geral, havia também furto de cobre e níquel. Na noite de 6 de outubro, a vigilância teria pedido a um operador que abrisse a marmita porque cismou que havia objeto furtado nela. O operador se negou a abrir e a pegaram à força, notando que realmente havia objetos furtados. Isso acendeu uma revolta contra a vigilância, que gerou uma reu-
Quando o senhor percebeu que o massacre estava acontecendo? Havia uma reunião para retirar a PM e os operários da entrada da Usiminas. Saímos para retirar as tropas, o pessoal do sindicato e os operários. Quando saímos do pátio
José Francisco de Oliveira, ex-policial militar
A versão dos telegramas Informes trocados entre oficiais e autoridades mostram monitoramento de operários nos dias seguintes à chacina
Qual foi a reação da PM quando percebeu que havia causado morte de civis? O tenente Jurandir estava pálido e chorava igual uma criança, repetindo para o capitão: “Eu não autorizei isso, capitão!.” O capitão começou a chorar e eu mantive a calma. Quando vi que meus chefes choravam, peguei os soldados, fiz eles descerem, os coloquei em forma, recolhi os fuzis e guardei pra depois poder fazer exame balístico. Por que o massacre aconteceu? A Polícia Militar não era armada para vencer tumulto, hoje ela é. Nós não tínhamos armamento policial, tínhamos armamento do exército. Tínhamos fuzil sete milímetros, pistola militar, metralhadora, bazuca, morteiro, mas não tínhamos bomba de gás lacrimogêneo ou balas de borracha. No dia do massacre, havia um soldado com uma metralhadora de mão em cima de um caminhão, ela é uma arma de combate que dá 320 tiros por minuto. A polícia andava armada até os dentes. No dia 7, os policiais não receberam ordem para atirar. Então, por que atiraram? Talvez o estado emocional deles. A questão foi psicológica: quando a PM viu a multidão avançando, pensou em atirar por cima para assustar.
Lorena Soares Colaboração: Elis Tanajura Cinco décadas depois do episódio, é possível encontrar no Arquivo Público Mineiro apenas telegramas oficiais que mostram o monitoramento da cidade. Do dia 10 ao dia 16 de outubro de 1963, policiais da região mantiveram o secretário de Segurança informado sobre os ânimos em Ipatinga. Em 10 de outubro, dois desses comunicados especiais trataram do incêndio ocorrido na Pensão de Mulheres da cidade e da morte de um comerciante local. De acordo com o capitão J. Amaral, o criminoso seria Francisco Ribeiro dos Santos e estaria foragido. Em matéria publicada pelo jornal Correio de Minas no mesmo dia, no entanto, a versão apresen-
Edição: Fellipe Bernardino
Arte: Paulo Figueiredo sobre Telegrama do Arquivo Nacional
Entre silêncio, dúvidas e falta de vestígios do massacre de Ipatinga, restam apenas retalhos espalhados pelos depoimentos das testemunhas. Em entrevista ao Campus, o ex-policial militar José Francisco de Oliveira (foto), 78 anos, tenta remontar o conflito. Atualmente, ele trabalha como professor de direito penal e advoga em um escritório no centro da cidade. É o único dos policiais que atuavam em Ipatinga quando houve o massacre e que ainda vive na cidade. Na época, era 1º sargento da PM e escrivão da delegacia local.
nião do sindicato dos operários. No episódio, além dos operários da Usiminas, havia ativistas que andavam uniformizados de camisa vermelha e símbolo no braço. Eles não faziam parte do sindicato, eram apenas infiltrados. Após a reunião, esses agitadores foram os primeiros a sair, chegaram ao bairro do Horto, bateram na cavalaria e agrediram um soldado. Isso chegou aos ouvidos do 2º sargento Carlos Alberto. Ele e outros policiais da cavalaria foram para o bairro de Santa Mônica (onde morava a maioria dos trabalhadores), agrediram e prenderam cerca de cem operários. O capitão Robson Zamprogno ficou sabendo e imediatamente se dirigiu para o local questionando o sargento: “Oh, Carlos Alberto, você tá ficando doido?”, e soltou os operários. Isso fervilhou Santa Mônica e os operários resolveram fazer greve no dia seguinte. No dia 7, o capitão Jurandir estava com a tropa na entrada da garagem da Usiminas pra preservar o patrimônio, mas não conseguiu entrar porque os operários impediam.
“
Os policiais estavam completamente doidos”
tada foi de que o corpo teria sido encontrado após choque entre polícia e operários, com marca de um tiro de fuzil no peito. De acordo com a reportagem, o fato não havia sido esclarecido. Na manhã do dia 11, também houve um comunicado do delegado Campos ao secretário, reafirmando que reivindicações seguiam sendo feitas pelos metalúrgicos e que ainda era iminente o risco de movimento grevista na região. A possibilidade só foi afastada em 13 de outubro, quando a situação já estava mais calma. Na tarde do dia 16, o último telegrama foi enviado, considerando “boatos sobre intranquilidade” sem procedência.
Diagramação: João Paulo Neves Cabral e Paulo Figueiredo Júnior
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Massacre
Lembranças da beira da morte Sobreviventes recordam histórias de pânico, horror e superação ocorridas durante o episódio que marcou a cidade mineira
“Deus me salvou”
“Tomei tiro”
Cruz precisou correr para fugir dos tiros que vinham de todos os lados
“Foi igual a um coice” Hélio Mateus Ferreira, de 77 anos, precisou se entrincheirar em uma vala. Trabalhava no escritório central e resolvera ver o que estava acontecendo naquele dia. “Eu vou ver como está a barra”, lembra-se de ter dito a um colega. Quando chegou lá, encontrou o tumulto. “Era tanta gente que a porta estava bloqueada. Eu passei numa cerca de mais de dois metros, alguém serviu de escada para mim”, relembra. Foi quando pensou em se esconder para fugir dos tiros. Não teve tanta sorte. “Na hora que eu fui deitar para me proteger, eu recebi aquele balaço no traseiro igual a um coice de mula, para você ver que força”, descreve. Na adrenalina do momento, quase não sentiu dor. Até hoje, guarda não só lembranças daquele dia. “Na época o doutor falou comigo que não iria extrair a bala porque talvez, por infelicidade, minha cirurgia poderia cortar o nervo e eu ficaria aleijado.”
Ferreira ainda tem no corpo a bala que o atingiu, a marca ficou na carteira Camila Rodrigues
Para não esquecer, Ferreira guarda mensagem: lembrança da tragédia
Ismael Pereira, 81, lembrase de ter perguntado o que estava acontecendo quando chegou para o trabalho. “A gente queria ver e foi chegando mais perto. Na hora, foi gente correndo, gente caindo no chão”, recorda. As lembranças vêm com sofrimento. “Naquele tiroteio muita gente foi baleada, até colega meu”, conta. Com medo, a esposa de Pereira quis ir embora da cidade. “Os familiares eram quem mais sofriam com a situação. Tinham medo de tudo. Minha esposa falava: nós temos que ir embora daqui, tá muito perigoso.” Mas ele quis ficar em Ipatinga. “Eu preferia ficar na Usiminas porque sabia que tinha futuro”, explica.
Iasminny Thábata
Kelsiane Nunes
Enias Silvino de Souza, 74, conta que quando chegou para trabalhar naquele dia ficou do lado de fora. “Fecharam a portaria da Usiminas, não deixavam ninguém entrar.” No tumulto causado pelos tiros, Souza não conseguiu fugir a tempo. Sobreviveu, mas saiu ferido. “Começaram a atirar. O que aconteceu? Tomei tiro. Bateu aqui, no meu peito. Tive sorte”, recorda. Sorte porque foi de raspão. A irmã, Maria Madalena dos Reis, estava grávida de nove meses quando soube da tragédia pelo rádio. “De algum jeito, participei dos acontecimentos daquele dia. Quando recebemos a notícia de que estava tendo tiro, fiquei preocupada e passei mal. Acabei indo pro hospital”, conta a aposentada de 81 anos. Ela pergunta se o irmão participou do massacre ao escutar relatos sobre aquele dia. “Não participei, fui vítima”, corrige Souza.
“Foi gente correndo”
Kelsiane Nunes
Hoje com 81 anos, Joaquim Benedito da Cruz não gosta de recordar o dia 7 de outubro de 1963. “Conta, pai, como o senhor pulou a cerca de arame farpado”, estimula a filha Inês Mendes de Sousa , 50, tentando ajudá-lo a contar a história. O pai se convence. Na manhã do massacre, ele saiu no segundo ônibus do dia de Coronel Fabriciano rumo a Ipatinga para chegar à Usiminas. Notou a bagunça que se formava. Depois só ouviu os tiros e correu. “Não dava pra ver se conhecia ninguém, só corria. Na época, era moleque, saudável, conseguia correr”, relembra. Agora, Cruz convive com uma trombose que ataca as duas pernas e dificulta até a ida do quarto à sala. Os olhos de Cruz se enchem de lágrimas ao falar. “Foi Deus que me salvou. Tive que correr pra casa, avisar que não tinha acontecido nada comigo.” Inês conta a história da outra irmã, Luiza Mendes da Cruz, que, ao ouvir pelo rádio o que estava acontecendo, foi atrás
do pai. O encontrou já voltando para casa, machucado da fuga. “A notícia que chegava era que tava tendo guerra em Ipatinga”, diz a filha. Cruz se emociona. “Eu vou falar pra você, o negócio não foi brincadeira, não. Eu achei que daquela eu não iria escapar.”
Iasminny Thábata
Camila Rodrigues Colaboração: Iasminny Thábata
Pereira (D) e Souza (E), atingido de raspão por uma bala: “Tive sorte”
Edição: Lucas Vidigal Diagramação: Irina Adão, Paulo Figueiredo Júnior
Campus | Brasília, 14 a 20 de janeiro de 2013
Página 8 Crônica
n memoriam Iasminny Thábata Os olhos ainda estariam vivos. Vivos como deveriam ter continuado a ser desde o nascimento, e enxergariam o passar dos dias intrigados. Teriam acompanhado o desenvolvimento da região em que ela nasceu: antes vila, Ipatinga é hoje referência em turismo de negócios, uma das dez cidades mais populosas de Minas Gerais. Ela até poderia ter trabalhado na Usiminas, maior empregadora de mão de obra da região, e poderia ir acompanhada de um primo, um irmão que tivesse moto. No início não existiam muitas mulheres trabalhando lá, mas as coisas realmente mudaram naquela vila. E ela não viu. Nascida em 1963, a menina, que poderia ter crescido bonita e namorado radialistas, policiais e farmacêuticos da região, aos 15 anos poderia ter perdido um amigo tragicamente - como muitos perderam à época. E sentido a falta dele com tamanha dor, que só alguém que perdeu quem ama sente. Ela nem viu, inclusive, a tal da enchente. Qual delas? A que, entre 1º e 4 de fevereiro de 1979 matou dezenas de pessoas e desabrigou milhares, fruto da falta de estrutura da cidade que crescia de forma acelerada. Nos dias úmidos e ensolarados de Ipatinga, ela poderia ter ido ao Kart Clube ou Kartódromo
Edição: Fellipe Bernardino
Emerson Fittipaldi, sensações da juventude do Vale do Aço. Isso, se tivesse aprendido a dirigir, ou soubesse que as obras seriam inauguradas, para espanto e prazer da região, que também viu nascer o primeiro shopping e o estádio de futebol, em 1998. O show do Frejat veio e se foi, também o da Maria Gadú e o do Paralamas do Sucesso. Luana Piovanni também passou por Ipatinga com o espetáculo O Pequeno Príncipe, mas acabou a temporada de apresentações e a menina, que poderia ter assistido à peça, não foi. Na verdade, não se sabe se ela gostaria de ver interpretadas cenas do principezinho no teatro, ela nunca teve a possibilidade de escolher do que gostaria e o que a desagradaria. Ela talvez tivesse um metro e meio e gostasse de receber flores no aniversário, ou, quem sabe, aprenderia a preparar o pão de queijo mineiro, especialidade da região, com ajuda da mãe. Cresceria rápido, estudaria na fazenda que servia de escola e que, depois, virou o Colégio Assedipa, ou na escola Estadual Professor Pedro Calmon, a mais antiga escola pública da região. Brincaria de pique-esconde ou balanço na varanda que rodeava a casa e não se preocuparia com a hora do fim da brincadeira, já que a professora, Dona Tildinha, avisaria aos pais que ela estaria “por aí”. Cresceria rápido? Andaria a pé e de papa-fila (transporte que buscava e levava os empregados da Usiminas)? Detestaria a chuva? Aprenderia a dançar com
os olhos, mais que com os quadris? Viajaria para o Rio de Janeiro? Casaria virgem com algum farmacêutico chamado Luis Alberto de Souza, vizinho da família, filho do compadre de seus pais? Das poucas certezas, ela era filha de José Martins e Antonieta Francisca e se chamava Eliana Martins. C re s c e r i a envolta ao silêncio de uma cidade que se desenvolveu rapidamente, fruto de um trabalho acelerado – parte advindo dos serviços do próprio pai, que era operador de máquinas na Usiminas lá pelas horas da década de 1960. Ipatinga não era mais que uma vila quando Eliana nasceu e só as horas dançantes dos bailinhos e o avolumar da fumaça usineira quebrariam o silêncio das pessoas
Diagramação: Irina Adão, Ivan Sasha e Vanessa Arcoverde
Arte: Isabella Corrêa
que teimariam em viver os dias de forma desconfiada, mas calada. O s filhos nunca vieram, a viuvez também não, ou a graduação em Pedagogia, já que para as mulheres da época dela o destino era o magistério ou o comércio. Tampouco trabalhou como vendedora. Apegada ao passado e a tudo que a faria se tornar o que seria hoje, Eliana Martins já teria rugas a fazer ligação com o passado (que nãoviu passar). Provavelmente o pai, como tantos outros silenciosos, nunca falaria dos acontecimentos tristes da vida. Talvez assim ela aprendesse a falar apenas do que fosse bom. Cinquenta anos e nenhuma palavra sobre aquele dia. Que dia? Ela não entenderia, mas quem sabe virasse devota de
Nossa Senhora, como muitas das amigas da cidade, de maioria católica. O andar vagaroso seria marca de que o tempo havia passado, contra todos os indícios e contra todas as estatísticas de um Brasil que não sobreviveria aos sumiços e aos massacres da época em que ela crescia e viraria mulher. Eliana Martins foi uma das vítimas do massacre de Ipatinga. O mesmo tiro que atingiu a mãe, Antonieta, matou a recém-nascida de três meses que estava no colo da mulher. Ela a levava para uma consulta no ambulatório da Usiminas. As últimas notícias da família indicam um final trágico, como o início da história. Após a morte da única filha, o pai foi visto vagando pelas ruas da cidade, e a mãe foi internada em um manicômio. Nenhum deles foi ao enterro da menina. Só compareceu o enfermeiro do hospital que atendeu às vítimas do massacre. E o coveiro.