Campus - nº 401, ano 43

Page 1

CÂMARA LEGISLATIVA

GUINADA POLÍTICA Distrital Cristiano Araújo (PTB) retira projetos que beneficiavam minorias e se aproxima de evangélicos

REGULAMENTAÇÃO

INGREDIENTES EXÓTICOS Fórmulas de medicamentos chineses provocam discussão sobre uso de componentes de origem animal

SAÚDE

NOVOS HÁBITOS Projeto gratuito no Recanto das Emas estimula mudança de atitudes para auxiliar pessoas com obesidade

BRASÍLIA, 8 A 14 DE OUTUBRO DE 2013

NÚMERO 401 ANO 43

CAMPUS


2

Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

Carta do Editor

Recorte

Ana Teresa Malta

Ingrid Borges

Todo processo de lutas por direitos implica um risco: o de que, uma vez conquistados, esses se tornem banais, menosprezados como uma obrigação cotidiana que aparentemente sempre esteve ali. Como um título de eleitor deixado no fundo da gaveta, relembrado — para ser logo esquecido — durante os breves instantes de alguma propaganda sobre recadastramento biométrico. Toda a insurgência contra ditaduras, parlamentares biônicos e eleições indiretas são reduzidos, nem tantos anos mais tarde, a expressões como “são todos iguais, não tenho em quem votar” ou a escolhas baseadas no santinho mais colorido ou na opinião de algum conhecido. Direito por vezes comprado ou exercido de maneira impensada, decidir sobre os rumos do país onde vive é atitude da qual sentem falta os que são privados dela. A reportagem de Brunna Ribeiro traz uma reflexão sobre o voto para pessoas que buscam um novo lar no Brasil. Na fuga de conflitos nos países originários, refugiados anseiam uma cidadania plena: além do acesso aos serviços

públicos, querem direitos políticos mais amplos. Mas não sejamos simplórios: o voto é apenas a ponta do iceberg do complexo exercício da democracia. Principalmente quando pensamos no que ocorre depois dele, no acompanhamento das atitudes dos representantes — em um sistema com mais de 30 partidos e um constante troca-troca de filiados. A repórter Maria Tereza Matos analisa a mudança de conduta de político que se opôs às próprias medidas realizadas no primeiro mandato. A trajetória do deputado Cristiano Araújo (PTB/DF) é vista sob a ótica dos grupos de apoio do parlamentar. O Campus não se esquece também de falar sobre cultura. Entre instrumentos musicais, costuras e formas de alumínio, Ingrid Borges conversou com artesãos acerca do reconhecimento profissional desse ofício. Na área da saúde, Adriano Belmiro aborda a regulamentação de medicamentos da medicina tradicional chinesa com ingredientes que surpreendem o leitor.

Memória Muitos são os motivos para sair do lugar de origem - busca por emprego, moradia ou fuga de conflitos violentos. Reportagem da edição 82 do Campus, de novembro de 1985, aborda as políticas públicas realizadas em Brasília para amparar "os que vieram de longe". O risco é de que as pessoas venham para a cidade e sejam relegadas a uma condição marginal. A repórter Maria Lourdes Tavares

ressalta a importância de promover mudanças na distribuição de renda que possibilitem ir além do simples assistencialismo.

CAMPUS

Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

A chama eterna do Panteão da Pátria espreita silenciosamente os representantes do poder. As decisões do país são tomadas enquanto o símbolo da liberdade do povo flameja no centro político do Brasil

Ombudsman

*Termo sueco que significa "provedor da justiça", discute a produção dos jornalistas sob a perspectiva do leitor. Alexandre de Paula é aluno do sétimo semestre de jornalismo

Alexandre de Paula O Campus retorna renovado e com mudanças significativas. A volta do formato tabloide, ao mesmo tempo em que dá ao leitor mais facilidade no manuseio, exige dos alunos uma capacidade de síntese muito maior. Embora pareça mais simples, escrever menos quer dizer conseguir escolher e transmitir apenas o essencial, o que é sempre um desafio. Ponto positivo, o novo projeto gráfico transmite elegância e sobriedade. Quanto ao conteúdo, a edição traz temas importantes que vêm acompanhados de acertos e erros comuns ao início da produção. Em busca de um lead forte, Código controverso

cai em contradição. O primeiro parágrafo diz que, desde novembro de 2011, o Departamento Nacional de Produção Mineral não libera autorizações para a pesquisa. No segundo, afirma que, por determinação judicial, o órgão as autorizou em agosto deste ano. Ora, por liminar ou não, houve autorizações e é incorreto afirmar que não. O leitor atento percebe esses enganos. Os Sem-Bibliotecas é, de fato, a reportagem que mais se destaca e merece a página dupla que ocupa. Aponta para um problema grave e pouco abordado na educação do DF. É preciso, porém, cuidado na construção de frases, para não dizer o contrário

do que se pretende. "[...] outras bibliotecas das escolas públicas do Distrito Federal não estão em condições de receber os estudantes ou sequer existem." Sequer, por si só, não tem sentido negativo e significa "ao menos". Com a frase da maneira como foi escrita, a informação se torna outra. A Céu aberto, Graças às chuvas e Vale a pena cumprem o papel informativo e fecham o jornal com a certeza de que o Campus começou bem, apesar de alguns deslizes. Por fim, fica a impressão de que se pode ousar mais, buscar pautas e abordagens que surpreendam e eliminem o ar de sisudez que o fim da leitura deixa.

Editora-chefe: Ana Teresa Malta Editores: Gabriel Luiz, Tamara Miranda Repórteres: Adriano Belmiro, Brunna Ribeiro, Douglas Lemos, Ingrid Borges, Maria Teresa Matos, Tamara Miranda Diretor de arte e foto: Paulo Ricardo Caproni

Fotógrafos: Pedro Silva Projeto Gráfico: Beatriz Ferraz, Hermano Araújo, Marianna Nascimento e Nadjara Martins Professores: Sérgio de Sá e Solano Nascimento Monitoras: Marinna Nascimento e Nadjara Martins Jornalista: José Luiz da Silva

Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares


Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

3

POLÍTICA

O QUE É ISTO, CRISTIANO? Distrital se aproxima de evangélicos, retira projetos sobre minorias e diz não querer “afrontar” quem não gosta de gays

Maria Tereza Matos

Pedro Silva

N

ada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder. A frase do Segundo Reinado (1831-1840) do Brasil Império faz troça da rasa diferença prática entre conservadores e liberais. Passados quase duzentos anos, ela continua atual nos meandros da política. Inclusive no Distrito Federal. Em 2006, Cristiano Araújo (PTB) foi eleito para seu primeiro mandato na Câmara Legislativa do DF. Aos 24 anos, era o parlamentar mais jovem da Casa e também o segundo mais votado. Suas promessas de campanha relacionavam sua juventude à ideia de renovação política. Nos primeiros anos de atividade legislativa, Araújo fez jus ao suposto caráter progressista atribuído aos jovens e prestou apoio ao movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e a religiões de matrizes africanas. Entre 2007 e 2011, o deputado apresentou seis projetos de lei em benefício de minorias. Entre eles estavam o projeto que criava o Programa Diversidade em escolas públicas do Distrito Federal (DF), o que incluia a Parada Gay de Taguatinga no calendário oficial de eventos do DF e o que vetava qualquer forma de discriminação de cor, raça, religião ou orientação sexual no acesso a elevadores em edifícios públicos e particulares. Em relação à defesa de religiões de matrizes africanas, os projetos propunham a preservação do patrimônio histórico e cultural de origem africana

“Um eleitor me perguntou se eu achava justo que o filho dele crescesse vendo homens se beijando. Fiquei sem saber o que responder” e afro-brasileira (que virou lei em 2011), a declaração da Prainha como Patrimônio Cultural Material Afro do Distrito Federal e a inclusão da Festa de Iemanjá no calendário oficial de eventos do Distrito Federal. Em seu segundo mandato, Cristiano Araújo parece ter mudado sua percepção. Em abril deste ano, ele retirou todos os projetos sobre diversidade sexual e o que declarava a Prainha patrimônio cultural. Antes da retirada, a partir do final do primeiro mandato, o parlamentar começou a ampliar sua base eleitoral e a aproximar-se de igrejas pentecostais e neopentecostais. Durante a campanha de 2010, por exemplo, foi recebido por pas-

tores evangélicos em cidadessatélites como Itapoã e Ceilândia Sul. Em 2011, quando era secretário de Ciência e Tecno-

logia, recebeu representantes da Igreja da Restauração e Unção Profética, de Ceilândia, que pediram apoio a projetos sociais. No último mês de junho, foi homenageado pelo Ministério Braço Forte do Senhor em um culto com mais de 1.000 pessoas. Para Michael Felix, diretor de Projetos e Pesquisa da Federação Brasiliense de Umbanda e Candomblé e exassessor de Cristiano Araújo, a retirada de projetos progressistas é influência da nova base eleitoral do deputado. “Eu trabalhei em sua campanha em 2010. Eu e mais 15 pais e mães de santo que formaram um grupo afro em sua equipe. Coincidentemente ou não, Cristiano firmou acordo com pastores evangélicos e, em seguida, acabou com o grupo afro e deixou de dar apoio aos

movimentos LGBT”, conta Felix. Cristiano Araújo admite ter apoio de um grupo grande de pastores, mas nega que tenha sofrido influência deles para retirada dos projetos. O parlamentar afirma ter retirado o projeto sobre a Prainha porque teria perdido o vínculo com os chamados “grupos afro”. “Eu perdi a ponte com o segmento. O Michael Felix era da minha equipe política e saiu para trabalhar na SEPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial do DF)”, declara. Cristiano Araújo conta que a Federação de Umbanda passou a buscar o apoio de outros deputados distritais. “Se vários deputados distritais apóiam o segmento, então, meu apoio passa a não ser tão importante.” No caso dos projetos que

beneficiam o público LGBT, o deputado afirma que a retirada foi uma estratégia política. Ele diz que recebe em seu gabinete representantes do movimento e que alguns são seus amigos pessoais. “Eu respeito esse grupo e tenho muitos votos deles. É um segmento que conta com muitos simpatizantes, mas do qual muita gente não gosta, e eu não me acho no direito de afrontar essas pessoas”, afirma. “Uma vez um eleitor me perguntou se eu achava justo que o filho dele crescesse vendo homens se beijando. Eu fiquei sem saber o que responder.” Fabinho Dias, organizador da Parada Gay de Taguatinga, lamenta a perda de apoio do parlamentar. “Foi uma pena que ele tenha deixado de nos apoiar, ficamos tristes.” O evento passou a ter apoio de outro deputado distrital e foi mantido este ano. Reeleito em 2010 com 9.219 votos a menos que em 2006, Cristiano Araújo não relaciona a perda de eleitores à autoria de projetos progressistas no primeiro mandato. Ele diz que teve problemas na campanha para conseguir seu registro porque havia sido acusado de ser ficha-suja. “Nós atribuímos o meu decréscimo de votos aos problemas que tive na campanha e não ao apoio ao segmento A, B ou C”, explica. Candidato a um terceiro mandato em 2014, o parlamentar já tem como promessas de campanhas as bandeiras da mobilidade, sustentabilidade e geração de empregos para jovens. “Pretendo me focar mais em temas universais e menos em segmentos”, promete.


4

Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

INTERNACIONAL

POR MAIS U

Estrangeiros com status de refugiados, que têm autoriza Brunna Ribeiro

E

les não são brasilei- voto com a condição política ros, gostaria de ter os mesros, mas querem ter os de refugiados. Quis criticar o mos direitos de um brasileimesmos direitos dos suposto e tradicional elo en- ro, porque moro e trabalho cidadãos do país em que es- tre nacionalidade e cidadania.” aqui”, diz o africano, pedinA pesquisa compara a le- do para não ser identificado colheram viver. Fugiram da perseguição e violência para gislação brasileira para refu- por temores relacionados às morar num lugar onde suas giados com a de outros países. perseguições em seu país. liberdades fossem garantidas Segundo o estudo, nos Estados Ele, que já foi refugiado na e respeitadas. São os refugia- Unidos e em países da Europa Zâmbia e tem mulher e duas dos, e querem ter voz – e voto. esses imigrantes têm direito de filhas refugiadas nos EstaMohamed Abubakari tem voto, mesmo sem serem natu- dos Unidos, reivindica mais 28 anos e está no primeiro se- ralizados. Na América Latina, amparo do governo. “Eu mestre de Economia na Uni- Chile, Uruguai e Venezuela quase não durmo, trabalho versidade de Brasília (UnB). permitem que estrangeiros à noite para me sustentar Ele veio de Gana em 2011, fu- votem. Para a pesquisadora, o e estudo de dia”, relata. “O gindo da perseguição política, direito de voto permite “inte- Brasil é bom, mas podia e deixou em seu país a mulher gração do refugiado à comuni- nos dar melhor condição de vida, para gene duas filhas. te tudo é mais Por saber o complicado.” quanto vale De acordo ter opinião com a constipolítica e potuição brasileider expressára, nenhum esla, ele também Mohamed Abubakari, nascido em Gana e trangeiro pode quer decidir o exilado no Brasil há dois anos votar, e pelo futuro do BraEstatuto do sil. “Quero ter o direito de votar como todo dade residente, autoafirmação Refugiado, o migrante não brasileiro. Quero contribuir.” do individuo e poder de trans- pode exercer atividade de Apesar de ter documentos vá- formação do ambiente em que natureza política no país. Em lidos, emitidos pelo Ministério vive”. Dos 24 refugiados que 2005, a Proposta de Emenda do Trabalho, ele não é cidadão a pesquisadora entrevistou, Constitucional (PEC) 401, brasileiro. “Quero me natura- somente para exemplificar apresentada pelo então delizar, mas isso demora. O Bra- em seu trabalho a realidade putado federal Orlando sil tem de se preocupar mais desses migrantes no país, 16 Fantazzini, garantia o direicom estrangeiros que que- expuseram vontade de vo- to a voto para estrangeiros rem ajudar o país a crescer.” tar. “Não posso generalizar as que estivessem legalmente A defesa da “cidadania respostas, mas boa parte dos no Brasil por cinco anos. demonstrou A proposta foi arquivada. desnacionalizada”, ou seja, do entrevistados Doutor em Relações Indireito ao voto sem ser cida- interesse de que o direito de dão do país, está na disserta- voto se tornasse uma ban- ternacionais, o professor ção de mestrado defendida em deira política deles”, afirma. da UnB George Galindo Refugiado político, um orientador da tese de Ana fevereiro de 2013 no curso de Direito da UnB por Ana congolense de 48 anos, no Paula Cunha, afirma que Paula Cunha. “O objetivo do Brasil desde 2011, também nossa lei para refugiados “é trabalho era abordar o papel quer participar da escolha dos considerada moderna” e, do Estado na concretização governantes. “Se o governo embora tenha limitações, se do direito fundamental do nos dá documentos brasilei- adequa à Convenção sobre

"Quero ter o direito de votar como todo brasileiro."

Dos 557 pedidos de refúgio apreciados de janeiro a maio deste ano, o Conare rejeitou 304 o Estatuto dos Refugiados, de 1951, definida pela ONU e ratificada por 147 países. Não existe referência a direitos políticos na legislação internacional que proteja

os refugiados, portanto fica a cargo de cada país decidir. Para Galindo, limites impostos a refugiados são fruto de medo. “Surgem de temores infundados sobre uma pos-


Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

5

UM DIREITO

ção para viver e trabalhar no Brasil, também querem votar Paulo Ricardo Caproni

daqui, mas não faço questão do voto. Só se fosse obrigada.” O PROCESSO

sível e inexistente ameaça de refugiados à estabilidade política do Estado”, afirma. Ana Paula Cunha salienta que parte dos refugiados não quer votar para manter o anonimato. “Eles têm status migratório tão delicado, são dissidentes de seu Estado”, afirma a pesquisadora. Uma colombiana de 29 anos, que também pediu para não ser identificada, vive como refugiada há oito anos no Brasil, com um irmão e um tio. “Quero ser brasileira, ter nacionalidade

Tão logo o estrangeiro chega ao país e faz a solicitação de refúgio, em qualquer posto da Polícia Federal (PF), ele recebe carteira de trabalho e CPF nacionais, com validade de 180 dias, renovável. Flávia Leão, funcionária do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão do Ministério da Justiça, comenta que alguns pedidos são recusados por falta de documentação que comprove a situação de risco da pessoa no país de origem. Todo o procedimento é sigiloso. “Os países assinam acordos para manterem fronteiras abertas ao receberem refugiados, não devolver o solicitante”, afirma Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil. Essa agência da ONU é contatada pelo governo brasileiro para que proteja e encaminhe o solicitante de refúgio a uma ONG que o acolha, oferecendo auxílios financeiros e emergenciais, como cursos de português gratuitos, processos de integração e apoio psicossocial. “Nosso papel é desenvolver o lado humanitário”, afirma Godinho. No DF, é o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), fundado e coordenado pela irmã Rosita Milesi, que desempenha a função de parceira na acolhida, atenção e integração dos refugiados e solicitantes. No instituto, os

Brunna Ribeiro

estrangeiros recebem atendimento assistencial, jurídico e orientação no processo de inserção no mercado de trabalho. Atuando desde 1999, o instituto também atende toda população migrante (internos, imigrantes, vítimas de tráfico humano, e outros) e recebe recursos do governo brasileiro. AS DIFICULDADES Refugiado é toda a pessoa que, por perseguição devido à raça, religião, nacionalidade, opinião política ou por fazer parte de um grupo social, está fora de seu país de origem e não pode regressar. “As maiores dificuldades dessas pessoas ao chegarem é integração econômica, procura de trabalho e geração de renda”, explica Godinho. “Demorou quase dois anos para sair meu pedido”, revela Loida Labrada, refugiada cubana de 44 anos que veio ao Brasil em 2009 com o marido, Guillermo Vitón, e dois filhos. “Viemos em busca de liberdade”, conta ela, que fazia parte de movimento de reforma política no país comunista. Loida relata as dificuldades que sofreu ao tentar se instalar no país: “Às vezes falamos, e as pessoas não entendem a língua, pensam que estamos brincando”. Este ano, o casal abriu um restaurante em Taguatinga. A escolha do Brasil foi sugestão de uma amiga. “Fomos bem recebidos, mas tem de ter força de vontade. Este ano fui ao banco e pediram o RG, mas eu só tinha o protocolo da PF.

85% dos exilados que chegam ao Brasil têm entre 18 e 30 anos e 64% são homens. No Distrito Federal, os migrantes escolhem as cidades-satélites para viver Pedro Silva

Donos de um restaurante em Taguatinga, o casal de cubanos Guillermo Vitón e Loida Labrada são formados em gastronomia e fugiram com o objetivo de reconstruir a vida

Eles acharam que era falso, que eu estava ilegal”, revela Loida, que diz sofrer preconceito por alguns não conhecerem os refugiados e seus direitos. “Mas sou abençoada por poder estar aqui. Viver agora num país livre, em que a gente pode falar.”

“Não faço questão do voto. Só se fosse obrigada.” Refugiada da Colômbia que preferiu não se identificar


6

Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

OBESIDADE

CORRENDO CONTRA O PESO Projeto do Recanto das Emas mobiliza mais de 90 pessoas na luta contra a obesidade, que subiu 54% nos últimos seis anos Tamara Miranda

Johnatan Reis

H

á um ano, Marly Braúna a técnica em enfermagem Maria pesava 110kg, era uma Rodrigues e a agente comunitámulher doente e tinha ria de saúde Hermelina Caxangá. um hábito incomum: comia fa- Com uma abordagem multiprorinha de mandioca compulsi- fissional, os idealizadores do provamente. Aos 48 anos, se sentia grama tentam fazer os integrantes impossibilitada de fazer atividades do grupo perderem peso e melhobásicas. “Não conseguia nem me rarem a qualidade de vida. dobrar para amarrar o cadarço do Dados do Ministério da Saúde tênis”, conta. mostram que o número de pessoA maranhense já tinha tenta- as obesas subiu 54% em seis anos, do fazer dietas milagrosas, mas foi passando de 11,6% em 2006 para em uma consulta no Centro de 17,4% em 2012. “O projeto nasceu Saúde n° 2 do Recanto das Emas quando eu e os companheiros enque ela encontrou a oportunidade volvidos observamos a quantidade para deixar de pessoas esses velhos obesas que hábitos no circulavam passado. Ela nos correfoi convidada dores do a se inscrever posto”, exem um grupo plica a nuque estimula tricionista obesos a perC l ar iss a Hugo Bezerra, participante do grupo derem peso. Siqueira. “Não sabia o “Precisávaque era, mas mos fazer como tinha parado de fumar e alguma coisa.” estava comendo muito, acabei me Segundo Clarissa, o programa inscrevendo”, conta Marly. não tem o simples objetivo de fazer O Programa Obesidade Em- os pacientes emagrecerem, mas bora (Probem) é uma parceria de conseguir mudar hábitos e estimucinco profissionais: a nutricionista lá-los a se tornar autônomos no Clarissa Siqueira, a endocrinolo- processo de perda de peso. Por isso gista Raquel Beviláqua, o profes- o Probem não conta com o uso de sor de educação física Natal Silva, emagrecedores. “As pessoas só são

"Minha disposição física e minha autoestima melhoraram 100%"

Johnatan Reis

Há cinco profissionais no programa: endocrinologista, nutricionista, agente comunitária, técnica em enfermagem e professor de educação física

medicadas para doenças que já tenham, como diabetes, hipertensão ou ansiedade”, conta Clarissa. Os remédios utilizados são distribuídos pela rede pública de saúde. A primeira turma do Probem teve início em outubro de 2012. Contou com a participação de 64 pessoas, destas apenas três homens. O recrutamento foi feito por meio de indicação de médicos. Os pacientes foram divididos em grupos de acordo com seu grau de obesidade: leve, moderada e grave. As reuniões acontecem no estacionamento do posto. Além das árvores uma tenda branca garante a sombra necessária para as atividades. Os pacientes se dividem em pequenas rodas com aproximadamente cinco pessoas cada, e relatam todas as dificuldades que passaram no mês que separou os encontros. Não há lanche. Os profissionais ficam com o grupo e registraram em fichas médicas tudo que vai ser necessário para o bom andamento do tratamento. Natal Silva ressalta a importância do revezamento. “Cada um de nós tem algo para passar, minha função nesse grupo é passar atividades que otimizem o tempo. Indico atividades que sejam fáceis de ser realizadas, em casa mesmo.” Marly tinha muito tempo livre, resolveu aproveitar. Começou caminhando e hoje faz também natação e passeios na bicicleta que ganhou como prêmio. Ela perdeu 20kg, o recorde da turma que concluiu o programa em março deste ano. Maria de Fátima Oliveira ganhou em dobro com o programa, foi a paciente que mais perdeu circunferência abdominal e ficou entre as pessoas que mais perderam peso, eliminando 12kg. “Depois que você começa a ver os resultados dá vontade de ir cada dia mais longe”, conta entusiasmada. “Eu

Marly Braúna não conseguia nem se abaixar para amarrar o tênis. Hoje, 20kg mais magra, anda 6km por dia, nada três vezes por semana e trabalha

quero ir, ainda quero perder 8kg.” Nem todos os resultados foram tão positivos. Liliane Andrade, que é doceira, começou o programa pesando 96kg. Nos dois primeiros meses, chegou a perder peso, mas logo descobriu problemas na tireóide. “Juntou a tireóide e meu trabalho como doceira, não teve jeito, acabei engordando”, conta Liliane, que hoje pesa 101kg. “Confesso que faltou um pouquinho de força de vontade, fazia todos os exames, tinha uma equipe muito boa que me dava todas as explicações e não aproveitei.” Hugo Bezerra, um dos três homens do grupo, é exemplo de que o principal é a mudança de hábitos. Ele não perdeu peso, mas conseguiu perder 5% de gordura corporal. “Minha disposição física

e minha autoestima melhoraram 100%”, relata. “Nunca quis ser malhado, mas hoje estou quase satisfeito com meu corpo.” O Probem iniciou no mês de julho sua segunda turma. A ideia era ter 75 pacientes, mas a procura aumentou esse número para 96 obesos. Além do Recanto, cidades como Taguatinga, Samambaia e Riacho Fundo estão mandando pacientes para o programa, e já há lista de espera para o próximo grupo. Após o encerramento dos trabalhos de cada turma, os pacientes fazem acompanhamento trimestral. A Secretaria de Saúde informou por meio da assessoria de Comunicação que a expansão do projeto depende do interesse de outras unidades de saúde.


Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

7

MEDICINA

NORMATIZANDO A TRADIÇÃO

Medicamentos de origem chinesa que contêm resíduos animais na fórmula passam por regulamentação Adriano Belmiro

O

pênis do cachorro, a isso, a Anvisa passará a fazer casca da cigarra, o fer- o acompanhamento da utilirão do escorpião, o rim zação de produtos da MTC. A consulta se encerrou em do porco, a vesícula do urso, o excremento do morcego e a agosto, e segundo assessoria placenta da mulher são alguns de imprensa da Anvisa o texdos insumos usados pela me- to está sendo consolidado indicina tradicional chinesa, co- ternamente e provavelmente nhecida pela sigla MTC, para haverá ainda uma audiência diversas patologias. A Agência pública sobre o assunto. O arNacional de Vigilância Sani- tigo 2º da resolução em análise tária (Anvisa) está prestes a estabelece que são considerados produtos banir esses da MTC as medicamenformulações tos, e a reobtidas a ação contra partir de maa medida térias-primas é grande. de origem A MTC vegetal e mié milenar e neral. O papassou a ser *Fonte: Datasus rágrafo úniusada com co do artigo mais freqüência no Brasil a partir de é claro: “É proibida a utilização meados do século passado, de matérias-primas de origem quando médicos brasileiros animal nas formulações a seforam à China e a outros pa- rem comercializadas no País”. A coibição é controversa. íses asiáticos para aprofundar conhecimentos. De volta ao “Sou totalmente contra”, diz país, reforçaram a idéia de que a funcionária da Secretaria de se trata e uma medicina al- Saúde de Águas Lindas (GO), ternativa, não charlatanismo. Ilsa dos Santos Morais, que Atualmente, não existe ne- tem 40 anos e há mais de duas nhuma fórmula tradicional da décadas usa o quitosana com a China — que costuma mistu- finalidade de manter o peso e rar minerais, animais e plantas baixar o colesterol. “O remé— com registro no Brasil. Ou dio tem sido eficaz pra mim.” seja, a Anvisa ainda não deu o A quitosana é um dos produrespaldo legal para a prepara- tos mais populares da MTC. ção e comercialização dos pro- Trata-se uma fibra à base de dutos ou remédios desse tipo crustáceos, que, segundo seus de medicina. Para mudar a si- defensores, possui elevada catuação, a Anvisa abriu no dia pacidade de se ligar às gorduras 13 de maio uma consulta pú- alimentares, bloqueando a abblica de uma proposta de regu- sorção delas pelo organismo. O proprietário de uma lamentação do mercado. Com

66% das 199 pessoas que responderam à consulta são da área de saúde

farmácia da Asa Norte, que vende produtos chineses e pediu para não ser identificado, se mostrou indignado com a pretensão da Anvisa. “Além de retirar parte da verba da farmácia, quem faz estas leis não conhece a realidade do mercado”, critica. Homero Bernardo, acupunturista e especialista em medicina chinesa, 45 anos, trabalha exclusivamente com fitoterápicos - remédios de origem vegetal. Ele diz ser de extrema importância que a Anvisa crie a regulamentação. “É preciso botar um ponto final à discussão que já dura mais de meio século”, afirma. Leandro Morais, gerente da drogaria Volta à Natureza, é a favor da medida regulatória. A farmácia é especializada em fitoterápicos. Segundo ele, a farmácia vende apenas dois produtos chineses com conteúdo animal e como eles vêm de fornecedores o prejuízo para a farmácia não seria muito grande caso os produtos de origem animal fossem proibidos. Maria Bal Justino, 67 anos, farmacêutica aposentada e ex-funcionária da Anvisa, diz que insumos animais são muito perigosos e seu uso na preparação de medicamentos demanda uma tecnologia específica e avançada. “Já trabalhei durante 20 anos nesta área, e acho perigosíssimo usar qualquer produto de origem animal para finalidades medicinais”, afirma. ”A Anvisa tem, sim, de regular.”

Pedro Silva

Leandro Morais diz que a regulamentação não afeta a farmácia. O foco do estabelecimento são os medicamentos fde origem vegetal Pedro Silva


8

Brasília, 8 a 14 de outubro de 2013

CAMPUS

CULTURA

A ODISSEIA DA ARTE

Artistas e ao mesmo tempo comerciantes, artesãos renovam as esperanças de um reconhecimento profissional Ingrid Borges

“D

izem que de doido, doutor e artista, cada um tem um pouco”. É assim que João Grilo responde ao ser questionado sobre o porquê de ter se tornado artesão. O paraense mora em Brasília há quase 50 anos e se considera um dos fundadores da Feira da Torre, ícone do artesanato local. Ao som de um rústico berimbau, um dos produtos confeccionados por ele, o contador de histórias desata a narrar anedotas quase inacreditáveis, nos quais militares e até onça são personagens. João não tem grilo, é regulamentado, a preocupação do ofício é produzir peças em couro, e os estimados caxixi e agogô, instrumentos necessários para uma boa capoeira, pela qual demonstra sentir paixão. Já o paraibano Renildo Oliveira, 50 anos, vende corações, nomes e mini bicicletas de alumínio a R$ 5,00. Para ele, viver de arte não é nada fácil. Não regularizado e sem ponto fixo para trabalhar, o artesão é acostumado a correr da Fiscalização de Posturas, o famoso rapa, mas nem sempre é bem sucedido em suas corridas diárias. “Polícia chega e leva mesmo, não quer saber. Já me levaram mais de dez vezes”, desabafa. O nordestino é um dos muitos artesãos que ainda não foram beneficiados com a Lei de Apoio à Economia Popular e Solidária, medida que prevê melhorias como criação de oportunidades de trabalho, geração e distribuição de renda e maior capacitação técnica. Como resultado da lei, foi concretizado o projeto Artesão Mostra sua Cara,

Ingrid Borges

O tecido preto é a estante de mercadorias geralmente perdidas na fuga da fiscalização. A rua é a loja daqueles que não têm documentos

Para Faridi, a regulamentação será a oportunidade de o artesanato não ser mais visto de forma discriminatória

Ele vive da criatividade. Ter sua atividade reconhecida como profissão é uma alegria para Agostinho Pereira

João Grilo fabrica artigos para capoeira e peças de couro e trabalha com a tranquilidade de quem tem toda a documentação regularizada

desenvolvido pela administração regional em parceria com a Secretaria de Estado de Trabalho, no Gama. A Vila do Artesão foi inaugurada no norte da cidade-satélite em março deste ano. O espaço conta com 18 boxes, em que os profissionais, todos regularizados, expõem seus trabalhos e oferecem oficinas à comunidade. De acordo com o diretor de Empreendedorismo e Geração de Renda da Secretaria de Estado de Trabalho, Anselmo Moraes, “o objetivo é, até o final do ano, fazer uma vila em cada feira permanente do DF”. Sancionada no ano passado, a lei é apenas um pequeno passo na luta pela regula-

mentação da profissão. Passo do qual Oliveira nunca ouviu falar: “Até agora não sabia dessa lei. Aqui para conseguir algo tem de ser na ‘peixada’”. Segundo dados da secretaria, há 15 mil artesãos cadastrados no DF. “É difícil atender toda a demanda”, diz Moraes. Outro avanço conquistado pelos artesãos foi a aprovação unânime do Projeto de Lei 7755/10, do Senado, pela Comissão de Cultura, no dia 18 de setembro. O projeto reconhece a profissão de artesão e visa a destinação de crédito especial para o financiamento da comercialização da produção artesanal, apoio econômico, maior qualificação e certifi-

cação de qualidade do artesanato. Segundo a presidente da Associação Sudoeste, Octogonal de Artesanato Solidário do Distrito Federal (Assoartes), Lúcia Cruz, a lei é muito importante principalmente para o reconhecimento do profissional. “Estamos na luta. Com a aprovação (da lei) vamos ser respeitados, teremos políticas públicas efetivas. É uma arte milenar, uma profissão muito antiga e que merece reconhecimento. O artesão mexe com sentimento, cultura popular, fala de um povo, merece ser valorizado”, avalia. Artesã há mais de 30 anos, a moradora do Guará Faridi de Carvalho espera que o arte-

sanato seja regulamentado de uma vez. “Eu acho que o ofício é muito discriminado, não temos direitos. Talvez seja porque a classe não é unida”, sugere a profissional que expõe roupas de crochê em um espaço do Conic. Na banca ao lado, Agostinho Pereira mostra-se otimista: “Vamos conseguir e ter dignidade igual a outras classes, estamos engatinhando”, declara. O projeto, que tramita em regime de prioridade, seguirá para análise conclusiva das comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, de Finanças e Tributação, e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.