Campus impresso - ano 43 número 391

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Foto: Jorge Macedo | Arte: Ivan Sasha e Pedro Menezes

Campus

Brasília, 22 a 28 de janeiro de 2013 | Número 391 Ano 43

Transformações em alta Procedimentos cirúrgicos para troca de sexo realizados pelo SUS completam cinco anos, superando média anual de transplantes de coração e pulmão juntos Colabore com a caixinha

Comunicar é direito

Se a canoa não virar...

Universitários usam vaquinha virtual para pagar custos de projetos acadêmicos (pág. 3)

Campus debate Projeto de Lei que definirá Conselho de Comunicação do DF (pág. 7)

As marchinhas chegam lá. Blocos de rua em Brasília tocam ritmo carnavalesco do século 19 (pág. 6)


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Campus | Brasília, 22 a 28 de janeiro de 2013

Carta do Editor Gabriela Alcuri Raziel Von Sophia é transexual e lésbica. Foi essa a personagem que serviu de inspiração para as repórteres Ramilla Rodrigues e Dayana Hashim idealizarem a reportagem Troca de Sexo, capa da edição 391 do Campus. Ela causou grande curiosidade na equipe do jornal, que não compreendia a diferença entre orientação sexual

e identidade de gênero. Tampouco entendíamos as dificuldades enfrentadas para realizar, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a cirurgia de redesignação sexual. A reportagem analisa o preconceito enfrentado por transexuais no atendimento pelo SUS, além de esclarecer dúvidas do público sobre gênero e sexualidade. A aproximação com o leitor também acontece em Mídia

em observação. Ao expor a tímida consulta pública referente ao futuro Conselho de Comunicação Social do DF, Guilherme Alves discute como a garantia de comunicação é fundamental para promover outros direitos humanos. Passando o chapéu virtual e Ó abre alas... para as marchinhas tratam de temas mais leves, mas não menos interessantes. Na primeira, Rafaela Lima explica como a prá-

tica do crowdfunding, espécie de “vaquinha” virtual, funciona no ambiente universitário. A reportagem sobre marchinhas aproveita o clima de carnaval para mostrar a manifestação do gênero na atualidade. Para isso, a repórter Luana Luizy oferece explicações musicais, antropológicas e históricas. Para fechar o jornal, uma crônica sobre a pergunta que todo brasiliense já escutou. Por que cê

Ombudskvinna* Ana Paula Lisboa A capa da edição 389 não dá vontade de ler o jornal. A equipe do Campus poderia parar de fazer trocadilhos tolos ou de querer “inovar” demais em títulos e chamadas, e passar a colocar mais informação neles. A manchete Fim de um ciclo sem mortes é ambígua e vem acompanhada de chamada confusa, premiada com erro de con-

não faz um concurso? mostra visão bem-humorada sobre o tema por meio de diálogo informal entre duas amigas. Os infográficos e ilustrações acrescentam informações relevantes nas matérias em que fotografias não foram possíveis. Os diagramadores desta edição provam que jornalistas também entendem de Indesign, Photoshop e Illustrator.

*Feminino do termo sueco ombudsman, que significa “provedor de justiça”, discute a produção do jornal a partir da perspectiva do leitor.

cordância: “mortes (...) encerra (...)”. A retranca Sangue derramado e o título Hemofilia volta a assombrar o DF são sensacionalistas e de péssimo gosto. A matéria de capa, apesar de trazer dado relevante do Datasus, poderia ser menos burocrática e focar mais na história pessoal dos hemofílicos falecidos. A matéria deixa perguntas: Qual a idade dos pacientes mortos? O repórter não anotou o nome ou a prima de

Geremias Cavalcante não quis se identificar? Josemilson da Conceição estava inconsciente ou não estava consciente de que ia ser operado? Quem chora mama e Líquido que nasce abundante, chamada de capa e título da primeira matéria, não funcionam bem: a primeira tenta ser engraçada, e o segundo possibilita interpretação dúbia. A reportagem, porém, tem ritmo gostoso de ler e traz informações

interessantes sobre o tema. Para escrever De estudantes a clandestinos, a repórter entrevistou apenas congolenses. Faltou esforço para achar pessoas de outros países na mesma situação. Com chuva e sem renda tem texto leve, mas traz tom lamurioso, como um pedido para que as pessoas ajudem os flanelinhas. Comida para caber no bolso aborda o problema do RU, porém não cobra da UnB planos para

Em dezembro de 1995, o suplemento da edição nº 203 do Campus trouxe na capa Homossexualismo é pecado?, com textos de Luciana Rodrigues e Valéria Carneiro. A reportagem expôs o debate sobre a relação das religiões com homossexualidade. A edição também veiculou notícia da apresentação do projeto de lei para regularizar a união homoafetiva pela então deputada Marta Suplicy. A reportagem principal apresentou um grupo de teólogos

defensores de que os trechos da Bíblia na verdade não condenam os homossexuais e que tal desaprovação parte de interpretações erradas. Também mostrou a opinião de alguns segmentos religiosos sobre o relacionamento entre homossexuais. Hoje, pouco mais de 17 anos depois, o Campus avança na discussão e apresenta as questões de saúde que envolvem o tema, a busca por cirurgias para troca de sexo e o despreparo dos profissionais de

saúde. Para tanto, ouvimos histórias de pessoas que enfrentam esses obstáculos e têm o objetivo de encontrar uma identidade.

que o restaurante não pare de funcionar com tanta frequência. Se o objetivo do conto da Página 8 era dar sono, conseguiu, pois ficou chato e sem graça. A ilustração não casa com o personagem masculino do texto. As fotos, mal iluminadas e desinteressantes, deixam a desejar. Por fim, resta a esperança de que, na próxima edição, os leitores e a ombudskvinna não se decepcionem tanto.

Memória Apesar de em 2011 o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o assunto ainda não é regulamentado no Código Civil brasileiro. A discussão chegou tardiamente ao país: na Dinamarca, por exemplo, a lei foi estabelecida em 1989. Por aqui, o primeiro trabalho científico sobre lesbianismo surgiu nos anos 30. Nos anos 60, proliferaram os primeiros jornais e revistas gays, que foram coibidos pelo regime militar.

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Editora chefe: Gabriela Alcuri Secretária de redação: Monique Rodrigues Editores: Isabela Bonfim, Rafaella Felix, Rogerio Verçoza Repórteres: Dayana Hashim, Gabriela Alcuri, Guilherme Alves, Luana Luizy, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues Diretora de arte e foto: Marina Baldoni Amaral Fotógrafos: João Bosco, Jorge Macedo e Talita Amorim Diagramadores: Ananda Borges, Pedro Menezes, Vanessa Arcoverde Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha Stemler, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde Professores: Solano Nascimento e Sérgio de Sá Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910.900 E-mail: campus@unb.br

Erramos O número correto da última edição do Campus é 390, e não 389, como publicado na última edição.

Acesse www.fac.unb.br/campusonline e conheça o jornal laboratório virtual da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

Diagramação: Marina Baldoni Amaral


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Muuuuu...!

Passando o chapéu virtual Estudantes brasileiros apostam no crowdfunding para realizar projetos universitários

Rafaela Lima A famosa “vaquinha” entre amigos está agora no mundo virtual com nome mais moderno: crowdfunding. Pronunciado craudfandin, em inglês, e traduzido para o português como financiamento coletivo, carrega premissa simples de que é mais fácil dez pessoas contribuírem com R$ 10 do que uma com R$ 100. Na iniciativa, alguém expõe em um site específico uma proposta e o valor necessário para realizá-la. Quem se interessar contribui com o quanto puder, e em retorno recebe uma recompensa – por exemplo, cópia do filme, agradecimento nos créditos ou camiseta. O modelo em alta na internet, antes popularizado por projetos culturais, coleciona sucesso dentro das universidades brasileiras. Foram 47 pessoas que apoiaram a ideia do curta-metragem Somos todos inocentes. Pedro Beiler, estudante de Audiovisual da Universidade de Brasília (UnB) e roteirista e diretor do filme, explica que “tinha roteiro e equipe, mas faltava a grana”. Com certa urgência, apostou no crowdfunding e conseguiu tirar o projeto de conclusão de curso do papel com os R$ 4. 950 arrecadados. “Se não conseguíssemos, a opção seria reduzir de forma drástica os gastos e fazer de qualquer forma com fundos próprios. Uma ilusão”, diz Beiler.

Para Andréa Medeiros e Julieta Fialho era preciso mais. As estudantes da Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo pediram R$ 14,2 mil para financiar o projeto Tiquatira em Construção. Influenciadas pelo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e incomodadas com um espaço público murado, resolveram repensar o muro que cercava um campo de futebol na cidade de Tiquatira. Ao invés de derrubálo, pensaram-no como suporte para mobiliários urbanos – mesas, bancos, arquibancada, bicicletário. Para Andréa, utilizar crowdfunding era parte da base ideológica do projeto: o coletivismo. “Foi o modo de expandirmos nossa ideia e torná-la coletiva”, ressalta. A proposta era que o dinheiro arrecadado cobrisse, além do material de construção, o evento, que contaria com a participação das pessoas interessadas em botar mão na massa. Ultrapassaram a meta em R$ 2.651. A falta de recursos financeiros suficientes é fator comum que leva universitários a procurarem no crowdfunding uma saída. Lilian Barcelos, também estudante de Audiovisual da UnB e diretora de arte do curta O Virundum (arrecadação de R$ 2.080), lançou o projeto em um site de financiamento coletivo. “Com o dinheiro arrecadado, somado ao cedido pela Universidade, foi possível investir mais na produção”, esclarece. As estudantes de Jornalismo Cecília Cussioli e Letícia Arcoverde, da Universidade Federal de Santa Ca-

“Vaquinha”, futebol e jogo do bicho têm tudo a ver. O professor Ari Riboldi, no livro O Bode Expiatório, explica que a expressão surgiu quando torcedores do Vasco da Gama resolveram premiar os jogadores. O valor do prêmio era nomeado a partir do animal equivalente no jogo do bicho. A lógica era simples: em caso de empate, a torcida desembolsava um “cachorro”, 5 mil réis; vitórias comuns valiam o dobro, um “coelho”. Mas quando o Vasco ganhava dos adversários mais fortes ou em partidas decisivas a torcida “fazia uma vaca”, que equivalia a 25 mil réis, a premiação máxima. Depois disso, ninguém “arrecada dinheiro”, faz “vaquinha”.

tarina (UFSC), quase desistiram do TCC por falta de dinheiro. A elaboração do São Paulo Polifônica, reportagem multimídia colaborativa sobre os sons, ruídos e vozes de São Paulo, saiu mais caro que o imaginável. “No início, ficamos um pouco nervosas. Colocamos no site com um prazo médio caso precisássemos de um plano B. No final, alcançamos o valor pedido antes do prazo”, ressalta Letícia.

Processo Algumas plataformas online voltadas para crowdfunding funcionam com o método “tudo ou nada”. É o caso de sites como Catarse e Benfeitoria, dois dos mais populares no Brasil. Assim que a proposta entra no ar, o relógio começa a correr. Caso o montante mínimo estipulado não seja atingido dentro do limite, nada é transferido para o projeto e o “investidor” é ressarcido. Por isso Helena Krisman, estudante do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), optou por um valor mínimo mais baixo, que seria suficiente para

deslocar a equipe do curta As noites (in) comuns do Alvorada para outra cidade. Segundo Helena, o orçamento inicial do TCC era de R$ 12 mil. “Ao considerar o valor e o período da campanha no site, optamos por R$ 2 mil”, explica. Lílian, do O virundum, também considerou essas possibilidades. “Podíamos pedir R$ 10 mil e conseguir R$ 7 mil, mas ficaríamos sem o dinheiro. Uma meta real seria R$ 2 mil”, relata Lílian. Luiza Tolosa, participante do projeto DREAM: IN Brasil junto a mais de 200 universitários de todo o país, sabia que depender de crowdfunding para realizá-lo era caminho incerto. Mais ainda por conta do valor almejado: R$ 60 mil. “Acessava o site umas trinta vezes ao dia. Se não desse certo, sabia que o produto final seria afetado.” Não foi. O risco garantiu mais de R$ 1 mil além do pedido e o evento, que buscou discutir novas oportunidade e políticas públicas “baseados nos sonhos do homem comum”, aconteceu.

Doadores As doações em geral são feitas por parentes e amigos. Foi assim com os

Seis universidades participam do projeto: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), UnB, Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

mais de R$ 1,2 mil arrecadados para a produção do espetáculo de dança Pra te ver sentir, TCC do curso de bacharelado em Dança da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Wanessa Di Guimarães, uma das idealizadoras do projeto, afirma: “Todas as contribuições vieram de pessoas conhecidas”. A surpresa acontece quando o dinheiro vem de pessoas desconhecidas. É o caso de um grupo de estudantes da Universidade de São Paulo (USP) que queriam se inscrever no iGEM, uma competição internacional de Biologia Sintética para estudantes. Sem tempo e dinheiro, escolheram um site de crowdfunding americano conhecido por financiar outros trabalhos científicos, e que permitia projetos fora dos EUA. “Duas empresas contribuíram com somas significativas. Para nossa surpresa, muitas pessoas do exterior apoiaram financeiramente o projeto”, lembra o professor Carlos Hotta, à frente do grupo. O segredo, segundo o docente, foi a divulgação. “No começo recebemos pouca atenção. Mais ou menos na metade do período da arrecadação, os alunos fizeram um vídeo que ajudou a vender o projeto nas redes sociais.” A “vaquinha” funcionou. Com o aumento da arrecadação e muito fôlego para fechar a soma desejada, mais de US$ 3 mil foram arrecadados. “Conseguimos. No último dia.”

Edição: Rafaella Felix Diagramação: Pedro Menezes


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Saúde

Transexuais em número, g

Nos primeiros cinco anos, média de cirurgias de troca de sexo realizad

Dayana Hashim e Ramilla Rodrigues gica, psicoterapia individual e em grupo, terapia hormonal, avaliação genética, tratamento cirúrgico e acompanhamento pós-operatório por pelo menos dois anos após a operação. Atualmente apenas quatro hospitais estão autorizados a fazer cirurgias de redesignação sexual custeada pelo SUS em todo o país. São eles: Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), Hospital Universitário Pedro

Ernesto (RJ), Fundação Faculdade de Medicina MECPAS (SP) e Hospital das Clínicas de Goiânia (GO). Segundo o Ministério da Saúde, a lista dos pacientes é de competência das secretarias estaduais de Saúde. Para realizar os procedimentos, é obrigatório ter mais de 21 anos e fazer pelo menos dois anos de acompanhamento psicológico. O número de cirurgias específicas de troca de sexo no

Talita Amorim

Quando criança, Corinne Fernandes – até então um menino – gostava de imitar a irmã mais velha. Descoberta pelo pai, ele a levou até uma das avenidas da cidade e mostrou uma travesti: “Meu pai disse que era daquele jeito que ficava um homem que queria ser mulher, uma aberração”. Aos 16 anos, Corinne descobriu o termo “transexualidade”. “Não me sentia confortável como homossexual, pois não era exatamente o que eu era”, conta Corinne, que fez a cirurgia de troca de sexo em 2009 pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Desde 2008, o Brasil realiza cirurgias de redesignação sexual gratuitamente por meio do SUS. Até dezembro de 2012, foram realizadas 2.451 cirurgias dessa natureza no país. São quase 500 procedimentos por ano, entre orquiectomias (ver glossário), mamoplastias e mudança de genitália. O resultado é muito representativo para os primeiros cinco anos. Para se ter ideia, o número é duas vezes maior que a média de transplantes de coração e pulmão juntos – 232, considerando os últimos cinco relatórios do Ministério da Saúde. De acordo com o ministério, ambos os procedimentos são relevantes por serem classificados como de alta complexidade, pois envolvem tecnologia de ponta e profissionais com qualificação específica. Porém os critérios são diferentes; enquanto na cirurgia de redesignação sexual a escolha depende do tempo de fila e laudos médicos, transplantes envolvem outros fatores como gravidade da saúde do paciente e compatibilidade do órgão. O SUS também oferece avaliação psiquiátrica e psicoló-

Vaidosa, a transexual Bianca Moura experimenta anéis em shopping

Brasil alcançou a casa dos 30 em 2009, mesma média anual de Cuba e México. Nesse caso, os procedimentos incluem amputação do pênis e construção de neovaginas. Argentina e Chile recentemente aprovaram lei que garante a transexuais o direito de fazer a operação custeada pelo governo, mas só começam a realizar cirurgias a partir deste ano. A Tailândia é o país que mais faz cirurgias de redesignação sexual no mundo. Segundo dados da Associação Profissional Mundial para Saúde de Transgêneros, somente os três hospitais mais procurados do país fazem cerca de 2 mil operações por ano. No Irã, desde 1984 o governo custeia a cirurgia porque a relação entre pessoas do mesmo sexo é proibida. Entre 2006 e 2010, 1.336 pessoas modificaram a genitália, o que garante ao país o segundo lugar no ranking. A realização dessas cirurgias através da rede pública de saúde reflete o novo entendimento do termo “transexual”. A Classificação Internacional de Doenças, publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), determina o transexual como portador de “transexualismo” ou “travestivismo fetichista”. A nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria, usa o termo “disforia de gênero”. Segundo a doutora em Psicologia Social e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Jaqueline Gomes de Jesus, que é transexual, a nomenclatura “não indica mais que transexuais e travestis têm transtorno de identidade, e sim que sentem profunda insatisfação, incômodo ou sofrimento”.

Insatisfação O pós-operatório de uma cirurgia que altera o órgão genital de masculino para feminino é complicado e doloroso, pois a nova vagina pode fechar se alargadores não forem utilizados. “Não fiquei totalmente satisfeita, achei que fosse outra coisa. Doía muito, ainda dói de vez em quando. Mas não me arrependo”, revela Corinne. A paisagista Renata Teles, 28 anos, se prepara para fazer a cirurgia. Está na fila desde 2009 e acredita que em 2013 possa ser finalmente escolhida. Renata ouviu falar do pós-operatório, mas também diz que não tem condições de fazer em outros países como Tailândia e Sérvia, lugares conhecidos por adotar procedimentos avançados. Nesses países, a cirurgia de redesignação sexual custa aproximadamente US$ 10 mil (cerca de R$ 20,2 mil). O valor aproximado da cirurgia do SUS é de R$ 1,3 mil para os cofres públicos. Renata consulta psicólogos desde os 16 anos e conta que teve o pedido negado pelo convênio de saúde. “Acionei a Justiça contra o convênio médico, mas o processo foi tão desgastante que eu desisti.” Ela conseguiu atendimento pela rede pública depois de meses de espera. Em 2008, Bianca Moura de Souza

500 É a média de procedimentos de redesignação de sexo realizadas pelo SUS por ano


4e5

gênero e grau

das pelo SUS supera transplantes de órgãos ter sofrido discriminação por parte dos profissionais de saúde. “Eu faço um tratamento para depressão há alguns anos. Quando contei de minha transição, a psicóloga achou um absurdo e disse que eu não tinha esse direito, mas após uma ameaça de denúncia e processo ela se calou.” Raziel, que se identifica como mulher transexual, mas sente atração por mulheres, também enfrentou preconceito por parte do psiquiatra. “Meu psiquiatra achou interessante, mas depois se tornou contra ao constatar que sou lésbica, pensando ser um delírio.” Para a doutora em Psicologia Social Jaqueline Gomes de

Jorge Macedo

ajudou a fundar o Núcleo Trans do Hospital Universitário de Brasília (HUB), que atualmente possui 30 pessoas, mas reclama do atendimento. “Ainda lutamos para sensibilizar os profissionais, que são voluntários. Temos psicólogos, mas ainda faltam endocrinologistas e ginecologistas. Mesmo na rede particular, uma pessoa que necessita fazer a cirurgia não encontra profissionais preparados para atendimento”, conta Bianca. A estudante de Engenharia Física Raziel von Sophia não vê necessidade na cirurgia de troca de sexo, mas pretende fazer uma orquiectomia. Ela também diz

A psicóloga Jaqueline Gomes é referência em pesquisa de gênero no Brasil

Jesus, o preparo dos profissionais de saúde brasileiros para lidar com essa questão ainda está longe do ideal: “Infelizmente falta formação básica para os profissionais de saúde sobre gênero e sexualidade, de modo que, em alguns casos, são adotadas práticas como essas. É uma confusão comum entre vários profissionais, não apenas entre psicólogos”.

Perigos No ano passado, Raziel von Sophia aceitou sua identidade de gênero e começou a viver como mulher. Raziel se trata por conta própria, sem depender do SUS, baseando seu tratamento em artigos científicos. Ela toma três medicamentos por dia que diminuem hormônios masculinos como testosterona, aumentam a quantidade de estrogênio e ajudam a desenvolver características femininas, como seios. Ela desembolsa cerca de R$ 80 por mês e diz não confiar na qualidade dos remédios oferecidos gratuitamente. “Os hormônios providos pelo governo são de baixíssima qualidade. É barato e usado mundialmente, mas pesquisas indicam ser cancerígenos”, justifica. Bianca Moura conta que boa parte das transexuais começa a ingestão de hormônios ouvindo colegas. “As amigas indicam o que funcionou para elas, os medicamentos que dão efeitos mais rápidos, como o crescimento dos seios. Com o passar do tempo, cada uma descobre o que é melhor para cada corpo.” Mas o uso indiscriminado de pílulas anticoncepcionais apresenta complicações à saúde, que vão desde o aparecimento de características androgênicas a desequilíbrios hormonais. Antes de ir ao médico, Corinne recor-

Infelizmente falta formação básica para os profissionais de saúde sobre gênero e sexualidade”

Jaqueline Gomes de Jesus, doutora em Psicologia Social

reu a esse método. “As amigas diziam que ia me tornar mulher, mas só teve complicação. Comecei a sentir enjoos, vômito e, além disso, continuei a desenvolver características muito mais masculinas.”

De mulher para homem Para homens transexuais, há a opção de fazer a retirada das mamas e do útero, além de tratamento hormonal. No mundo todo, a cirurgia de reGênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando nasceu. Diferente de orientação sexual, que é atração afetivossexual por um ou mais gêneros

construção da genitália feminina para masculina é feita de forma experimental. No Brasil, o procedimento é condicionado à pesquisa em hospitais universitários e públicos. As técnicas existentes incluem o desenvolvimento do clitóris, que tem a mesma origem embrionária do pênis, com doses de testosterona. Também é possível construir um pênis com tecidos de outras partes do corpo e próteses de silicone. Marcelo Caetano, estudante de Ciência Política da UnB, é um homem transexual. Ele faz acompanhamento psiquiátrico e psicológico e passa pelo processo de hormonização. Marcelo planeja fazer cirurgias como mamoplastia masculinizadora, mas acha que a tecnologia médica não é avançada o suficiente para fazer a cirurgia de redesignação sexual. “Não conheço um só homem trans que considere os resultados satisfatórios. Ainda assim, é o que temos disponível e, para alguns, ainda é melhor do que ter de lidar com a presença de uma genitália feminina.”

Glossário

!

Orquiectomia

Retirada dos testículos a fim de diminuir a produção de testosterona e dispensar antiandrogênicos, que atuam na redução de características masculinas.

Mamoplastia

Cirurgia de reconstrução das mamas, pode ser de redução ou aumento. A mamoplastia masculinizadora constrói um peitoral masculino.

Transexual

Termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.

Travesti

Pessoa que vivencia papéis de gênero feminino, mas não se reconhece como homem ou mulher, entendendo-se como integrante de um terceiro gênero ou de um nãogênero.

Transgênero

Termo não consensual, caracteriza pessoas que vivem em constante transição ou não se identificam com nenhum gênero..

Homossexual

Pessoa que se atrai afetivosexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se identifica.

Bissexual

Pessoa que se atrai afetivosexualmente por pessoas de qualquer gênero. Fonte: Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos.

Edição: Isabela Bonfim Diagramação: Ananda Borges


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Folia

Ó abre alas... para as marchinhas Ritmo carnavalesco já teve sua fase áurea, mas hoje tropeça para continuar vivo, como no Carnaval de rua em Brasília João Bosco

Luana Luizy Está chegando o Carnaval! E é em ritmo de folia que as escolas de samba e blocos se preparam para uma das celebrações mais esperadas do ano. Um dos ingredientes desta festa são as marchinhas, com letras descontraídas e também provocadoras. E se no passado era comum concurso de marchinhas, hoje o estilo musical encontra dificuldades de espaço no cenário, como explica o saxofonista e professor de música da Universidade de Brasília (UnB) Vadim Arsky: “A marchinha já teve tempos melhores, mas não deixou de existir. Ela não vai acabar, mas hoje há uma maior influência de outros estilos, como música pop inglesa e norte-americana”. O gênero musical tem como característica o compasso binário acelerado das marchas militares, melodias e letras simples. Em Brasília, uma maneira de deixar as marchinhas vivas é o bloco Pacotão, marca carimbada da cidade. “O Pacotão, com seu jeito gozador, mas politizado, representa o resgate das marchinhas”, diz Antônio Testa, antropólogo da UnB. Conhecido pela irreverência na cidade, o bloco surgiu em 1977, durante a ditadura militar, criado por um grupo de jornalistas. Com a eleição do presidente Ernesto Geisel, foi lançado um pacote que alterava a escolha, daí o nome do bloco. Com críticas à mudança, o grupo desfilou no ano seguinte na contramão da avenida W3. Na ocasião, a marchinha que se destacou e ainda é cantada nos dias atuais foi “Ga-gá, gagá, Geisel/ Você nos atolou/ E o Figueiredo também vai atolar/ Aiatolá, Aiatolá, venha nos salvar/ Que esse governo já ficou gagá/ Ga-gá, ga-gá, Geisel...”.

Saiba mais

!

A primeira marchinha de que se tem notícia é da maestrina brasileira Chiquinha Gonzaga e data de 1899: Ó Abre Alas. Entre as marchinhas que fizeram sucesso e ficaram na memória estão Chiquita Bacana (1949), de João de Barro e Alberto Ribeiro, Mamãe eu quero (1937), de Jararaca e Vicente Paiva, e Cachaça, assinada por Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Heber Lobato (1953).

Foliões do DF se encontram no concurso do bloco Pacotão para escolher marchinhas do Carnaval 2013

A marchinha, criação típica de compositores da classe média, tinha a inocência como marca registrada, no século 19. Atualmente, porém, certas letras poderiam ser motivo para censura. “Hoje é tudo muito complexo, fazer marchinha pode gerar ofensa. No passado não tinha a ideia de criar ambiguidade, nem malícia. Atirei o pau no gato, por exemplo. Ninguém queria jogar o pau no gato, mas agora isso poderia gerar discussão nos direitos dos animais,” critica Arsky. O Pacotão possui mais de 400 composições. O primeiro disco do bloco foi lançado em 1985, e de lá para cá foram 12 álbuns. Para este ano prometem lançar uma coletânea

com os hits. “O gênero está em crise, mas queremos incentivar a criação de marchinhas, e que o povo e a classe trabalhadora participem do processo com letras de enfoque social e político”, comenta José Antonio Filho, conhecido como Joka Pavaroti, jornalista e músico membro do bloco. As composições do Pacotão eram espontâneas e procuravam a sátira como forma de brincadeira. “As marchinhas se caracterizavam por um humor inocente, sem maldade e malícia. Com sátira política e letras alegres”, afirma Testa. Em contraponto, Jorge Antunes, maestro e professor de música da UnB, compôs a marcha Fim do mundo, fazendo provocações e críticas ao governador do

Distrito Federal, Agnelo Queiroz. “A marchinha foi composta numa mesa de bar. O conteúdo não é só sarcástico e brincalhão. É sincero, desejando e preconizando a saída de Agnelo e do PT do poder, dando lugar excluO fim do mundo já chegou pro Agnelo e o povo tá feliz com muito filho da puta já pensando no Roriz. Cada aliado deu-lhe pé na bunda. Rato pula fora quando vê que o barco afunda.

sivo para o PSOL, meu partido”, aponta o músico. Antunes também afirma que o bloco deixou de ter uma cara política e contestadora ao governo. “Isso começou já no advento da Nova República e com a ascensão do PT, porque muitos jornalistas fundadores do Pacotão passaram a se empregar ! em cargos públicos de confiança dos novos poderosos.”

Herança portuguesa A marchinha carnavalesca representava o impacto das marchas portuguesas divulgadas no Brasil por companhias de teatro musicado nos primeiros anos do século 19, e depois pelo ragtime americano (gênero que deu origem ao jazz). A maneira de brincar na rua evoluiu para os cordões – pessoas fantasiadas, que avançavam pelas ruas, criando livremente passos que a música lhe sugeria – e esses influenciaram o ritmo. “Essa coisa da folia, de fazer brincadeira, foi herdada pelas marchas. Hoje a marchinha chegou aos morros e também nos desfiles da escola de samba”, alega Vadim Arsky.

Edição: Rafaella Felix Diagramação: Vanessa Arcoverde


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Políticas públicas

Mídia em observação Conselho de Comunicação Social do DF está prestes a sair do papel, mas desinformação prejudica participação popular

Não saiu na televisão e não está nos outdoors, mas o Distrito Federal está próximo de ter um Conselho de Comunicação Social. O Projeto de Lei que cria o órgão assessor ao Poder Executivo na formulação de políticas públicas de comunicação saiu da consulta pública no dia 17 de janeiro e vai ser encaminhado à Câmara Legislativa para ser discutido e aprovado. Depois disso o governador sanciona o texto e instala o conselho. Mas o que isso significa? O conselho vai poder sugerir mecanismos para que a população participe da elaboração das políticas públicas, estimular a pluralidade dos veículos de comunicação e até receber e encaminhar aos órgãos competentes denúncias de violações de direitos humanos cometidos pela mídia. Ele segue o exemplo do primeiro Conselho de Comunicação do país, o da Bahia.

ressados. Para fazer valer esse texto, Jonas Valente, secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF), conta que os movimentos sociais pela democratização da mídia levaram várias ideias para o Governo do Distrito Federal (GDF): “A proposta do Conselho faz parte de uma carta que foi entregue à equipe de transição do governo, em 2010”. Mas o tema não é simples e enfrenta oposição. Na avaliação de Valente, essas iniciativas enfrentam forte resistência porque o empresariado do setor – donos de jornais e agências de publicidade – quer atuar sem qualquer tipo de limite e sem que a população possa avaliar o serviço prestado. Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) não quis se pronunciar. Mas mesmo com dificuldades, o GDF começou a discutir o tema no 1º Seminário de Comunicação Pública do Distrito Federal (ComunicaDF), em agosto de

Direito fundamental Embora a existência do Conselho de Comunicação Social do Distrito Federal esteja garantida na Lei Orgânica, aprovada em 1993, o processo de criação só começou em agosto de 2012. “Não teve interesse político antes disso, tentaram durante o governo Cristovam Buarque, mas a pressão das grandes empresas impediu o debate”, explica Gésio Passos, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação. No capítulo sobre Comunicação Social, a Lei Orgânica garante ao cidadão o direito fundamental de participar dos assuntos da comunicação como maiores inte-

A situação do Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão auxiliar do Congresso Nacional, é semelhante: apesar de previsto na Constituição Federal de 1988, foi apenas no fim de 1991 que a Lei 8.389 o criou. Mas só 11 anos depois começou a funcionar efetivamente. Durou pouco: em 2006 o CCS foi desativado. No ano passado,o presidente do Senado, José Sarney, empossou novos membros em indicação polêmica e sem participação popular.

O conselho atende à necessidade de democratizar o Estado” Jonas Valente, secretário-geral do

Sindicato dos Jornalistas do DF

Vanessa Arcoverde

Guilherme Alves

2012. Durante três dias, mais de 400 pessoas participaram do debate público e, ao final, 12 propostas foram consideradas prioritárias, entre elas a criação de um Conselho de Comunicação. “O conselho atende à necessidade de democratizar o Estado, criando um espaço de participação da sociedade civil e dos setores envolvidos com a comunicação”, destaca Valente. Para Passos, a importância do Conselho é conscientizar a população de um direito fundamental, o direito à comunicação, essencial para a busca de outros direitos. “As pessoas não se apropriam da comunicação, e a gente trabalha para que ela seja vista como direito. Criamos um espaço para debater e garantir isso ao cidadão e não só às empresas”, explica. “É essencial para que o cidadão interfira na vida política.” Para Emily Almeida, militante da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos), é necessário situar a comunicação junto a outras políticas públicas fundamentais, como educação e saúde. “O conselho será um espaço para o cidadão levar suas reivindicações”, afirma. A proposta de conselho para o DF inova ao reservar uma cadeira a estudantes de comunicação.

Divulgação insuficiente Mas a democracia esbarra na falta de participação. O texto de criação do conselho foi colocadoem consulta pública dia 17 de dezembro de 2012 e durou um mês. Para a Subsecretaria de Articulação Social e Novas Mídias (Subsami) da Secretaria de Comunicação do GDF, a participação da população não foi prejudicada por conta do período da consulta – de férias escolares. O texto havia recebido 30 contribuições até o fechamento desta edição. Passos atribui isso à falta de divulgação tanto do governo quanto da mídia. Ele critica os veículos de comunicação: “Não tem visibilidade porque não dão visibilidade, eles não têm interesse”. A atitude do governo também o desagrada: “O GDF gasta tanto em publicidade e não divulga algo tão importante”. Emily acha que a falta de publicidade prejudica o cidadão que desconhece o assunto. “Deveria ser mais divulgado, quem não conhece o assunto não vai ficar sabendo”, afirma. “Que efetividade vai ter?”.

José Sóter, Coordenador de Mobilização e Organização do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e Coordenador Executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), diz que até agora apenas militantes dos movimentos sociais participaram do processo. “Para se popularizar o assunto é necessário realizar audiências públicas ou seminários de comunicação em cada região administrativa, pois assim se amplia o leque dos participantes do debate”, afirma. Pedro Caribé, membro do Intervozes, criou um blog para discutir a atuação do Conselho da Bahia. Ele é o representante do coletivo na instituição e há um ano atualiza o http://vozesbaianas.wordpress. com/ com textos sobre as deliberações do conselho. O Rio Grande do Sul também debate a criação de um conselho estadual de comunicação. O texto será enviado para a Assembleia Legislativa neste ano. No Distrito Federal, o projeto está encaminhado, mas Passos afirma que a luta ainda não acabou: “Depois da consulta, queremos participar do fechamento do texto e mobilizar a sociedade para que o legislativo aprove”.

Edição: Rogerio Verçoza Diagramação: Vanessa Arcoverde


Campus | Brasília, 22 a 28 de janeiro de 2013

Página 8 Crônica

Gabriela Alcuri

Thiago José

– Falando sério, Isa, por quê? – Porque não, porque não quero, não gosto, acho chato, feio, sei lá. – Sério, justo você que sempre tem resposta pra tudo me vem com um “porque não gosto”? Justifica sua resposta aí, vai. – Não, Babi. Tenho medo de te ofender. – Me ofender? Isa, eu sei exatamente onde estarei daqui a cinco anos, ganho um ótimo salário, trabalho só seis horas e nem preciso de curso superior, faço só porque quero. Só não entendo por que tu não larga essa vida de cansaço, dez horas de trabalho,

estresse, pouco dinheiro, sabe? Faz um concurso! – Antes de eu responder, me diz: por que você fez um concurso? – Estabilidade e dinheiro – disseram as duas juntas. – Ué, criatura, mas se você já sabe por que perguntou? Eu pelo menos faço perguntas genuínas, hein, e depois você que é a jornalista... – Babi, eu te perguntei pra te responder. Esses são os principais motivos pra fazer um concurso, pra não dizer os únicos. Claro, há os que sonham em ser juiz, delegado, perito, professor de crianças da rede pública ou médico para os que não podem pagar. Mas, e pelamordeDeus não quero te ofender, ninguém quer genuinamente ser bancário, auditor, técnico. – Ah, Isa, ninguém é demais né... Claro que tem gente que quer. Por isso é tão concorrido... – Não, Babi, nem vem. O motivo da concorrência é o dinheiro e a estabilidade. Já viu alguma criança dizendo “aah, quando eu crescer eu quero ser técnico da polícia civil” ou “auditor do TRT”? Não, eles dizem “quero ser policial” ou “o que é TRT”? Cê tá entendendo? – Ah, entender eu entendo, Isa, mas não concordo muito não. Pra ficar na sua área, que criança vai dizer “quero ser diretor de cinema” ou “publicitário”. É exatamente a mesma coisa: “quero ser atriz” ou “o que é publicitário”, sabe? – Entendo perfeitamente, mas ninguém entra pro curso de comunicação pensando em ser

atriz ou sem nem saber o que é publicidade. É um sonho mais tardio, mas, ainda assim, legítimo. – E passar num bom concurso, por acaso, não é um sonho legítimo? – Claro que é, Babi, claro que é! Mas, como eu já disse antes, é poucas vezes um sonho pela profissão ideal e muitas vezes por dinheiro ou estabilidade. Você não precisa de nenhuma vocação especial para trabalhar em quase nenhum dos lugares que fazem concurso. E eu acho uma pena você, por exemplo, ter feito um. Você seria uma bióloga brilhante e sabe disso... – Pena, sério? Olha, não vem falar de vocação não porque tu não tem a menor ideia do que é estudar pra concurso. Sem falar da agência no dia do fechamento. Sério, se você não tiver um preparo psicológico fodido é capaz de passar mal ou desmaiar. Fora que, pra passar, é preciso ser muito inteligente, organizado, centrado, dedicado... – Viu, era disso que eu tava com medo. De ofender a sua profissão. Não tô desmerecendo, Bárbara, eu imagino que ser bancário tem lá seus desafios e não devem ser poucos; mas acho, de verdade, que quase qualquer um pode aprender o trabalho e que não é preciso uma vocação prévia. E o que você disse da necessidade de ser muito inteligente e dedicado, eu concordo plenamente... Mas pra passar no concurso. E lá dentro? Você precisa ser alguma coisa desse tipo? E não vem ignorar meu comentário sobre a biologia. – Olha, Isabela, eu amo biologia. Amo mesmo, por isso que tô fazendo faculdade, justamente pra aprender mais. Mas o mercado de trabalho é foda, eu vou ser bióloga e fazer o quê? Virar professora? Porque

pra ser pesquisadora no Brasil... Sei não. E outra coisa também, eu amo o meu trabalho, meus colegas... Claro, tem dias sem muita coisa pra fazer. Dias improdutivos, dias mais parados. Como em qualquer profissão, até na sua. Vai dizer que fechar jornal no domingo é igual na segunda? – Ai, mas é tão típico de vocês culpar o mercado de trabalho. Eu conheço o caso de uma mulher que, por conta da “falta de mercado” passou num dos melhores concursos, desses que pagam R$ 13 mil de inicial, e largou porque disse estar emburrecendo. Só tirava xerox o dia inteiro e aprendia procedimentos técnicos ou administrativos. Não tinha espaço pra criatividade. Daí ela largou e, adivinha? Trabalha num curso de línguas. Ensina de seis a dez idiomas. O mercado só é ruim pra quem é mediano, o que não é o seu caso. – Ah, mas Isa, ela é um caso em um milhão. Depois que a gente passa, não tem mais vontade, nem coragem, de sair, sabe? É bom ganhar muito, ter um horário fixo, saber que você não vai ser demitido de acordo com o humor do seu chefe... – Ai, Bárbara, mas tu parece a minha mãe, hein? Todo dia ela vem e fala: “Vai, pode criticar o banco o quanto quiser, mas eu vou aposentar ano que vem, com 48, e você? Vai aposentar um dia?” E meu pai... “Ah, mas filha, você estudou tanto e ganha tão pouquinho. Por que isso? Faz um concurso... Vai ser bom pra você, como é pra mim e pra sua mãe.” E não vou nem começar a falar nos tios...

– É, tio é foda mesmo. – Pois é. Mas cara, Babi, eu sei lá quando eu vou aposentar. Sei lá quando vou ganhar mais ou se vou ter um emprego amanhã. Mas eu amo o meu trabalho, amo acordar cedo e dormir super tarde, amo passar o dia inteiro na redação, porque amo o que faço. E ninguém precisa me garantir estabilidade ou me pagar super bem pra isso, entende? – Viu, agora eu entendo, cabeçuda. Por que tu não disse antes? “Não quero fazer um concurso porque sou doida: estou feliz com meus míseros dois mil por mês e gosto de trabalhar o dia inteiro.” – Melhor que você, Senhorita Dinheiro e Estabilidade.

Edição: Rogerio Verçoza Diagramação: Pedro Menezes


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