BRASÍLIA, NOVEMBRO 2018
Campus
NÚMERO 447, ANO 48
Sociedade anônima do bem
Histórias de ações individuais que criam redes de solidariedade no Distrito Federal
Leia também:
SUPLEMENTO ESPORTIVO
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
CARTA ao leitor
P
essoas que fazem a diferença. No Distrito Federal, elas estão em todos os lugares, muitas sem reconhecimento. O Campus desta edição traz para o leitor experiências de superação, inclusão e esperança. Ao todo, serão nove histórias diferentes. Cada um com sua especificidade. Os 12 rostos desses relatos são diversos. Bruno Feittosa,
Expediente
Fábio Felix, Ludmila Correia, Tullio Guimarães… Essas e outras histórias são contadas nesta edição, trazendo a luta e o voluntariado como frentes de combate dentro da militância da empatia. Além disso, contamos com um especial suplemento de esportes produzido com matérias de alunos da disciplina de Jornalismo Esportivo.
OMBUDSKVINNA
A “provedora de justiça”, profissional que discute a produção dos jornalistas pela perspectiva do leitor.
A
edição anterior do Campus revela um olhar atento dos estudantes aos novos estilos de vida e à solidariedade para enfrentar problemas, como o revenge porn. Esse cuidado fica evidente em todas as matérias do jornal, as quais tratam de novas formas de lidar com a economia, os espaços, saúde, as práticas medicinais e o suporte nos casos de vazamento de imagens íntimas na internet. Os conceitos de colaboração, bemestar e aproveitamento dos espaços norteiam a edição e dão um tom menos investigativo e mais factual ao jornal. Em Agrofloresta da comunidade, foi feita uma boa descrição sobre as plantações no quintal da Unidade Básica de Saúde do Lago Norte. Por mais que o sistema tradicional de farmácia viva exista há mais de duas décadas, o trabalho colaborativo para a implantação da agrofloresta aparece como algo novo. A narrativa foi bem construída e contou com a riqueza de detalhes e as entrevistas com o idealizador do projeto. Mas a reportagem deixa uma sensação de ausência do ponto de vista dos pacientes que serão diretamente afetados pelas práticas da farmácia natural. A matéria Aposentados do sedentarismo tem um cuidado fundamental com o público que mais cresce em nosso país, os idosos. O texto tem uma escrita clara, objetiva e a pauta é original do ponto de vista jornalístico. A história contada a partir do hábito da personagem Erenice Maria faz com que a leitura seja mais fluida, mas, ao mesmo tempo, quando se fala nas atividades voltadas para os idosos é gerada no leitor a expectativa de uma descrição detalhada desses exercícios, o que não acontece. A reportagem central, Alternativas ao abandono, faz bom uso dos recursos visuais para mapear os prédios abandonados em Águas Claras. E ela tem grande valornotícia por sua crítica às autoridades que
negligenciam a fiscalização e também pelo exemplo criativo de reutilização dos espaços para fins educativos e culturais. Para aprimorar a apuração, seria necessária a cobrança aos órgãos responsáveis para que a situação desses espaços fosse legalizada e novas medidas fossem tomadas para evitar futuros abandonos. Jovens sofrem com divulgação de cenas íntimas na internet é a matéria com tema mais próximo do público do Campus. Trata de um problema atual com o cuidado necessário as fontes e exerce bem a função social do jornalismo de prestar um serviço às pessoas ao divulgar a ONG SaferNet, de apoio às vítimas de revenge porn. Diante do cenário de 27,6 milhões de desempregados, segundo o IBGE, a matéria sobre economia colaborativa ressoa como uma alternativa para os produtores artesanais e demais empreendedores. O assunto tem apelo jornalístico pela atualidade, mas a matéria falha ao se restringir a uma única loja de economia colaborativa, o que não se justifica ao longo do texto, pois em se tratando de colaboração como uma alternativa à crise existem outros exemplos a serem citados. O Campus trouxe como ponto central o bem-estar, que aparece na juventude ao cuidar da saúde mental diante de episódios de vingança; dos idosos que buscam mais qualidade de vida; entre os profissionais da saúde que pensam em uma farmácia natural e também no cuidado com o meio ambiente; entre os produtores culturais e educadores que sugerem a reutilização dos espaços e os empreendedores que promovem uma economia colaborativa e mais sustentável, voltada para o bem econômico e ambiental. Essa é uma das edições do jornal que transcende o espaço universitário e dialoga com diferentes faixas etárias. Por Thallita Essi
CAMPUS Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) PROFESSORES Sérgio de Sá Solano Nascimento EDIÇÃO Mariana Santos Robson G. Rodrigues REPORTAGEM Ana Laura Pinheiro Caroline Zampiron Cristina Kos Eline Sandes Gabriel Esobar Geovana Melo Iara Santos Isadora Martins Israel de Carvalho João Guilherme Romariz João Pedro Lima Luis Alberto Mateus Maia Marcella Rodrigues Millena Campello Millena Sousa Pedro Henrique Gomes Robson G Rodrigues Thamiris Soares Victor Farias DIAGRAMAÇÃO Filliphi da Costa Mariana Santos IMPRESSÃO Gráfica Coronário TIRAGEM 3.000 CONTATO nascimento@unb.br
CAPA
COLAGEM Filliphi da Costa
MEMÓRIA Em 2008, militantes do movimento estudantil da UnB fizeram uma série de manifestações que terminou com a renúncia o reitor Timothy Mulholland, denunciado por irregularidades orçamentárias na gestão de 2005 a 2008, e depois absolvido. Na época, Fábio Félix, então estudante de Serviço Social e uma das personagens desta edição, participou da ocupação da reitoria. A edição de abril de 2008 do Campus contou com um suplemento especial que narrou todo o processo de negociações, desde o início da ocupação até a escolha do novo reitor. Neste ano, a ocupação que ajudou a derrubar Mulholland completa uma década. Neste mês, outro movimento estudantil importante da UnB, a ocupação da Universidade em 2016, completa dois anos.
Confira edições antigas do Campus: desde 1970 - bdce.unb.br/collections/show/7 a partir de 2013 - issuu.com/campusunb
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
REPORTAGEM | VICTOR FARIAS
Todas as cores da fé LGBTs cristãos rompem barreiras do preconceito e fortalecem relacionamento com Deus
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omossexual assumido, o assessor da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Bruno Feittosa vai à missa todos os domingos. Quando tinha um namorado, a frequência não era diferente. Semanalmente os dois iam à igreja como um casal. “Eu não acho justo que eu participe da igreja sem que as pessoas saibam que sou gay”, conta. Desde 2013, o funcionário da CNBB e outros membros da comunidade LGBTs cristãos se reúnem duas vezes por mês em Brasília para conversar e orar. O grupo, que recebeu o nome Diversidade Cristã, promove reuniões que acontecem em um espaço mantido por jesuítas, uma das mais tradicionais ordens católicas. A relação de Feittosa, coordenador e fundador do grupo no Distrito Federal, com o tema – homossexualidade e religião – é antiga e começou ainda no Rio de Janeiro, onde o assessor morou até 2009. Ali, ele conheceu uma junção que parte da comunidade católica e da comunidade LGBT não conhece ou não entende: a possibilidade de ser gay e cristão. No Brasil, o cristianismo e a luta pelos direitos LGBTs geralmente estão em lados opostos. Na eleição deste ano, na qual o candidato Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente, essa separação foi identificada nas pesquisas eleitorais. De acordo com dados do Datafolha de 26 de outubro, na véspera do segundo turno, o candidato derrotado Fernando Haddad (PT) tinha 57% das intenções de votos entre LGBTs. Já Bolsonaro, 29%. Entre os evangélicos, o cenário se invertia, segundo uma pesquisa anterior do instituto divulgada no dia 10 de outubro. Nesse público, Bolsonaro liderava com 61%, enquanto o petista tinha apenas 26%. No caso dos católicos, o capitão reformado também tinha melhor desempenho, 46% a 39%. Nesse contexto de separação, Feittosa, cristão e LGBT, faz parte de uma minoria. Apesar disso, não estava dividido na hora
de votar. Para ele, as falas do presidente eleito, principalmente as que dizem respeito a democracia e minorias, são preocupantes. “Neste momento, a gente tem que estar alinhado, empoderado, para não ser massacrado”, afirma. Feittosa é católico desde criança. Conheceu a religião dentro de casa, com os seus pais, que também professam essa fé. Quando percebeu que sentia atração por homens, mesmo que algumas pessoas dissessem que isso era um pecado, continuou a frequentar atividades ligadas à religião, mas sem trazer o assunto à tona. “Eu tinha muito receio de ser descoberto”, diz. Em 2008, Feittosa passava por um momento de mudança na sua fé. O carioca estava começando a se relacionar com outro homem e não se sentia confortável nos grupos de oração de que participava e que ainda não tinham ciência da sua orientação sexual. Nesse mesmo ano, conheceu o movimento no Rio de Janeiro que ajudou na ressignificação da sua relação com a igreja e com Deus, o Diversidade Católica. “Eu vi que era possível ser LGBT e ser cristão”, afirma. Em 2010, Feittosa se mudou para Brasília e perdeu o Diversidade Católica, mas continuou indo às missas. A primeira igreja que visitou aqui não lhe pareceu receptiva a um homem abertamente gay. Acompanhado do namorado da época, foi a outra paróquia e se sentiu acolhido. Decidiu permanecer ali. Dois anos depois de chegar a Brasília, Feittosa recebeu um convite do padre Ramon Cigoña, diretor da residência dos jesuítas de Brasília, para trazer o Diversidade para cá. Receoso a princípio, o assessor aceitou e fundou o Diversidade Cristã no ano seguinte. O grupo é voltado principalmente para LGBTs cristãos que desejam se reconectar com Deus, mas também recebe heterossexuais. Uma das participantes é Marina Monteiro, membro da iniciativa desde 2014 e atual coordenadora do projeto, junto com Feittosa e mais cinco pessoas. Monteiro também teve uma formação católica, mas, ao se assumir lésbica, passou a se sentir desconfortável na igreja que frequentava. “Eu pensei que realmente aquele não era meu lugar”, conta. Ela passou um ano afastada de atividades religiosas e só retornou quando conheceu o Diversidade Cristã. Atualmente, frequenta o grupo com sua namorada. A Bíblia tem algumas passagens que são base de pensamentos contrários à homossexualidade, como o versículo 22 do capítulo 18 do livro de Levíticos, que diz: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é”. Questionada sobre esses textos, Monteiro explica que a Bíblia tem que ser lida de forma contextual, e não fatiada. O grupo não tem um pensamento único sobre o tema, mas Feittosa concorda com a leitura feita por Monteiro. “A gente não pode pegar só um trecho da Bíblia para entender. Temos que ver o contexto”, diz. LIDERANÇA E DENÚNCIA Em junho deste ano, Feittosa foi eleito vice-coordenador da rede de Diversidades Católicas e Cristãs, durante o 2º Encontro Nacional de Católicos LGBTs, em São Paulo. Funcionário do maior órgão da Igreja Católica no Brasil, Feittosa é assumidamente homossexual para seus chefes e superiores. No evento em que recebeu a nomeação, o coordenador do Diversidade Cristã segurava uma bandeira de arco-íris, símbolo da comunidade LGBT. Quando voltou a Brasília, descobriu que haviam enviado uma foto sua com a bandeira no pescoço para o bispo, criticando-o pelo ato. O seu superior, que sabia do motivo da viagem, não se incomodou com a foto, mas preferiu deixar Feittosa ciente da situação. Essa não é a primeira vez que o grupo sofre denúncias por membros da comunidade cristã. “A gente sabe que tem gente que não gosta e que persegue”, conta. Mesmo com as denúncias, o assessor da CNBB acredita estar numa situação confortável. “A minha história foi muito privilegiada, porque lá atrás eu encontrei um padre que me acolheu”, explica. Ele entende que a maior parte da comunidade não tem a mesma sorte. Por isso, luta para que os LGBTs sejam respeitados e aceitos: “Sim, a gente existe, e também somos parte da igreja.” C Bruno Feittosa é um dos coordenadores do grupo Diversidade Cristã em Brasília. (Foto: Acervo pessoal)
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REPORTAGEM | CRISTINA KOS
Representatividade importa Fábio Felix é uma aposta de defesa dos direitos humanos na Câmara Legislativa do DF
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ntre o primeiro e o segundo turno das eleições deste ano, Fábio Felix esteve na Universidade de Brasília (UnB) em um evento sobre a disputa presidencial. Também estiveram presentes Guilherme Boulos (Psol), Sônia Guajajara (Psol) e Erika Kokay (PT). A adesão à candidatura de Fábio já havia aparecido em abaixo-assinado da UnB, com cerca de 80 professores que recomendavam o voto nele. Fábio falou para centenas de pessoas da comunidade universitária. Foi aplaudido com admiração. Fernanda Granja, assistente social filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e amiga de Fábio, também se emocionou durante o discurso: “Me senti representada. Era como se eu estivesse falando”. O pensamento coletivo a favor dos direitos humanos faz parte de Fábio Felix. Em 2019, ele será o primeiro deputado assumidamente gay a ocupar uma cadeira na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Antes disso, teve uma trajetória de luta e resistência. “Não tem como você separar o Fábio da militância e o Fábio pessoal, é a mesma coisa ali, se misturam”, diz Fernanda. O agora deputado eleito construiu no Psol uma proposta que levanta fortemente a bandeira LGBT, mas que não deixa de incluir outros grupos vulneráveis e a luta contra o conservadorismo em várias frentes. Em 2014, Fábio Felix lançou a sua primeira candidatura como deputado. Recebeu 6.257 votos. Este ano, foi eleito com mais de 10 mil votos. Sua história começa bem antes. Fábio nasceu no Guará em 1985, tem duas irmãs e foi criado na doutrina da igreja evangélica. Na escola, sofreu homofobia mesmo quando ainda não tinha internalizado que era LGBT. Com 16 anos “saiu do armário” e começou a militância. Assumir-se gay foi um ato político e de resistência. Para ele, o processo de transição foi bastante complexo: “Me entendia feliz, realizado enquanto LGBT mesmo tendo vindo de uma história de muita culpa”. Hoje, já não possui mais religião. Em 2004, ingressou na Universidade de Brasília para cursar Serviço Social. Fábio entrou para o Diretório Central dos Estudantes (DCE). No ano seguinte, estava na fundação do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) no Distrito Federal. Em 2017, Fábio se tornou o presidente local do partido. Em 2008 foi coordenador-geral do DCE. Esteve presente na ocupação da reitoria da Universidade, que contou com mais de 5 mil estudantes. O movimento estudantil permitiu a Fábio se descobrir como um “agente político coletivo”. Também na UnB, esteve presente na fundação do Klaus, grupo ativista LGBT dentro da instituição. Essas atuações na universidade refletem em uma militância também por educação de qualidade, diversa e para todos. Uma de suas propostas para o mandato é o Escola de Todas as Cores – programa para garantir educação de respeito às diferenças. ONDA RETRÓGRADA A conjuntura conservadora exigirá uma esquerda resistente. “Esse cenário vai pedir de nós uma responsabilidade histórica muito maior. Talvez em outro momento o mandato pudesse ter uma atuação mais criativa, uma atuação mais propositiva. A gente vai ter que ter um mandato que é uma central de enfrentamento à violação de direitos”, acredita Fábio Felix. Na visão do presidente nacional do Psol, Juliano Medeiros, o aumento das candidaturas do partido representa uma “defesa dos direitos sociais e econômi-
Fábio Felix de volta à sua universidade para um diálogo com os estudantes sobre os avanços do fascismo. (Foto: Mariana Santos/Midia Ninja)
cos” com uma plataforma de combate às opressões de gênero, racial e LGBT. “É preciso integrar, como dimensão estratégica de um projeto de justiça e igualdade, o fim de todas as formas de restrição às liberdades e maneiras de viver e amar”. Em Fábio Felix reside a responsabilidade dessa resistência qualificada no DF. C
PANORAMA BRASIL Ao comparar as eleições de 2014 e 2018, nota-se um aumento de 386,4% de candidaturas LGBTs. A porcentagem totaliza 160 pessoas que pleitearam uma vaga no legislativo como deputados federais, estaduais ou distritais. Grande parte dessas candidaturas se dividem em partidos de esquerda: mais de 20% são do Psol, 16% do Partido dos Trabalhadores (PT) e 13% do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Das 160 pessoas, nove foram eleitas. Em 2014, apenas o deputado federal Jean Wyllys do Psol havia sido eleito. Outra novidade é a eleição no Espírito Santo do primeiro senador assumidamente gay, Fabiano Contarato, da Rede, que recebeu 1.117.036 votos. Contarato desbancou a candidatura do conservador Magno Malta (PR).
Candidaturas LGBTs eleitas em 2018
Erica Malunguinho (Psol – SP) - Deputada Estadual Erika Hilton (Psol – SP) - Deputada Estadual Fábio Felix (Psol – DF) - Deputado Distrital Isa Penna (Psol – SP) - Deputada Estadual Leci Brandão (PCdoB – SP) - Deputada Estadual Robeyoncé Lima (Psol – PE) - Deputada Estadual Jean Wyllys (Psol – RJ) - Deputado Federal Talíria Petrone (Psol – RJ) - Deputada Federal Fabiano Contarato (REDE – ES) - Senador
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REPORTAGEM | IARA SANTOS
Colocando a mão na massa Duas arquitetas ajudam moradores de ocupação em Planaltina a construir suas casas
Comemoração do primeiro ano do Acampamento Maria da Penha Resiste, em maio de 2017. (Foto: Mídia Ninja)
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arquiteta Ludmila Correia teve seu primeiro contato com a ocupação Maria da Penha Resiste, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ao cursar uma disciplina na Universidade de Brasília (UnB). Foi em um evento do curso que pôde conhecer o movimento e a ocupação em Planaltina- DF, notando o quanto eles são bem organizados, e quanto é legítimo o trabalho dos mesmos. Os ocupantes tinham ganhado lotes da Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab) e não faziam ideia de por onde começar as construções, logo Ludmila decidiu que quería contribuir com o possível aceitando o convite para ajudá-los a pensar as casas, e de pronto atende-los, se tornando arquiteta social do projeto. Ao receber o convite Ludmila não pensou duas vezes e falou: ‘Uai, vambora”. E no final de semana seguinte eu estava lá”, recorda Ludmila. Ela convidou uma outra arquiteta, Jhennyfer Pires, que também se entusiasmou com a ideia. “A
gente tem um aprendizado de ambas as partes”, diz Jhennyfer. “Da mesma forma que a gente consegue ajudar eles, a gente também é muito ajudada, é uma troca de experiência muito grande. Tivemos a oportunidade de aplicar um conhecimento técnico que a gente possui, de forma a ajudar o próximo. A gente fez o projeto todo no coletivo, com outros arquitetos e engenheiros.” PRONTOS PARA A AÇÃO Depois de visitas periódicas e rodas de conversa com os moradores, a equipe de arquitetos pôde enfim dar o ponto de partida no final de 2017 para a modelagem do projeto. Foi criada uma base para todas as casas, e esse modelo emergencial de construção mínima foi criado de forma coletiva com as famílias dos moradores durante assembleias. A partir disso, o projeto foi desenvolvido com cada família a partir de necessidades específicas, como a quantidade de filhos. A primeira parte construída pres-
supõe um modelo de ampliação, já que as famílias podem ampliar suas casas em futuro. ”Depois do módulo de embrião, fomos para o regime de mutirão, todo mundo ajudando na casa de todo mundo”, conta Ludmila. Durante o mutirão todos trabalharam braçalmente, homens, mulheres, arquitetos e engenheiros. Ludmila e Jhennyfer vão todo fim de semana dar assessoria e acompanhar a construção na antiga ocupação, que agora se chama Assentamento Nova Petrópolis. “É gratificante cada vez que você vê o reconhecimento deles, de gratidão, por fazer algo que eles nunca teriam imaginado que poderiam ter”, diz Ludmila. O MTST é um movimento de caráter social e político, que divulga como objetivo organizar trabalhadores a partir dos locais em que vivem. Como outros movimentos sociais, o MTST sofre duras críticas. A ocupação em Planaltina começou há quase dois anos. C
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reportagem | Eline Sandes, Marcella Rodrigues e Millena Sousa
Instituto Amigos do Bem e o poder do voluntariado Projeto social de Samambaia vislumbra melhor qualidade de vida à população da cidade-satélite
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amilton Teixeira dos Santos, o “Tatu do Bem”, como é conhecido, tem 41 anos e é o responsável pela criação do Instituto Sociocultural Amigos do Bem (Isabem), que funciona em um prédio verde da QS 106 em Samambaia do Sul. Ele resume o objetivo da entidade que criou: “Tirar os jovens de Samambaia do mundo das drogas”. O Isabem foi criado a partir do grupo folclórico Quadrilha Junina Pau Melado, em 1999. Hoje, a instituição oferece 16 modalidades nas áreas de esporte e cultura, que incluem balé, capoeira, jiu-jitsu e aulas de violão. O projeto é gratuito e atrai centenas de crianças. A estante de troféus na secretaria da instituição não deixa dúvidas: o grupo é um dos mais premiados do Distrito Federal. Para Tatu, no entanto, o importante não é ganhar, mas ajudar a comunidade. “Aqui os alunos aprendem e depois ensinam”, afirma. Muitos ex-alunos passam a dar aulas para as crianças do instituto. A correria e os sons testemunham o trabalho da instituição. Do andar de cima escuta-se o som de violões. Perto da secretaria, meninas vestidas como bailarinas dão gargalhadas enquanto as mães conversam com Flávia Vieira, secretária do Isabem. Assim como os outros 20 funcionários que atuam regularmente no projeto sociocultural, ela é voluntária. Aos 40 anos de idade, gerencia as matrículas dos novos alunos, controla os horários das aulas, organiza materiais, envia mensagens via Whatsapp para professores e conversa com pais de alunos. Isso tudo à frente da tela de computador, em uma mesa onde se
encontram documentos e papéis bem organizados. “Existem os professores formados e existem os da comunidade”, explica Tatu. Para ele, os da comunidade são melhores, pois conhecem e convivem com a vulnerabilidade social em que se encontram os alunos. Tatu não deixa nenhum professor faltar. Segundo ele, seria decepcionante para as crianças dirigirem-se ao instituto e não terem aula.
Financiamento
A Isabem é uma das únicas instituições da região que conta com ajuda da Lei de Incentivo ao Esporte (n° 11.438/2006). Essa lei estimula empresas e pessoas físicas a investirem parte do que pagariam de Imposto de Renda (IR) em projetos esportivos aprovados pelo Ministério do Esporte. Tatu explica com detalhes a burocracia para se enquadra na lei, e diz que isso não é divulgado como deveria. “Tive que correr atrás de tudo”, conta. Apesar da colaboração dos voluntários, é preciso cobrir as outras despesas do instituto, como os gastos de equipamentos e materiais para a realização das atividades. O dinheiro sai das doações e de patrocinadores. Um dos mais importantes é Fernando Botelho, dono da rede de supermercados Superbom, e amigo de Tatu. O patrocínio foi conquistado por intermédio da lógica: “Eu disse para ele: ‘olha, se estes meninos não tiverem um projeto que os tirem da rua, logo eles vão estar apontando um revólver para você e assaltando o seu mercado’”. O amigo cedeu e hoje é o principal fornecedor de lanches e de doces para as crianças do projeto. C
Flávia em frente ao seu computador de trabalho, na secretaria do Isabem. (Foto: Eline Sandes)
SUPLEM ENTO ES PORTIVO SUPLEM ENTO REPORTAGEM | VINICIUS VELOSO CAMPUS, NOVEMBRO 2018
Cesta de três pontos De casa nova com a inauguração do ginásio Pipokão, o Cerrado Basquete mantém projetos sociais de inclusão mesmo com a falta de investimentos
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rasília sempre foi uma das capitais nacionais do basquetebol. Com elencos fortes, formados por investimento de patrocinadores, a cidade caminhou até a glória nas ligas profissionais do esporte por quatro vezes, sendo duas como Universo/BRB e duas como UniCeub/BRB. Os jogos eram sediados no Ginásio da Asceb e no Nilson Nelson. Atualmente, o Universo/Caixa é o time que atua nos ginásios, em partidas da Liga Nacional de Basquete. E, com uma tradição forte espalhada pela cidade de projetos sociais que incentivam a prática do basquetebol, surgiu um clube. O Cerrado Basquete, fundado em 2016, é mais um time de Brasília no cenário nacional. Conhecido pelas cores verde e branca, segue caminho oposto ao que a franquia Uni construiu na capital federal. Sem grandes patrocinadores, com foco na garotada da base e projetos sociais espalhados pelo Distrito Federal, trabalha em prol da proliferação do esporte na cidade. Atualmente disputa a Liga Ouro, que dá acesso à elite nacional de basquete. Mesmo com pouco capital disponível, o time alviverde inaugurou um novo ginásio, no clube da Associação dos Empregados da Eletronorte (Aseel), reformado com recursos financeiros do clube. O complexo esportivo custou R$ 121.434,52 aos caixas do Cerrado e recebeu o nome de João Vianna, mais conhecido como Pipoka, um dos maiores jogadores do esporte em Brasília. O presidente do Cerrado Basquete, Dimitri Rodrigues, explica a nomeação do ginásio, que já está sendo chamado de Pipokão pelos torcedores: “O Pipoka foi um grande ídolo meu do basquete. Quando da construção do ginásio me veio a ideia de homenagear algum atleta e o nome dele surgiu após conversar com um amigo”, revela. O ex-jogador agradece a lembrança. “Foi uma grande surpresa. Eu já estou fora das quadras, do meio do basquetebol, há 11 anos. De uma certa forma, é o reconhecimento de uma vida dedicada ao basquetebol. E ser lembrado com esse carinho, pra mim, é muito importante.” Com instalações de alto nível, a nova casa do Cerrado funciona como arena para disputa de jogos profissionais e como incentivo para o consumo do esporte pela população do Distrito Federal. O ginásio possui uma estrutura com equipamentos de qualidade, facilitando o desempenho dos atletas. O ala Alan Monteiro, que faz parte do elenco principal da equipe, destaca as vantagens de atuar em uma arena
de nível nacional. “A arena é uma das melhores do Brasil. A quadra tem um piso móvel com amortecimento, além de tabelas, aros e suportes oficiais. A arquibancada e o vestiário também aumentam o conforto de quem vai jogar. O ambiente todo facilita para o atleta de alto rendimento que trabalha em uma intensidade mais alta. Diminui as chances de lesões e aumenta a segurança, prezando por quem está ali na quadra”, explica o jogador. Além da construção do ginásio que será a nova casa do time, o clube alviverde tem projetos sociais em conjunto com o Instituto Federal de Brasília (IFB), em São Sebastião e no Gama, que prezam pela inclusão da sociedade no esporte e a formação de cidadãos conscientes. Com atividades diversas, ajudam na socialização de crianças, jovens e adolescentes, que podem vir a ter um futuro no time de basquete da cidade. “O interesse de novas pessoas pelo basquete é um trabalho mais profundo que o Cerrado tem procurado desenvolver nas suas categorias de base masculina e feminina, bem como no trabalho dos Núcleos de Formação Social. Lá promovemos o ensino da modalidade em regiões que até então não possuíam este tipo de trabalho para seus moradores”, explica Dimitri. João Victor Magalhães, de 16 anos, é um dos garotos que participa do projeto de formação do Cerrado, na unidade do Gama. O atleta conta que o núcleo de desenvolvimento resgatou o sonho de ser um jogador profissional. “Eu tinha desistido do sonho por ter começado no basquete tarde, com 13 anos. Mas ao receber essa oportunidade, a motivação vol-
tou. O projeto de formação do Cerrado com os núcleos abre possibilidade de aprendizagem não só no basquete em si, mas também nos ensina a ter disciplina e nos tornar melhores cidadãos. Agora todos estamos dando o máximo em prol de um futuro no time”, diz o adolescente. Pipoka ressalta a importância dos projetos de basquete pela cidade como revitalização do esporte e de casos semelhantes ao do João Victor. “Todo projeto que envolve crianças, adolescentes, que envolve o treinamento e busque algum local para que eles possam praticar o basquetebol, abrindo a possibilidade de se descobrir uma joia rara, um diamante bruto, é muito bem-vindo. É uma coisa muito bacana essa busca pela perpetuação desse nosso legado fantástico do basquetebol.” E completa com críticas à falta de iniciativa privada e de projetos governamentais para perpetuar a importância do esporte na cidade. Para ele, os agentes esportivos do Distrito Federal têm que realizar bons projetos e buscar investimentos para elevar as chances de realizar um trabalho de qualidade. “Falta incentivo. Muitas pessoas colocam dinheiro do próprio bolso para bancar esses projetos. E a gente não pode ficar acreditando que o governo tem que ser a mãe de todo mundo”, pontua o ex-jogador Pipoka. “O incentivo tem que vir de bons projetos e de captação junto à iniciativa privada, assim como acontece em outros países do mundo. Cabe a nós convencê-los a aplicar dinheiro em prol do basquetebol, a fim de viabilizar novas oportunidades de vida para esses garotos.” C
Da esquerda para a direita, Dimitri Rodrigues, Alan Monteiro, Pipoka e Denis Tavares. (Foto: Arquivo pessoal/Alan Monteiro)
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MENTO ESPORT IVO SUP REPORTAGEM | MATEUS MAIA E PEDRO HENRIQUE GOMES
Compram-se e vendem-se craques Empresários de futebol têm de superar dificuldades financeiras de clubes e desconfiança das famílias para ganhar a vida negociando jogadores dentro e fora do país
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s empresários são personagens centrais em grandes foram tentar a carreira no velho continente, conta que transferências de jogadores que movimentam milhões um dos aspectos fundamentais para quem quer tentar mundo afora todos os anos. Mas os agentes de futebol ser representante de atletas são os contatos. Afinal, são que trabalham longe dos holofotes e dos atletas badalados as relações de dentro dos clubes que revelam tanto garotos com potencial de se tornarem grandes jogadores, precisam driblar a falta de pagamento por parte de clubes, quanto as demandas de atletas pela equipe. a desconfiança das famílias e ter um ótimo faro de gol para “São duas situações para você fazer uma negociação: achar e lapidar um futuro craque, ou melhor, uma ótima venda. ou você possui a representação do atleta em que o clube A principal dificuldade é receber os pagamentos das está interessado; ou você tem bom relacionamento com percentagens a que eles têm direito quando fecham a transo clube que lhe pede para trazer determinado atleta na ferência de um jogador. Cerca de 80% dos clubes brasileiros posição de carência”, explica. atrasam ou não pagam o que é devido, segundo o empresário Contudo, o trabalho do agente começa bem antes paulista Jackson Ribeiro. “Atrasa, fica para depois, isso prejuda assinatura dos contratos. Para selecionar os jogadodica um pouco. É muito diferente do exterior. No tratamento, res com os quais deseja trabalhar é necessário um longo em tudo. Lá fora o negócio é uma linha reta”, analisa. esforço de pesquisa, que inclui ir aos estádios assistir às A dificuldade vivenciada por Jackson, que atua prinpartidas, visitar centros de treinamento, conversar com cipalmente em São Paulo, estado que divide com o Rio de funcionários e pessoas próximas ao atleta. Janeiro o posto de maior “Eu assisto todo tipo de centro futebolístico do jogo. Da Série A do Brasileirão à Série D, da primeira até país, se repete também a quarta divisão do Paulista. no Distrito Federal. Aqui, Muitas vezes o jogador não o principal problema conseguiu se destacar por para empresários e atletas é que a grande maiofalta de oportunidade. Faço ria dos times paralisam todo tipo de contatos também”, explica Jackson, que suas atividades depois parou de jogar aos 27 anos, do Campeonato Candango, que é disputado enem 2013. tre janeiro e maio. Em Brasília, o jovem Iuri Apenas o campeão Fernandes, de 22 anos, está e o vice continuam com começando sua carreira no jogos oficiais após o Canramo. Ele jogou até os 20 dangão, pois ganham anos em clubes como o Santos e o Gama, mas resolveu o direito de disputar a parar e se dedicar ao negóquarta divisão do Campeonato Brasileiro no cio do pai, que já tinha o segundo semestre. Essa agenciamento de jogadores falta de jogos significa como segundo emprego – menos dinheiro para inele também dirige uma emvestir nas equipes e em presa de material hospitalar. estrutura. “Os primeiros passos estão “Em Brasília, o meracontecendo agora. Está cado praticamente não sendo bem trabalhoso, pois tem retorno financeiro. é um mercado bem restrito e Não é um mercado para competitivo. Principalmente se ganhar dinheiro com no futebol masculino”, avalia. negociações com clubes. Observar jovens atletas Quase todos os clubes é a opção mais viável para são falidos, não têm estrutura física, não têm quem está começando na investimento, não têm profissão, já que é preciso planejamento e muito formar laços com familiares menos recurso financeie funcionários de clubes. ro”, constata o advogado “Fiz contatos e parcerias e empresário brasiliense com as escolinhas de Brasília formadoras de jogadoIvan Prudente. res, observava os jogadores O profissional, que nos campeonatos de base hoje mora em Portugal, Leonardo Andreotti. (Foto: Arquivo pessoal) de Brasília”, aponta o agora onde acompanha alguns Ilustração: Rodrigo Dal Moro experiente Ivan Prudente jogadores da capital que
PLEMEN TO SUP LEMENT O ESPO RTIVO S UPLEME CAMPUS, NOVEMBRO 2018
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sobre seu início de carreira. Ainda sem muitos contatos, era preciso se dividir entre empresário e advogado, sua formação de origem, por conta do baixo nível de retorno dos investimentos no futebol. Isso se dava tanto pelas razões de mercado quanto pela característica de longo prazo que é investir em jogadores mais jovens. Mas conquistar as famílias também não é uma tarefa simples. Com a crescente profissionalização do esporte, os pais de atletas têm cada vez mais se precavido de acordos com empresários problemáticos. Luciano Marques, pai de Pedro Lucas, jogador de 19 anos que atua no Taguatinga, afirma que ainda não aceitou que seu filho fosse agenciado por medo do que pode acontecer se o empresário não cumprir o acordo. “Os empresários que me procuram querem uma procuração do Pedro. Hoje não se faz mais isso, porque há muitos empresários que levam os garotos para categorias de base fora e, às vezes, é furada. Conheço alguns casos de jogadores que passaram por isso. Os empresários levaram e não deu certo, os meninos até passaram fome”, conta. Colocar jovens jogadores em categorias de base e levar os jogadores profissionais dos pequenos para os grandes clubes parece ser o grande nicho dos empresários que atuam nos mercados menos competitivos do futebol. Como conta o meia Clécio, de 30 anos: “Eu não tenho empresário. Os caras querem 10% (dos valores envolvidos na negociação) para nos empregar em lugares a que temos acesso. Aí não dá. Empresário só é bom para ir para times grandes. Fora isso, aqui em Brasília não tem necessidade”, constata o jogador com passagem por times de Portugal e Suécia. Mas além de atuar nas negociações de transferências, aumento de salários e renovações de contrato, o empresário muitas vezes também se torna uma espécie de mentor dos atletas, dando dicas de comportamento e certificando que tudo está em ordem para o jogador se preocupar apenas em jogar futebol.
O agente Ivan Prudente conta que procurou se profissionalizar como representante de atletas. Para isso fez cursos e procurou se inteirar sobre a literatura da área, já que, quando se trata de tentar achar futuras joias, é preciso ter o maior embasamento e as melhores informações sobre o assunto. “Existe a CBF Academy, que proporciona cursos para formação, aprimoramento e integração de novos agentes/intermediários”, completa. De acordo com o regulamento da Fifa, qualquer jogador só pode assinar um contrato de representação com um empresário quando completa 18 anos. Contudo, o trabalho de aproximação dos futuros craques começa muito antes disso. Segundo Prudente, “você tem que ganhar a confiança da família e prestar um bom serviço assessorando o atleta até você poder legalmente formalizar um contrato de representação”. Foi o que aconteceu com o maior craque da seleção brasileira na atualidade. Neymar já era empresariado pelo próprio pai aos 13 anos de idade, quando foi procurado pelo clube espanhol Real Madrid para que defendesse a equipe. À época, Neymar e seu pai foram convencidos a permanecer no Santos, clube do litoral de São Paulo, até 2013, quando se transferiu para o Barcelona. De lá saiu para o time da capital francesa, PSG, no que se tornou a maior transferência da história do futebol, um negócio de 222 milhões de euros. A CBF foi procurada pela reportagem, mas não respondeu a tempo aos pedidos de entrevista. C
Mercado
Em 2018, já foram desembolsados R$ 79 milhões em comissões para intermediários nas transações nacionais e internacionais, considerando as duas janelas – período em que os jogadores podem realizar transferências de clube. Os clubes declararam terem pago 195 comissões para intermediários. As negociações como conhecemos hoje só se tornaram possíveis no Brasil com a criação da Lei Pelé em 1998. Isso porque antes havia o “passe”, que, na prática, prendia os jogadores a seus clubes mesmo após o término do contrato de trabalho. Agora, quando seu vínculo trabalhista acaba, o atleta está livre para jogar em qualquer outro time. É aí que entram os empresários, ou intermediários, como também são chamados. Atualmente existem 604 intermediários, entre pessoas físicas e jurídicas, cadastrados na CBF.
Filho de Luciano Marques, meia do Taguatinga Pedro Lucas, de 17 anos, posa ao lado do meio-campo Souza, campeão mundial pelo São Paulo em 2005. (Foto: Arquivo pessoal/ Luciano Marques)
SUPLEM ENTO ES PORTIVO SUPLEM ENTO REPORTAGEM | EMILLY BEHNKE
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
Para o alto e avante Novas equipes fortalecem cheerleading brasiliense e inauguram cenário competitivo
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ompons, coreografias, gritos de guerra e acrobacias. É assim que o cheerleading é conhecido pelos brasileiros. A ideia vem dos filmes norte-americanos, já que o esporte nasceu nos Estados Unidos. Esse estereótipo, contudo, contempla apenas parte de toda a técnica e o preparo físico envolvidos e só alcançados por meio de horas de treinos. As dificuldades e o esforço exigidos pelo esporte não parecem espantar novos adeptos em Brasília. Desde o ano passado, o esporte tem crescido na capital brasileira com a formação de novas equipes e de uma associação. Em 2018, no aniversário de 10 anos no país, o cenário do cheerleading brasiliense é promissor. A cidade conta agora com mais quatro times competidores: All Star Lotus, Brasília Warriors, All Star Django e Brasília Templários. A prática do cheer no DF não é novidade. As equipes novatas se juntam ao time já consolidado, Brasília Xtreme (BX), o maior do país e com seis atletas membros da seleção brasileira. O cheer também está presente nas universidades, em equipes menores nas atléticas de cada curso e nos times maiores representantes das instituições. A presença do esporte nas escolas é mais tímida. O momento é de fortalecimento da modalidade. Em agosto, foi fundada a Associação Brasiliense de Cheer e Dance (ABC&D), a primeira do tipo em Brasília e o primeiro passo para consolidar o cheer na capital. “A gente vem se organizando desde janeiro, exatamente por conta desse crescimento. Tivemos também vários atletas de Brasília que participaram do mundial em Orlando (EUA) na seleção brasileira, o Team Brazil”, conta Daniel Veloso, presidente da ABC&D. Na visão de Luíza Brasiel, vice-presidente técnica da associação e coach do BX, é uma questão de tempo Brasília virar um dos principais polos do esporte no país. “Do ano passado para este, houve um boom no mundo cheer aqui.” A ABC&D trabalha agora para unificar as equipes e reforçar a importância do investimento de empresários e do governo. A prática foi, inclusive, reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), em 2016, como modalidade esportiva – o que ainda não significa que é um esporte olímpico. A ABC&D realizou sua primeira iniciativa no fim de setembro. O Capital Cheer, o 1º Aberto Brasiliense de Cheerleading & Dance, reuniu cerca de 100 atletas competidores e um público de mais 350 pessoas. Participaram da competição as cinco equipes já citadas, os times da Universidade de Brasília (UnB), do UniCeub e da Universidade Católica de Brasília e outras cinco equipes escolares. O cheerleading em Brasília surgiu por despertar o interesse de ex-atletas
de ginástica (artística, acrobática e olímpica), modalidade mais conhecida. Sthefânia Ferreira, ex-ginasta e vice -presidente administrativo-financeira da ABC&D, é exemplo desse processo de migração. “É triste dizer isso, mas na ginástica você entra no tatame ou no tapete falando ‘tomara que fulano erre para eu poder ir melhor do que ele’ e no cheer isso não existe.” O esporte a encantou por conta da integração e hoje ela coordena quatro equipes, uma delas o BX Pom Dance, a primeira da categoria no Brasil a disputar o mundial. Jean Abner, estudante de Biologia da UnB e membro do Django All Star e do UnB Owls, opina que a agregação é o diferencial. “Tem espaço para todos, independentemente de altura, peso, sexo... É claro que cada perfil fica com uma função diferente, mas a ideia de ser um esporte coletivo ajuda muito na integração, pois não há evolução sem o outro e não há posição melhor ou mais importante, todos precisam se ajudar e se esforçar para o stunt [formação] sair.” Segundo Daniel Veloso, preparador técnico do UniCEUB, o cheer contribui na socialização entre participantes, pois os treinos ocorrem em grupos grandes de homens e mulheres. Apesar de o esporte ser coletivo, possui categorias de competição em grupos menores e individuais. “É um treino mais divertido do que atividades como a ginástica, na qual os times de Brasília têm alto rendimento, o que costuma ser um caminho muito doloroso.” Professora de ginástica, Fany destaca o companheirismo: “Um atleta acrescenta no outro porque o esporte é novo, então tem muito que se aprender e ensinar”. A novata Brenda Vieira Barros, estudante de Enfermagem da UnB, conheceu o esporte por meio de amigos. “Achava lindos os vídeos e as fotos que postavam, então fiquei curiosa.” Brenda faz parte do Brasília Templários e da Furia Cheer, o time da Enfurecida, a atlética de Enfermagem. Ela aposta na divulgação por conhecidos e redes sociais como caminho para a popularização do esporte. “Qualquer pessoa com força de vontade e interesse pode começar a praticar.” Do ponto de vista técnico, Luíza afirma: “O que falta é o investimento para trazermos técnicos dos Estados Unidos e de outros países para que possamos aprender com eles e investir nas equipes daqui”. A questão financeira é uma das barreiras para consolidar o cheer. “Sem patrocínio é horrível. É um esporte muito caro e tudo tem que ser bancado pelo bolso do atleta”, afirma Jean. Ele levanta outro ponto de atenção: a falta de locais adequados para a prática. “O que encontramos de improvisos em gramas e em tatames finos é demais. Podemos
Equipe Brasília Xtreme (BX) se apresenta durante a competição Capital Cheer, no fim de setembro. (Foto: Emily Behnke)
chamar essas pessoas de guerreiras.” Em relação à receptividade do público, as mulheres são maioria. Entre os homens, a adesão ainda não é expressiva. “O esporte de fato chama mais atenção das mulheres. Homens são mais envergonhados para essas coisas. Porém, quando veem o que somos capazes de fazer eles podem logo se interessar”, comenta. Quem conhece o esporte hoje não imagina que quando surgiu, em 1884, na Universidade de Princeton (EUA), apenas homens o praticavam. As mulheres só começaram a praticar o cheer por volta de 1930. Em Brasília, tem história recente. O BX é o time mais antigo. Criado em 2014, começou como grupo de dança e evoluiu até se tornar time exclusivamente competitivo. Antes da criação dos novos grupos, o cheer só aparecia nas universidades como apoio a outros esportes: na torcida e animação. Por ser recente na capital, não é incomum a ocorrência de crossovers, quando um atleta participa de mais de uma equipe e compete por ambas. Há 12 anos trabalhando com ginástica e cheerleader há três, Fany vê um caminho no exemplo de formação escolar de base da ginástica. Ela sonha em criar já em 2019 a Copa Brasília de Cheer no contexto escolar, assim como ocorre a Copa Brasília de Ginástica. “Quando o esporte é praticado desde o infantil, ele cresce muito forte”, explica. A intenção é focar nas escolas para conquistar um público maior de adeptos e apoiadores em longo prazo. As principais competições de cheer ocorrem nos estados onde o esporte é mais expressivo. Por isso, os times do DF sempre tiveram que viajar para competir. “No Rio de Janeiro e em São Paulo o esporte é muito grande e em Minas está crescendo bastante”, comenta. A agenda de campeonatos é mais cheia no segundo semestre. O BX, por exemplo, deve competir no Nacional Cheer & Dance da União Brasileira de Cheerleaders (UBC), em São Carlos (SP), e no Cheerfest Supernational, no Rio. Este último também contará com participação da equipe Cheerleading UnB, que levará cerca de 50 atletas.
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
REPORTAGEM | CAROLINE ZAMPIRON
Unidas na luta e na rotina Casa Frida acolhe mulheres em situação de vulnerabilidade em São Sebastião
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na Lúcia de Paiva Lima, estudante de Pedagogia, conheceu a Casa Frida em 2015. “Tive que sair de casa por causa de problemas familiares. Aí eu estava pesquisando no Facebook e vi uma mochileira postando que precisava de abrigo. Em um dos comentários ouvi falar deste espaço de acolhimento para LGBT+, mulheres que sofreram alguma violência ou foram abandonadas pela família.” Apesar do pouco tempo morando lá – apenas três meses –, Ana Lúcia fez muitas amizades. O convívio era bom. “Tem eventos culturais quase todo fim de semana”, diz. “A minha experiência foi legal porque nunca tive tanta liberdade igual eu tinha lá. Eu vivi coisas que nunca tinha vivido. Nunca vou esquecer. Ainda tenho o contato de algumas pessoas que moram lá.” A Casa Popular de Cultura de Rua Frida Kahlo, em São Sebastião, é um ponto de cultura coletiva que tem como principal objetivo empoderar pessoas do gênero feminino de todas as idades. Fundado em junho de 2014 por um grupo de mulheres que se reunia na pista de skate da cidade, o espaço tem como valores (F)eminismo, (R)evolução, (I)gualdade, (D)iversidade e (A)mor. Insatisfeitas com a falta de eventos culturais devido à ausência de incentivo do governo e à criminalidade, as fundadoras queriam movimentar a vida cultural local e atender a problemas enfrentados pelas mulheres da comunidade: violência doméstica, cultura de estupro, baixa renda. A missão da Casa Frida é promover oficinas e atividades em grupo para meninas e mulheres. A sua visão é a de ser uma referência de arte e cultura feminista periférica no Distrito Federal. O projeto procura romper estigmas, oferecendo um ambiente onde essas mulheres se reconheçam como parceiras e não rivais, ajudando e cuidando umas das outras. A ONG não tem uma equipe fixa. Atualmente, quatro mulheres moram na sede, mas contam com outras colaboradoras esporádicas, como Kath Amado, que atua como doula (assis-
Grafite de Marielle Franco. (Reprodução: Facebook)
Aniversário de quatro anos da Casa Frida. (Foto: Divulgação/Arte no Kilo Produções)
tente de parto). Este ano ela ficou mais próxima dos projetos por o espaço ser um lugar “muito legal, que precisa de muito cuidado”, afirma. “E sempre está aberto a pessoas que queiram ajudar, dar palestras, cursos gratuitos para as meninas da comunidade: lésbicas, bissexuais, trans e heteros.” A casa não recebe apoio financeiro de partidos políticos ou empresas, sendo sustentada por meio de doações de pessoas físicas, venda de cadernos artesanais, contribuições voluntárias para participação em eventos, venda de doces por encomenda, chaveiros e broches. “Há pouco tempo teve até um curso de panificação. As responsáveis pela casa foram atrás de doações – farinha, ovos, leite – e umas senhoras de Santa Maria deram as aulas. Todo mundo aprendeu e todo mundo se ajudou”, relata Kath. “A casa é uma comunidade de amor.” A co-fundadora Hellen Cristhyan fala sobre os custos: “Para pagar aluguel, luz e água, a Casa Frida tem um gasto fixo de R$ 1 mil. Além desse valor, o projeto também precisa arcar com produtos de limpeza, alimentação, produtos de papelaria e materiais para oficinas e eventos”. Para Ana Lúcia, Hellen é uma boa representante da causa. Criou e administra o espaço e até concorreu a deputada distrital.
Rede de afetos
O meio utilizado para divulgação dos eventos da Casa é o Facebook. Embora haja bastante visibilidade, a organizadora sente que não consegue alcançar o público de São Sebastião na extensão desejada, apesar de suprir a carência de cultura da região e ser um agente importante de fortalecimento e apoio para as mulheres locais. Hellen comenta que, na sede antiga, enfrentou problemas com a Polícia Militar, uma igreja evangélica vizinha e o Conselho Tutelar. Na sede atual, porém, os vizinhos não se opõem às atividades da ONG. O espaço oferece um número amplo de atividades: cursos, oficinas, saraus, roda de conversas, festas, entre outros. A ex-moradora Ana Lúcia diz que se mantinha entretida. “Participava de coisas das quais nunca tinha participado, movimentos culturais que traziam conhecimento. Era uma rotina bem tranquila, sem muitas exigências, e quem não quisesse participar das atividades, não era obrigado.”. “A Casa Frida ajudou a me fortalecer numa situação difícil”, lembra Ana Lúcia. “O valor do aluguel é bem acessível, um valor que não conseguiria pagar em outros locais.” E completa: “A casa também é maravilhosa porque você conhece gente de fora, muitos viajantes, de Cuba, da Colômbia, vários países. A gente aprende um monte de coisas e ainda faz amigos para a vida inteira.” C SERVIÇO Página (Facebook): Casa Frida Instagram: @CasaFridaDF Telefone: (61) 99967-1676
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
REPORTAGEM | Ana Laura Pinheiro, Geovana Melo e Isadora Martins
Fale contra o preconceito Instituição abriga portadores do vírus da Aids em 43 residências no Recanto das Emas
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uando a família de Izabel Cristina Guimarães descobriu que ela era portadora do vírus HIV, o preconceito se instalou em casa. Durante um almoço, a empregada da casa foi orientada a deixar os utensílios separados dos demais. Incomodada, a moça negou a refeição. Ao estranhar o comportamento, uma tia questionou o motivo. “Você quer saber por quê? Porque você tem nojo de mim e eu não tenho nojo de você”, respondeu Izabel. Hoje Izabel mora com outras 105 pessoas na Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale), localizada no Recanto das Emas. Com aproximadamente 100 mil metros quadrados e 43 residências, a instituição acolhe portadores do vírus HIV e familiares. A moradora é uma dos cinco coordenadores da Fale, além de trabalhar como telefonista. Assim como a maioria dos outros residentes, ela é ex-usuária de drogas e encontrou na organização a sua salvação: “Isso aqui foi meu porto seguro, eu faço de tudo por esse pedaço de chão”. O cotidiano da fraternidade é como o de uma casa grande com um monte de filhos. Os habitantes dividem as tarefas: mulheres cuidam da limpeza do refeitório e preparam a comida, enquanto homens limpam os outros ambientes e são responsáveis pelas reformas realizadas no local. Além disso, os adultos trabalham normalmente fora da Fale, e as crianças são muito estimuladas a estudar – elas frequentam a escola e fazem atividades extracurriculares na instituição. Rúbia Ferreira, 24 anos, foi uma dessas crianças. Os pais dela moravam na matriz da Fale, em Uberlândia (MG). Vítimas da Aids, faleceram quando a filha ainda era muito jovem. Rúbia foi adotada pela dona da instituição, a assistente social Jussara Meguerian, e se mudou com ela para o Distrito Federal, onde foi fundada a segunda sede da Fale, no Recanto das Emas. A jovem fala com carinho da Fraternidade: “Aqui é família, um ajudando o outro. A gente passa o Natal todo mundo junto”. Rúbia comenta sobre o preconceito sofrido pelos moradores: “Uma vez eu tava dando peito pro meu filho e uma mulher ficou me olhando, deve ter pensado que eu era soropositivo também”, diz. “Muita gente chega aqui e pensa que todo mundo tem (o vírus), mas as crianças não têm, só os pais. Tem muita gente que pensa que HIV pega conversando e não é bem assim. Muita gente ainda é ignorante em relação a isso, mas eu não ligo.” A Fale vive de doações e não recebe apoio algum do Estado para se manter. Não há assistência médica no local, mas os moradores recebem o coquetel contra a Aids pela rede pública de saúde, assim como outros portadores do vírus. Entre as principais demandas estão produtos de limpeza, higiene pessoal e alimentos, sobretudo o leite – produto consumido pelas crianças e utilizado para dissolver a medicação contra o vírus, já que ela é muito forte. O descaso do Estado é tamanho que em 2013 o governo do DF tentou fechar a organização e expulsar os moradores para construir prédios no local, alegando que os terrenos não pertenciam à instituição. Como solução, Jussara comprou os dez hectares
que hoje constituem a Fraternidade. Além disso, os moradores e a dona fizeram eventos para chamar a atenção de veículos de comunicação, na intenção de dificultar qualquer atitude dos governantes contra a Fale. “Botamos a cara na mídia”, lembra Izabel. O resultado dessas ações foram diversas reportagens em jornais e rádios importantes do país.
CRIAÇÃO A Fale surgiu quando Jussara Meguerian, 67 anos, começou a abrigar, em sua casa, alcoólatras que precisavam de um lugar para morar. Posteriormente, muitos portadores do vírus HIV passaram a pedir ajuda para ela também. Assim, a assistente viu a necessidade de abrir uma entidade específica para auxiliar essas pessoas. Quando o marido de Jussara veio para Brasília assumir um cargo em um tribunal, ela teve a ideia de abrir uma filial da Fraternidade no Recanto. Atualmente, a organização de Minas Gerais tem a finalidade de amparar indivíduos que desenvolveram a doença, e a Fale do DF acolhe soropositivos e filhos de portadores do HIV. O nome da instituição veio do livro Lucas: médico de homens e de almas, que inspirou Jussara a criar a Fale. “No fundo é um trabalho religioso, porque a gente trabalha com amor, o amor ao próximo”, diz a assistente social. Apesar de a idealizadora do projeto ser devota do espiritismo, cada morador pratica a sua própria fé. “Uns são da igreja católica, outros frequentam a igreja espírita, a gente não prega religião, a gente prega o amor”, complementa. Além de doações materiais, a irmandade recebe voluntários semanalmente. Lúcia Oliveira, 48 anos, é uma dessas pessoas. Ela conheceu a instituição por meio de uma amiga e atualmente frequenta a Fale todas as quintas-feiras e em alguns domingos. Lúcia sente gratidão e se sente com o coração preenchido nessa ação social. “Na realidade, é como se eles fizessem um favor em nos receber, porque quem aprende somos nós (voluntários) a cada semana.” C
Idealizada no Recanto das Emas, a Fale acolhe portadores do vírus HIV. (Foto: Ana Laura Pinheiro)
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
reportagem | João Guilherme Romariz
Corrida contra o câncer O projeto Eu corro! Você ajuda!, do atleta Felipe Teixeira, propõe metas pessoais para apoiar iniciativas da Abrace
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ultramaratonista brasiliense Felipe Teixeira convive com o esporte desde criança. A história do atleta ficou muito marcada por perda de pessoas próximas para o câncer e por superar a depressão através do esporte. O atleta passou por cima das doenças e resolveu criar o projeto Eu corro! Você ajuda! A Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace) é a grande parceira de Teixeira. O programa é um financiamento coletivo que conta com duas temporadas e está se encaminhando para a terceira. Até agora foram mais de R$ 20 mil destinados para o tratamento de crianças. Mas não foram só essas perdas que levaram Felipe a correr. O esporte o fez superar um quadro de depressão pessoal. ‘‘Aos poucos comecei a gostar de correr também. A princípio para melhorar a saúde e perder um pouco de peso, depois como terapia, e hoje por motivação e superação por causa do projeto. Corro praticamente todo dia. Uma média de 80 km por semana, mais de 300 km por mês’’, detalha o ultramaratonista. A triste convivência com as doenças fez reacender a vontade de correr e criar a proposta para que outras pessoas não passassem pelo mesmo sofrimento. ‘‘Resolvi criar esse projeto para que eu pudesse ter novamente o prazer e a vontade de treinar e ao mesmo tempo ajudasse alguém. Assim nasceu o financiamento coletivo: Eu corro! Você ajuda! Qualquer um pode ajudar e você também’’, explica o corredor. A doação é feita de maneira rápida e fácil no site da campanha. O também corredor brasiliense Carlos Portella, 54, ajudou o projeto em todas as edições até agora. ‘’O Felipe foi muito feliz na idealização do projeto. Conseguiu unir uma atividade prazerosa e a ajuda para as crianças. A doação proporciona um grandioso retorno’’, diz. Para ele, as doações devem ser feitas de acoordo com as possibilidades de cada pessoa para ajudar no financiamento. ‘’Qualquer que seja o valor possível de cada doador ajuda no tratamento. É caro e as pessoas não contam com os recursos financeiros para custear os procedimentos. Não há como contar com o governo para suprir tal necessidade. As doações acalentam o sofrimento e a dor do paciente e da família dando oportunidade de tratamento digno e qualidade de vida’’, completa. Para manter o plano na mesma cadência, Felipe estipula metas todos os anos para conseguir ajudar a Abrace. Em 2017, na primeira edição, o plano era correr 100 km em uma única prova. Ele cumpriu a meta e arrecadou quase R$ 10 mil. Para 2018, o planejamento foi diferente e mais audacioso, mas o intuito final ainda é a luta contra a doença. ‘‘Este ano, o propósito é correr 3.650 km nos 365 dias do ano. Até o momento, alcançamos mais de R$ 11 mil e eu corri 3 mil km’’, comemora Teixeira. A Abrace conta com diversos projetos de financiamentos coletivos, que ajudam no custeio
da assistência as crianças e adolescentes ajudados. ‘‘É muito importante para a Abrace poder contar com o recurso de projeto solidário como esse, complementando as doações com os recursos advindos dos projetos. Ações como a do Felipe permitem ampliar a assistência para atender necessidades específicas dos pacientes”, diz a presidente da Abrace, Maria Angela Marini. O projeto Eu corro! Você ajuda! é visto de uma maneira diferente dentro da Abrace. ‘‘Nosso sentimento é de muita gratidão ao Felipe Teixeira por seu compromisso diário neste ano de 2018, de correr pela Abrace, faça sol ou faça chuva. A Abrace participa com alegria, correndo junto com esse atleta. É uma bela ação de solidariedade”, destaca Marini. RESULTADOS ANIMADORES O atleta da capital enfatiza bastante os resultados pessoais que obteve desde o início do programa de auxílio às crianças. ‘‘O projeto me faz ter uma disciplina de treinos que melhorou bastante meu rendimento pessoal. Conquistei resultados que nunca havia imaginado um dia. Por exemplo, fui vice-campeão na Bora Viver Trail Run. Antes corria 10 km em 43 minutos, sofrendo, hoje já corri uma abaixo de 38 minutos. Para atleta amador, é um rendimento bastante expressivo’’, ressalta. Perguntado sobre o projeto para 2019, Felipe confessa que traça o planejamento mais arrojado até agora. ‘’Para o ano que vem quero uma coisa mais ousada. Quero correr uma prova tão longa quanto os quilômetros que corri este ano. Quem sabe correr uma de 3 mil km? Revelarei mais detalhes no fim do ano.’’ C COMO AJUDAR www.catarse.me/eucorrovoceajuda2018
Felipe Teixeira já arrecadou mais de R$ 20 mil. (Foto: Acervo pessoal)
CAMPUS, NOVEMBRO 2018
reportagem | Luis ALberto, Millena Campello e Thamiris Soares
O Google Boy Youtuber do Riacho Fundo consegue em pouco tempo centenas de inscritos usando linguagem da periferia para simplificar questões complexas
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urante a construção de Brasília, servidores públicos foram assentados em moradias provisórias no Plano Piloto e em áreas próximas, como o Cruzeiro. Já trabalhadores braçais, menos privilegiados, criaram acampamentos em áreas periféricas, como a granja Riacho Fundo, depois transformada em cidadesatélite. Yuri Alves, de 24 anos, é um dos quase 50 mil habitantes do Riacho Fundo e está cansado de orbitar o Plano Piloto. Orgulhoso membro da sua comunidade, percebeu que a “galera” da sua “quebrada” tinha dificuldade para entender canais de curiosidades do YouTube e decidiu criar o seu próprio: Assuntando. Com uma linguagem coloquial – utilizando muitas gírias e até alguns palavrões –, ele se propõe a levar debates difíceis de maneira acessível à periferia. Seus títulos, em letras maiúsculas e com exclamação, atraem visualizações, enquanto o capaz youtuber mantém a atenção do espectador com uma narrativa fluida. Tudo foi um processo acelerado: ele começou em janeiro de 2018, lançando um vídeo por semana, e já conta com mais de 700 inscritos. Isso significa que centenas de pessoas assistiram a seus vídeos e gostaram a ponto de quererem acompanhar todos os próximos. Em menos de nove meses. O vídeo mais assistido, #ELSAGATE: PROTEJAM SEUS FILHOS! (PERTURBADOR), fala sobre os canais que mascaram videoclipes infantis que contêm bullying, violência física e abuso sexual. O vídeo foi visualizado 8.595 vezes até a conclusão desta reporagem. A internauta Elisabete comentou: “Eu vi uma matéria no tão mal escrita que não acreditei muito, até procurar e achar seu vídeo que SUPER EXPLICA. Parabéns”. No início, como Yuri não tinha câmera para produzir vídeos, ele resolveu fazer parceria com um amigo. Assim que conseguiu comprar os equipamentos necessários, assumiu o canal sozinho. Toda semana ele posta vídeos, e pessoas de vários lugares do Brasil o acompanham e comentam. “Ah, estou maratonando seu canal”, diz um fã. “Certeza que em breve chega a 100 mil e depois a 1 milhão”, comenta Lawliet Yagami, uma das inscritas do canal. “Karai.. ta ficando top dms véi”, escreve Gustavo Rodrigues, outro acompanhante do canal. Embora ache que Assuntando está crescendo bastante rápido, Yuri diz não ser o maior youtuber do Riacho Fundo. Existem dois canais da região administrativa que possuem milhares de inscritos. Um fala sobre simulação de corridas e o outro, sobre áudios bíblicos, sendo que este pertence ao pai de um amigo de Yuri. Em apenas alguns meses trabalhando nesse novo projeto, o youtuber já pôde perceber seu desenvolvimento
Yuri Alves usa gírias e até palavrões para se comunicar com internautas. (Foto: Ana Carolina Nobre/Divulgação)
técnico. “Aprendi a ser mais desinibido, a raciocinar mais rápido e várias técnicas de storytelling (contação de história, em inglês). Tive um ganho muito bom”, conta. Ele dá dicas que acredita serem vitais para youtubers da periferia: começar com o celular mesmo; não colocar a cabeça no dinheiro; a personalidade tem que ser um grande diferencial; tem que ser diferente, porque qualquer temática que for pesquisar no YouTube já tem canal; tem que priorizar o conteúdo para depois pensar em aspectos técnicos como iluminação e produção, porque o equipamento não é a parte mais importante, e também pesquisar sobre storytelling para desenvolver um vídeo com início, meio e fim.” O DESIGNER DA PERIFERIA Desde os 18 anos, Yuri trabalha na área de design. Sem formação superior, enfrentou diversas dificuldades e chegou a trabalhar todos os dias, em período integral, para no fim do mês ganhar apenas R$ 600,00. “Para a galera da quebrada, o mercado do design é bem prostituído”, desabafa. Yuri diz que tudo o que sabe aprendeu no Google e por isso se intitula Google Boy. Para o autodidata, as faculdades demoram muito para trazer um retorno financeiro, o que dificulta a formação na periferia. Diz conhecer designers que ganham entre R$ 300,00 e R$ 400,00 por mês. “É um mercado cruel”, diz. Ele escolheu sua profissão pela ligação com a arte e sente na pele o que chama de “desigualdade fudida”. Trabalha no Plano Piloto, e a maioria de seus colegas são brancos e “centrais”. De negros, só existe ele e mais um. “O mercado de design em Brasília é bem elitizado”, lamenta. “Falta olhar com carinho para as cidades-satélites.” Ele vê muitas pessoas com o perfil empreendedor, com talento, mas sem oportunidade. Yuri diz que muitos talentos do Riacho Fundo não possuem dinheiro nem mesmo para sair da região e ir ao Plano distribuir currículo. Para ele, não é necessário formação acadêmica para atuar na área. “A prioridade que o mercado de design dá é para portfólio”, conta. Mesmo assim, reconhece que o título de estudante da Universidade de Brasília concede privilégios mais que outros de instituições menores e privadas, ou de nenhuma instituição. Aos 24 anos, com uma rotina difícil, dividida entre design e YouTube, Yuri Alves aguarda ansiosamente o nascimento de seu primeiro filho. “Trabalho o dia inteiro para que meu filho sinta orgulho de mim.” C
CAMPUS, NOVEMBRO 2018 CAMP
REPORTAGEM | ROBSON G RODRIGUES
Palco grisalho Há 18 anos, Tullio Guimarães ensina teatro a pessoas da terceira idade no projeto Viva a Vida
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“Não os trato como vovozinho ou vovozinha, trago temas pertinentes a idosos”, conta o dramaturgo Tullio Guimarães. (Foto: Robson G. Rodrigues)
em experiência anterior com teatro para idosos, Tullio Guimarães precisou se adaptar às limitações dos alunos do projeto Viva a Vida, que na média têm 70 anos. Os efeitos positivos sobre as pessoas que orienta são muito claros para ele hoje, depois de 18 anos como diretor da oficina em Brasília dedicada à terceira idade. O dramaturgo alcançou em 2018 a idade mínima que exige para frequentar as aulas. O programa iniciado em 2000 é voltado para senhores e senhoras com mais de 55 anos que desejam atuar. “Sempre trabalhei com pessoas de todas as idades. No Viva a Vida, foi a primeira vez que trabalhei com um grupo homogêneo”, conta o dramaturgo formado em Artes Cênicas pelo Teatro Dulcina de Moraes e professor de teatro desde 1995. Para lidar com o desafio inicialmente, Tullio procurou se inteirar sobre o assunto. Não encontrou, no entanto, pesquisas em que se apoiar e pediu a uma professora da Universidade de Brasília orientações sobre como fazer teatro com grupo de 20 idosos. “Ela me disse que eu iria descobrir isso sozinho, acompanhando a reação deles”, lembra o dramaturgo. Ele desenvolveu a própria dinâmica de forma a não tratar os alunos como “vovozinho” ou “vovozinha”. Cobra a dedicação que considera apropriada à faixa etária e se ajusta às especificidades de cada aluno. “Eu tinha o mesmo rigor e cobrança que eu usava com os jovens, mas respeitando as limitações impostas pela idade.” Entre as complicações de desempenho que precisou contornar, ele destaca problemas de locomoção, doenças comuns à terceira idade e alguma dificuldade de memória. Ele explica que é montada uma peça ao ano para ser apresentada em dois ou três fins de semana. O convite a Tullio para ministrar a oficina foi feito pela idealizadora do projeto Viva a Vida, Clara Luz. “Eu formei esse grupo de maior idade — ou melhor idade, que seja —, convidei o Tullio e estamos aqui por esse tempo todo trabalhando”, explica a inquieta Clara Luz, 93 anos, pioneira em Brasília, afeita a risos e sorrisos. Ela propôs a Tullio montar uma peça com elenco idoso para viajar à Europa e lá participar de um festival. Com os meses, o grupo desistiu da ida por questões financeiras, mas manteve a oficina com mensalidades fixas. Luz é até hoje atriz da companhia que montou e não deseja sair. “Pretendo continuar até me levarem para o Campo da Esperança. Aliás, não vou para lá porque prefiro ser cremada, já até paguei”, diverte-se. Para ser fotografada, a vaidosa senhora ajusta o chapéu e retoca o batom sem soltar a bengala. “Ficou bom?”, confere com as colegas de teatro. Todas consentem. Atenta à vez de ler o texto no ensaio, a mineira de Bambuí tem boa parte das falas e demonstra lucidez inesperada para uma nonagenária. É ocasionalmente interrompida por correções de Tullio, que faz questão de que as palavras sejam pronunciadas devidamente pelo elenco disposto em círculo no Teatro Dulcina. “A memória não ajuda, mas a gente tem de trabalhar”, afirma a atriz.
Interessados nas aulas: (61) 9 9905-3941
O ELENCO “Meu nome artístico é Gloria Santos”, apresenta-se a carioca de 75 anos, membro desde 2013 do projeto. A economista foi transferida para Brasília em 1972 e desde então foi “criando raízes”. Ela se afastou do teatro que fazia “quando era mocinha solteira” em função do trabalho e da família, mas sob a promessa de voltar a praticar quando se aposentasse. Glória conheceu o Viva a Vida graças a uma amiga que a levou para ver um espetáculo da companhia, e logo ingressou. “Estou me reciclando de todas as maneiras para evitar esses ‘Alzheimers’ da vida”, relata. Gloria passou a recomendação adiante. Convidou a brasiliense Lilian Melo, que topou participar das aulas para fugir da ociosidade. Professora aposentada de matemática e física, ela tinha acabado de enfrentar um câncer quando, dois anos atrás, ingressou no teatro. Ela foi aceita com menos idade do que a usualmente exigida pelo grupo. O que antes era só uma fonte de diversão para a aposentada, agora, aos 54 anos, é também uma tentativa de estar ativa e saudável. “Eu frequentava o teatro apenas como plateia. Lá, me divertia, chorava, levava as filhas e o marido, namorava. Era um ponto de lazer. Hoje não, teatro para mim é uma forma de manter a qualidade de vida”, conta. Jorge Graça Veloso, professor de teatro na Universidade de Brasília, doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que o fortalecimento da memória no teatro, efeito bastante almejado por pessoas na terceira idade, se dá de diferentes formas: “O teatro exige fisicamente do ator, o que ajuda na irrigação sanguínea e no melhor funcionamento do cérebro. Ele também precisa saber gerir o espaço e ativar a memória de cada momento em cena. Além disso, é fundamental que ele memorize as falas e isso trabalha bastante a memória”, elucida. Outros benefícios que destaca são a retomada de relacionamentos interpessoais – perdidos muitas vezes após a aposentadoria, maior autopercepção, física e emocional, e a autotolerância. “O que é mais evidente é a superação dos limites”, acredita Tullio. Ele conta que ao longo dos anos muitos idosos revelaram ser discriminados em suas famílias. “Eram vistos como estorvo”, lamenta o diretor. Dentro do teatro, passaram a se expressar melhor e a desenvolver novos propósitos de vida. Para ele, a relação com os alunos é de aprendizado mútuo. “Se as pessoas ouvissem os mais velhos, o mundo seria diferente. Mas eles não são ouvidos. São invisibilizados cotidianamente.” C
O 2018 CAMPUS, NOVEMBRO 2018
reportagem | GABRIEL ESCOBAR, Israel de Carvalho E JOÃO PEDRO LIMA
Um grito de Ceilândia Entrevista com Marcos Vinicius de Jesus Moraes, o Japão
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festival Elemento em Movimento é um evento de cultura urbana que acontece em Ceilândia e mobiliza vários segmentos. Há exposições, espaço de vendas, shows, jogos de basquete, batalha de MCs e outras atividades que buscam descentralizar a atividade cultural do Distrito Federal, dando oportunidade a jovens das satélites de consumirem arte como os do Plano Piloto. Na sexta edição do evento, realizada neste mês de outubro, um dos participantes mais empolgados foi o rapper Marcos Vinícios de Jesus Morais, o Japão, do grupo Viela 17.
você ser artista da cidade, debater com isto, e ter que enfrentar isto, tentar fazer uma revolução fazendo um trabalho sério, é muito difícil. E a essência do rap é justamente essa. É dar voz. Não significa que o rap é a maior voz de todas, mas ele tem a sua parte. E a parte cabe mesmo na questão da responsabilidade e justiça social, tá ligado? Então, a partir do momento que o cara não fala, que o cara não levanta essa bandeira, ele não faz rap, vai me desculpar, mas não faz rap. Só rima, né? Exatamente. E na maioria das vezes, uma merda (risos).
Você é daqui de Ceilândia mesmo? Nascido e criado. Nascido no mesmo ano da cidade. Como é estar num evento destes? Cara, ano que vem tô comemorando 30 anos de rap. Então, assim, ser artista na Ceilândia já não é fácil, e você estar em um festival, sacou, neste porte, podendo tocar na sua cidade, vindo mostrar sua arte e tudo é um ganho gigantesco, mesmo que seja tardio, né? Se passaram muitos anos pra poder chegar neste nível e tal. Tudo era feito no Plano Piloto, sacou? Então nós estamos conseguindo agora participar de algo grandioso, bem-feito, organizado, por pessoas da comunidade, então só tenho a agradecer. Satisfação gigantesca. Como foi sua trajetória de vida? Por que o rap? Cara, então, comecei a cantar rap em 1989. Vontade de ter voz mesmo, de representar a comunidade, representar os amigos. Representar o nosso cotidiano, na verdade. A ideia era o cotidiano. As pessoas têm um defeito muito grande. Sempre quando citam Ceilândia elas citam como um lugar onde moram marginais. Só que ninguém nunca se questionou por que a cidade é marginalizada, por que marginalizaram a cidade, tá ligado? As pessoas trabalhavam no Plano Piloto, construindo o Congresso Nacional, os ministérios, mas depois que ficou tudo pronto elas formam mandadas pra bem distante. A violência policial só vem pra gente, tá ligado? A falta de incentivo pra cultura também vem pra gente. O bem e o mal sempre vêm pra gente, e o mal sempre numa carga mais forte. E é complicado. Pra
Rapper Japão carregando a Ceilândia em seu corpo. (Foto: Israel de Carvalho)
Você acha que hoje o rap está fora do debate? Eu acho que tá totalmente fora do debate, acho que tá totalmente fora do foco. Fugiu muito do foco. Por quê? Porque entrou um pouco de assistência social, um pouco de trabalho. A vida do brasileiro deu uma melhorada e os caras viajaram nas ideias. Acharam que o mais importante do rap é ter bom carro, é fumar maconha, ter um bom tênis. E a periferia continua sangrando, tá ligado? O rap é uma palavra de libertação, irmão. Se eu não puder fazer essa palavra pra salvar você, pra te incentivar a estar ajudando o próximo, você ajuda ele, ele ajuda ele e ele me ajuda, o rap não tem sentido algum. Eu não posso pôr o rap pra te incentivar a usar maconha, pô, pra achar que o país tá tudo bem, que tá uma maravilha. Não tá uma maravilha, não tá, gente. Nós estamos querendo enganar as pessoas e, pô, isso não é o papel do rap. Você está com a camisa da Ceilândia, tem uma tatuagem da Ceilândia... Várias (risos).
O que representa a Ceilândia pra você? Minha vida, irmão. Isto aqui é minha vida, estas ruas aqui são minha vida. Quando nasci na Ceilândia não tinha isto aqui, tinha só uma caixa d’água onde as pessoas buscavam água, entendeu? E vários amigos, vários moradores. E a gente se encontrava numa esquina, numa escola, pra trocar uma ideia. Já falava de dança, falava de break. Então, Ceilândia foi onde eu fiz tudo e, velho, vou levar pro resto da vida. O seguinte, você sair de um lugar que é marginalizado e você ver esse local se tornar um local digno também é uma vitória sua, tá ligado? Então faço parte dessa vitória também, acho do caralho. Ceilândia. As pessoas têm um problema seríssimo de “ai, não, não pode ser bairrista”. Porra nenhuma. Sou Ceilândia, irmão, eu sou Ceilândia. Eu posso estar no Plano Piloto que eu sou Ceilândia. Eu posso estar na China que eu vou ser Ceilândia. Então, isso, velho, não quer dizer que você tá denegrindo a outra comunidade, quer dizer que você tá valorizando a sua. E que eles façam o mesmo com a deles, entendeu? Porque a gente tem que pensar no macro. O macro tem que se unir. O micro, não, o micro tem que conversar. Então, as pessoas têm esse problema seríssimo. Já vi várias pessoas “ah, você só escreve Ceilândia”, e vai ser o resto da vida enquanto eu estiver vivo. E o nome Japão? Então, meu nome é Marcos Vinícios de Jesus Morais. Só que meus pais eram nordestinos e quando eu nasci, em 1971, na Ceilândia não tinha hospital. Eu nasci no hospital de pronto atendimento psiquiátrico, que era o Hospital São Vicente de Paula. O único hospital que tinha em Taguatinga. E o cara que socorreu minha mãe, um policial, o nome do policial era Marcos Vinícios e ele era agente da Polícia Militar. Antigamente se falava que o cara era agente. E o apelido dele era Japão. Aí meu pai achou o maior barato ele ter prestado esse socorro pra minha mãe de madrugada e me deu o meu nome e o meu apelido dele. Sem contar também que eu tinha o cabelo lisão, meu cabelo é muito liso e minha mãe cortava meio chinês, meio japonês e todo mundo “oh, japinha, oh, japinha”. E aí pegou. C