circo

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Salvador, SÁBADO, 12 de abril de 2008

CONTO

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O fantástico circo voador A Menina seguiu uma lona e passou a viver pelo mundo. Ou será que foi imaginação? CARLA BITTENCOURT cbittencourt@grupoatarde.com.br

A Menina tinha sete anos quando fugiu com o circo e descobriu que trailler é uma casa com rodinhas e que palhaços só ficam tristes quando não tem criança por perto. Na calada da noite, juntou os vestidos na sacola de pano e saiu. Cinco minutos depois, pé ante pé, voltou para buscar a revista de quadrinhos favorita. Gostava tanto, mas tanto dos contos de circo da revista, que dormia com ela debaixo do travesseiro. – É para ver se as histórias entram mais rápido pelo meu sonho, dizia para a Vó. Não contou a ninguém que ia partir. Saiu em direção à lona armada no meio da praça, pensou que a saudade ia doer um pouquinho, mas continuou. Até o sapato cor-de-abóbora ficar marrom de tanto barro. Lembrou do cheiro gostoso do café da Mãe, do abraço apertado do pai, do barulho da máquina de costura da Vó. Lembrou também do Gato Malhado, mas não teve medo ou remorso. Ela sorriu. Primeiro, encontrou o

mágico. Ele tirou moedas de chocolate de um esconderijo atrás de sua orelha e a levou para voar no trapézio. No meio do picadeiro, o mágico sumiu. Atrás da cortina, a Bailarina era uma fada toda feita de nuvem. O Leão usava óculos, gostava de ler sobre filosofia e ensinava o Domador a ser gentil com todos os bichos. O Malabarista jogava para cima mais de mil objetos vermelhos: – Aqui tem de tudo, ele explicou. Bola de frescobol, coração de anjo, maçã do amor. O segredo está nos olhos do Respeitável Público. Era melhor do que a revista. O circo era feito de encantamento, de pessoas que não dormem cedo e de coisas que somente as crianças são capazes de entender. O Menor Equilibrista do Mundo andava em cima de um fio dental preso a duas caixinhas de música. Ele era do tamanho de um dedo mindinho e morava dentro da

barba da Mulher Barbada, lugar macio e bem cabeludo. O Atirador de Facas se apresentava em um aquário. Sua roupa de mergulho parecia o macacão de um astronauta, e ele jogava estrelas-do-mar em direção a sua assistente, uma sereia. Debaixo d´água as estrelas flutuavam devagar e iam grudando no rabo daquela mulher, que também era peixe. A Menina bateu palmas e pediu bis. Ela tinha certeza que aquele era seu destino quando o palhaço apareceu

descalço e de pijamas. Os dois andaram até um muro de madeira, ele subiu em uma escada, puxou algumas cordas e o chão ficou mais leve. Chamou a Menina: – Venha se despedir. O muro era uma caixa gigante. A lona se encheu de ar e o circo inteiro tinha virado um balão. Lá embaixo, miudinhas, as primeiras pessoas da cidade acordavam. – Um dia a gente volta, disse o Palhaço. Mas antes você tem que saber o que vai fazer para apresentar a eles. A Menina pensou no globo da morte e nas piruetas, no trapézio e nos sonhos e respondeu: – Eu sou palhaço também.

Carla Bittencourt, 27, é jornalista e sonha com o circo desde criança | Excepcionalmente, nesta edição, não publicamos o conto de Gabriel Guimard com o personagem Jorge Erê.


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