Gastrô Infância

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SALVADOR DOMINGO 10/7/2011

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s doces ficavam espalhados pela casa, os nomes das crianças escritos com a letra da bisavó no papel que forrava as latas, dessas que a gente reaproveita para colocar o que não comprou, mas fez. O combinado de vovó Nati com Tereza Dolores era o guarda-roupa. Ali era escondido o doce da menina doente: leite, ovos e açúcar para acalmar a asma dessa menina, que, mesmo doente, era danada. O tempo levou a asma e fez da bisneta de dona Natividade uma das chefs mais respeitadas do País. Hoje é ela quem prepara, no mesmo tacho de cobre, a ambrosia da infância. “É meu doce absoluto. Esse cheiro me traz muitas viagens”, conta Tereza Dolores Paim, no Terreiro Bahia. Ao pé do fogão, ela oferece: “Querem provar ainda quente?”. A gente aceita, ela estende umas tacinhas estilo bico de jaca, outra herança. E como é bom ver que o tempo também trouxe novo uso para o açúcar. A receita de Tereza leva 70% a menos dele e tem suco de laranja, o que deixa a ambrosia um tantinho cítrica. O doce e outras delícias ela aprendeu vendo a bisa fazer e, por estar sempre perto, acabou cozinheira também.Seurestaurante,emPraiadoForte, guarda detalhes desse tempo, como os dois bancos de madeira feitos da cabeceira da cama onde dona Natividade dormia. “Cozinheiro não é só técnica, é aquilo que viveu”, observa Tereza, que hoje ensina os pequenos a comerem boa comida e não “esses franguinhos com cara de chulé, feitos com preguiça”. Quando for ao Terreiro Bahia, experimente levar a criança que um dia você foi. Mas sem pressa e com fome.

FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE

O tomate recheado com arroz tem gosto de verão para o italiano Alessandro Narduzzi

GASTRÔ INFÂNCIA

Recordar é

COMER Chefs recriam receitas do tempo em que eram crianças. As comidinhas de mães e avós, simples e cheias de significado, foram guardadas como o começo de uma descoberta

RATATOUILLE É de comida simples e cheia de subjetividade que é feita a cozinha afetiva. “Po-

RAUL SPINASSÉ/ AG. A TARDE

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Texto CARLA BITTENCOURT cbittencourt@grupoatarde.com.br

A chef Tereza Paim serviu a ambrosia em tacinhas bico de jaca, herança de sua bisavó, Nati

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MILA CORDEIRO/ AG. A TARDE

FERNANDO VIVAS/ AG. A TARDE

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demos evoluir tecnicamente, mas nossa memória sempre retornará ao sabor da infância”, escreveu o chef Alex Atala. Pode ser um prato de camponês capaz de levar um crítico sofisticado de volta à sua mãe, como na animação Ratatouille. Ou chegar da escola e ajudar a arrumar a mesa, estender a toalha. O pai vai reclamar porque a mãe fritou peixe, o menino porque nãoganhoubanana,ooutroporquequeriamaisespaguete.Todos brigam muito, comem mais ainda e ninguém levanta chateado. Era assim na Itália, lembra Alessandro Narduzzi. Quando ele era um menino quietinho, aluno de colégio interno, e sua casa se enchia de sabores que mudavam com as estações do ano. O gosto do inverno era de alcachofra, da polenta que tomava quase toda a

Infância nos dois lados do mundo: o tempurá de Moritaka e a galinha ao molho pardo de Gilvandro Matos

mesa. O verão era da melancia e do tomate, que sua mãe fazia recheado com arroz. Foi essa, aliás, a receita que o chef escolheu reproduzirlembrandodedonaMariza,que na verdade se chamava Olga, irmã gêmea de Gertrude, a quem todos conheciam como Matilde. “Elas achavam os nomes feios e escolheram esses outros”, conta Alessandro, revelando a praticidade com a qual as mulheres de sua família resolviam a vida. O pomodori con riso al forno aproveita tomates maduros. A polpa é retirada e se mistura ao arroz arbóreo cru e isso volta para o tomate, temperado com alho, manjericão, sal, pimenta e azeite. O arroz cozinha no suco do tomate. “Tem gosto de verão”, saboreia o chef . Ele confessa que sua mama não era lá uma grande cozinheira. Mas é aí que mora o tal afeto, pois os meninos queriam essa comida, tanto que dona Mariza chegava a escondê-la dos mais gordinhos. “Às vezes ela esquecia, a gente ia lá e roubava. Era muito divertido”.

TEMPO Voltar à comida da infância é sempre algo maior. “Não estamos mais matando a fome, estamos atrás da voz de quem nos alimentava, dos cheiros, do aconchego”, explica Cybelle Weinberg. A psicanalista, que ganhou da avó uma politicamente incorreta mamadeira de leite condensado, reuniu lembranças no livro Sabores Inconscientes (Sá editora, 208 páginas, R$ 39,90). Ela defende que o ato de comer seja um prazer demorado e sem culpa. Na infância de Gilvandro Matos, o Gil, da Kombi 24 horas, o prazer existia porque aquietava uma necessidade. Os anos de 1960 em Feira de Santana não foram fáceis. Uma seca castigava a roça e qualquer carne a mais era luxo. Sua vó Rufina, humilde e esperta, criava galinha e fazia a ave render, preparando primeiro as coxas e os

ossos. O peito ficava guardado, esperando o dia especial de virar bife. Ainda assim, com as carnes magrelinhas que iam para a sua panela, dona Rufina fazia uma saborosa galinha ao molho pardo e foi com uma dessas que Gil nos recebeu. Ele tinha uns nove anos quando viu a primeira galinha morrer, presa entre as pernas da avó. Na Kombi, quem quiser uma versão de quintal, tem que encomendar. Gil mesmo quem mata e depena o bicho. A vó, quieta e séria, não ensinou. “O povo antigamente não passava segredo”. Mas, olhar na cozinha ensina e por isso Gil valoriza a lembrança. A última receita nos aproxima do outro lado do mundo. O chef Hisanori Moritaka, do Ponto 3, preparou tempurá, um clássico no Japão, herdado de missionários portugueses. Toda semana, sua mãe, dona Aiko, fritava vegetais e mariscos para o menino, que adorava andar solto, pescando. Virar chef só aconteceu quando o engenheiro veio para a Bahia passar quatro anos e não voltou. Aqui, ele fundou os antigos Gan e o Beni Gan, duas referências. Hoje, recebe clientes que buscam o paladar japonês tradicional.

ONDE COMER Terreiro Bahia Rua do Linguado, s/nº, Praia do Forte, 71 3676-1754 La Lupetta Avenida Marques de Leão, 161, Barra, 71 3264-0495 Kombi 24 horas Avenida Amaralina, s/nº, Amaralina, 71 3344-1460 Ponto 3 Avenida Marques de Leão, número 3, Barra 71 3264-5272

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Seu tempurá leva camarão, brócolis, beringela, cenoura, pimentão, vagem e batata doce. O sabor fica completo quando os hashis encostam de leve a cumbuquinha com o molho a base de shoyo, saquê, gengibre e “alguns segredos”. Paciente, o chef explica que sabedoria é comer de forma natural, sem todos esses condimentos. Saborear a matéria-prima, ainda que em Salvador muitas vezes seja impossível encontrá-la. Um exemplo é a enguia, que Moritaka pescava no verão e que seu pai fazia grelhada,agordurapingando,afumaceira invadindo a casa toda. Essa não deu para comer, mas a imagem fica e será usada da próxima vez que virmos um peixe cru cheio de cream cheese. «


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