Conflito do homem partido

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Coléct, Carlos. O Éden Perdido – Onde está o teu paraíso?. 2014. p.133-138 | 1

O conflito do Homem partido

Não há quem não tenha conflitos internos e crises existenciais. Entendo que uma das possíveis razões para esta condição humana conflitante se relaciona com o que vimos até agora — o desligamento da completude intrauterina. Para tentar desenvolver esta exposição, inicio a investigação observando que o equilíbrio e a harmonia, não obrigatoriamente, encontram-se sobre uma base. Base que, quando unida, é geradora da homeostase, do equilíbrio e do sorriso, por assim dizer. Como por exemplo, a água como fonte de vida, cuja fórmula química é duas moléculas de hidrogênio que se unem a uma de oxigênio. A união de dois hidrogênios forma a base de um triângulo que sustenta no centro o oxigênio. Observo também o meu corpo em movimento; dois pés que me sustentam, duas mãos que me seguram, dois ouvidos equipados com dois labirintos de sustentação: no mínimo dois pontos são necessários para um terceiro encontrar o equilíbrio. Nesta perspectiva sobre a harmonia composta essencialmente por três pontos, elaboro um entendimento acerca do Homem religioso que, na vida intrauterina, era um ser inteiro, sem divisões, sem a necessidade de uma busca por equilíbrio e harmonia e que, após o parto, tornou-se um ser partido, em partes, com um grande desejo por reuni-las com a finalidade de se reequilibrar na existência. Por muito tempo se compreendeu o Homem como um Ser constituído em Corpo, Alma e Espírito. Três pontos no sentido místico. Quando o Corpo com o Espírito entra em harmonia tal Ser é considerado uma Alma evoluída. O que é o Corpo, o Espírito ou a Alma não nos interessa no momento, cabe apenas dizer que assim se desenvolveu uma crença antiga sobre um Homem partido. Ainda na tradição antiga, em seus maravilhosos fascínios, entre os assírios ou egípcios 1 e até mesmo em visões2 dos profetas bíblicos 1

Esfinge assíria de Khorsabad, chamada kerub. Ver: O Corpo Fala: a linguagem silenciosa da

comunicação não-verbal, por Pierre Weil e Roland Tompakow. Petrópolis, Vozes, 1986. 30ª Ed., 27 2

“Do meio dessa nuvem saía a semelhança de quatro seres viventes, cuja aparência era esta: tinham a

semelhança de homem.Cada um tinha quatro rostosd, como também quatro asas.As suas pernas eram direitas, a planta de cujos pés era como a de um bezerro e luzia como o brilho de bronze polido.Debaixo das asas tinham mãos de homem, aos quatro lados; assim todos os quatro tinham rostos e asas. Estas se uniam uma à outra; não se viravam quando iam; cada qual andava para a sua frente.A forma de seus rostos era como o de homem; à direita, os quatro tinham rosto de leão; à esquerda, rosto de boi; e também rosto de águia, todos os quatro.”(Ezequiel 1.5-10. Bíblia versão Almeida Revista e Atualizada)


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aparece a Esfinge e seu símbolo. A estátua imponente ou o Ser Vivente apocalíptico3 com cabeça de Homem, asas de Águia, tórax com rosto de Leão e abdômen e membros de Boi. Quatro faces apontando direções. Três expressões direcionando um ponto cardeal. Homem formado por três partes. Sendo uma a central que, pelo o que vejo na minha simples percepção, é o rei, o selvagem, o imponente Leão. Desta forma, temos uma representação que, respectivamente é: Razão, Emoção e Instinto; Intelecto, Eu e Prazeres primitivos compõem o Homem em seu íntimo. Seria, então, o Homem em equilíbrio, aquele que tem um bom relacionamento entre a sua águia e o seu boi? Seria o Homem em equilíbrio, aquele cujo Intelecto junta-se ao Instinto dando suporte ao Leão, o centro; o Eu, a emoção? Possivelmente. Na psicanálise também ouvimos sobre três pontos no contexto psíquico e que compõem o indivíduo partido no parto. O Id, o Ego e o Superego, ou em outras palavras: os impulsos, o Eu e a consciência moral4. Quando os impulsos convivem bem com a moralidade, o Eu está mais perto da ―normalidade‖. Essa trindade essencial da harmonia existencial, eu chamo de Tríade Vital. Como a tríade de um acorde musical cuja formação básica é de três notas que se transformam em um som harmônico quando as três, em uníssono, são tocadas. Somos, por assim dizer, indivíduos emotivos, intelectuais e instintivos. Transcorrerei um pouco sobre cada um desses aspectos individualmente. O Instinto — o boi, corpo e o Id — é a voz que nos remete ao passado, ao senso de sobrevivência, ao primitivo e à natureza; ao conforto, desejo, simplicidade, impulsos, querer, sexualidade,... Está ligada ao que foi gravado no inconsciente desde o nascimento. É a primeira voz a ser reconhecida na mente. Esteve conosco desde o primeiro dia de vida. Por esta razão, penso eu,, acha-se a mais experiente e quer muito ser ouvida. Em uma linguagem poética, penso que ela nos tem por filhos. Já o Intelecto — a águia, o espírito e o superego — é a voz do meio. Na interação é nascida, afina o seu tom nas conversas sociais e familiares e pelas experiências e vivências é constituída. 3

―O primeiro ser vivente é semelhante a leão, o segundo, semelhante a novilho, o terceiro tem o rosto

como de homem, e o quarto ser vivente é semelhante à águia quando está voando.”(Apocalipse 4.7. Bíblia versão Almeida Revista e Atualizada) 4

Esboço de psicanálise. Sigmund Freud. (1940 [1938]). Reimpressão de 1949, Nova Iorque, Norton.


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Nela encontramos o ensino, o pensamento, o conhecimento, o senso de dever, a cobrança, o entendimento, a razão, a visão do mundo, projetos de vida e objetivos, trabalho e ativismo, moral, ética e tradição,... É nela que temos a causa dos conflitos. É ela que gera culpa e traz a dúvida, diz estar certo ou errado; é a voz do consciente. A segunda voz que aprendemos na mente. O outro aspecto da nossa formação é a parte Emotiva — o leão, a alma e o Ego (Eu) —, a nossa terceira voz. Vem depois do Instinto e do Intelecto, já que após o nascimento o nosso Eu não está formado, ou seja, não existe o Eu ainda, não há diferenciação com o externo e seus objetos, nós nos vemos como parte de um todo. Quando crianças, mamamos no seio e achamos que é nosso, mas com o tempo, na relação entre o Intelecto e Instinto, o nosso Eu começa a ser constituído e esta voz passa a ser ouvida, ou melhor, sentida. É nela que temos a sensação afetiva, o sentido, o sentimento e o sofrimento. Como não sofreria em meio a essa ―queda de braço‖, onde de um lado está o Instinto oferecendo-lhe o querer, e do outro lado está o Intelecto o relembrando do dever? No Eu está a satisfação, a emoção, o conflito, a culpa, a dúvida, o reconhecimento, a aceitação, a identidade e a ansiedade. Voz ativa no subconsciente e que nos traz ao fato presente. Ela tem a habilidade de trazer fatos do passado e imaginações do futuro para o momento do agora. O Eu em conflito faz nascer o sentimento emotivo, aquele que almeja um sentido, quer ficar sozinho e conversar consigo. Ele busca o elogio e tem por maior anseio a satisfação do Ego. A aceitação lhe é sinônimo de bem-estar, momento em que o Eu se infla no peito. Existem sentimentos emotivos permanentes e emotivos casuais; existe o Eu que não consegue por nenhum momento se desvincular do conflito e existe o Eu que ocasionalmente entra em conflito e até que o conflito seja existente o Eu ficará mais em evidência para mostrar que está carente. Aquele, portanto, que é movido pelo Instinto (boi, Id), como vimos, tem o querer em evidência. É alguém que gosta do primitivo e que se sente bem na natureza. Seu anseio é pelo natural ao artificial. Preza pelo conforto do corpo, desde que este conforto não lhe exija muito esforço. Talvez este que se move pelo Instinto seja alguém mais propenso aos vícios, até mesmo aos que geram malefícios, porquanto nem todos os vícios são prejudiciais, e na verdade, todos têm vícios. Mas os que trazem malefícios podem ser a glutonaria, alcoolismo, dentre outros tipos. E sendo o Instinto representado no abdômen, local do vazio do umbigo, faz desse alguém, alguém que busca a reconexão com aquele aconchego e bem-estar intrauterino. Assim sendo, esses


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instintivos ou instintuais também se enquadram nos perfis mais espirituais ou místicos. Aqueles que possuem mais afinidades explícitas com a imagem de um sagrado e divino, ou seja, podem ser os que estão mais ligados aos Sistemas religiosos clérigos (cristianismo, islamismo, budismo...) e suas doutrinas (ascetismo, naturalismo, animatismo, esoterismo...). Mas lembro de que todos nós somos instintivos, pois todos têm um Instinto. A diferença, entretanto, está no aceitar ou não o que ele diz. No Mundo Ocidental atual, percebo que a satisfação do Eu está na obediência ao Intelecto, no ensino que se tem por certo, ao contrário da obediência ao Instinto que faz surgir a culpa e a consciência pesada, assim como as comidas engorduradas que geram mulheres culpadas ou como a conversa com o amigo que traz a culpa para quem poderia estar lendo um bom livro, ou utilizando o tempo para ganhar dinheiro. Muitos outros culpados surgem por não cumprirem o que o Intelecto tem solicitado e por cederem ao que o Instinto tem desejado. Isto ocorre devido a transformação da Sociedade atual ocidental, isto é, na sociedade antiga a matéria prima da vida era a natureza, elementos do meio ambiente (instinto), atualmente a matéria prima para a vida humana são elementos industrializados, forjados pelo conhecimento (intelecto), em outras palavras, o Intelecto é mais valorizado do que o Instinto. No Sistema religioso capitalista, dominante sobre a civilização contemporânea, o conhecimento é o bem mais lucrativo. O indivíduo que pelo Intelecto é conduzido prende-se ao ensino recebido, sustenta-se no conhecimento sobrepondo o desejo do Instinto. Na contemporaneidade, como vimos, o Intelecto exerce maior poder sobre os nossos interesses, mas mesmo que a voz do Intelecto seja mais insistente, a voz do Instinto é mais saliente, mais estridente, pois ela nos remete ao primitivo, desejo de bem-estar e ao aconchego intrauterino. É a primeira voz gravada em nosso inconsciente, por isso induz a nossa mente. Porém, na era atual, capitalista e ocidental, ela tem sido inibida pela tecnologia e acréscimo artificial, pois ironicamente, ao mesmo tempo em que desejamos o conforto e o bem-estar sugeridos pelo Instinto, temos que trabalhar em dobro no que não queremos e não gostamos. A Religião Capitalista diz que o oferecido pelo Instinto precisa ser conquistado pelo Intelecto e, desta forma, a voz do desejo primitivo continua gritando aos ouvidos gerando cada vez mais pessoas em conflitos e crises de ansiedade. São muitos os deveres colocados e pela cobrança executados. Por mais que o Instinto seja saliente, o Intelecto se tornou mais forte na Era do Conhecimento, e na divergência dessas duas vozes surge a dúvida no caminho


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alimentando a ansiedade no íntimo. São tantos os desejos apresentados como deveres que os desejos dos quereres se fazem sucumbidos. O querer já não sabe mais o que quer, está embrulhado nos muitos afazeres. Essa Voz do Capitalismo é uma das vozes da Voz Externa. Voz geradora do conflito entre o dever e o querer, o Intelecto e o Instinto. Voz que é ouvida nos Sistemas religiosos econômicos, clérigos ou políticos. Se expressa pela boca da mídia, família, amigos, conhecidos ou desconhecidos. Apresenta uma única verdade. Implanta e sugestiona os afazeres e os deveres. A Voz Externa levanta as chamas das vozes internas. É a quarta voz que bombardeia o Intelecto provocando uma guerra civil e vil. Sentimo-nos, deste modo, em conflito quando a nossa Tríade entra em desequilíbrio. Em outras palavras, quando pela influência da Voz Externa a Razão do Intelecto não concorda com a Vontade do Instinto, desestrutura-se o Eu. A emoção se desalma. Entra em cena a inquietação, um momento oportuno para a reflexão com a finalidade de buscar a harmonização e a conscientização entre Instinto e Razão, sustentando o Eu; concordando, fazendo concessão e tendo assim uma possível reconciliação. O conflito começa no Intelecto, e logo, pelo Intelecto, pela aquisição de outro ensino ou estruturação de outra crença (pensamento), pode haver a diminuição do conflito. Ou seja, o Intelecto confronta o Instinto trazendo a inquietação no Ego e, portanto, creio que remediamos o conflito quando percebemos mais a voz do Intelecto e o dever que ela impõe ao Instinto. Nessa ampliação da percepção me faço mais consciente para que, por meio de outra instrução e em um constante exercício, possa fazê-lo substituído. Não falo que sempre há um substituir e que o Intelecto não se deve ouvir, falo que, quando houver conflito, faz bem refletir sobre a condição do Intelecto, se o que ele absorveu provém de uma boa fonte ou se vem de uma crença fundamentalista (rigorosa) de algum Sistema religioso para, desta forma, encontrar uma ponte entre o Intelecto e o Instinto, resultando no que alguns chamam de Paz Interior, felicidade, ausência de culpa, estado de graça ou inundação do amor (paraíso-útero materno). É muito provável que o Intelecto e o Instinto não andem para sempre de mãos dadas, pois não podemos retornar a integridade do ventre, mas, seja pelo tempo que for, desejo que eles se beijem e se abracem calorosamente e deem bons momentos de tranquilidade à alma. Para findar este esclarecimento, recordo-me dos versos do Livro sagrado judaico-cristão:

“Amarás

ao

teu

Deus

com

todo

coração,

alma

e


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entendimento!”5(Mateus 22.37). Estas palavras

colaboram para ilustrar o Homem

religioso que, desde o seu parto, busca a integridade da harmonia. Harmonia que se expressa na relação íntima com o Poder oculto (organismo materno - ideal de Deus). Temos, assim, o texto bíblico trazendo esta imagem de harmonização entre o Homem e o seu ideal de Poder oculto (deus). Uma relação de amor que, quando ocorre uma integridade relacionada ao verbo amar, a comunhão sagrada se estabelece e o fluxo da sensação intrauterina flui. Essa ação amorosa e harmoniosa, segundo o texto, está sobre um tripé, tal como até agora vimos. Observe que, no amor — estado de equilíbrio —, a alma (Eu) está sustentada entre o coração (instinto) e o entendimento (intelecto), trazendo-nos a imagem que vimos inicialmente: o Leão (alma) assenta-se entre o Boi (coração) e a Águia (entendimento). HARMONIA = EQUILÍBRIO OU DESARMONIA = CONFLITO

INSTINTO

INTELECTO

1ª voz interna Passado Inconsciente Id Corpo Boi

2ª voz interna Futuro Consciente Superego Espírito Águia

Sobrevivência, Desejo (comer, beber, sexo), Natureza, Primitivo, Vontades, Querer, Conforto, Bem estar, Simples, Tranquilidade, Sensação intrauterina, Impulsos...

EU 3ª voz interna Presente Subconsciente Ego Alma Leão Sentido, Sofrimento, Sentimento, Satisfação, Afeto, Ansiedade Identidade, Emoção Área de conflito, Aceitação Reconhecimento, Culpa...

NASCIMENTO

Relação entre intelecto e Instinto

Dever, Projetos, Objetivos, Pensamento, cobrança, Conhecimento, Razão, Entendimento, Visão do Mundo, Tradição, Moral, Experiências, Vivências, Ensino recebido, Ativismo, Trabalho, Crenças...

VOZ EXTERNA VOZ DO CONFLITO Sistemas religiosos (econômico, clérigo ou político. Expressa pela boca da mídia, família, amigos, conhecidos ou desconhecidos. Apresenta uma única verdade. Implanta os afazeres e os deveres. Conflita o dever com o querer, o intelecto e o instinto.

INTERAÇÃO SÓCIOHISTÓRICO-FAMILIAR

Interior do indivíduo religioso em busca do ventre 5

Palavras expressas na oração judaica do Shemá Israel (Ouve Israel!). Manifestação do Deus ―Echad –

Um‖. Fundamento do monoteísmo. Conforme a tradição judaica e hebraica, essas palavras foram recebidas por Moisés na descida do monte Horebe e transmitidas ao Povo de Israel. ―Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força.” (Deuteronômio 6.4. Bíblia versão Almeida Revista e Atualizada). Repetidas em Mateus 22.37 “Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento” (Bíblia versão Almeida Revista e Atualizada).


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