Por Carlos Coléct |1
O INFERNO - שאולsheol
Nós, ocidentais, aprendemos, conforme a tradição cristã, que existe um inferno, local de tormento eterno após a morte física. Este conceito nasce da mitologia grega do Hades — Filho de Chronos, irmão de Zeus e Senhor do mundo inferior - abaixo da terra -, onde residem os mortos desobedientes a Zeus, o supremo do panteão grego. Quando lemos o texto grego do chamado Novo Testamento encontramos a palavra Hades traduzida como “inferno”: Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céug? Descerás até ao inferno (Hades) (Lc 10.15). A existência dessa palavra no texto grego ajudou a permanência do conceito grego de “inferno” – mundo inferior dos mortos. Não somente esta ação contribui para a consolidação da visão cristã sobre o Inferno, como também outros fatos históricos a exemplo do antissemitismo da Patrística cristã (II séc.), sincretismos e interesses teológicos na ascensão do Império Romano (IV séc.), dentre outros escritos como a obra de Dante Aleguieri, “Divina Comédia” (XIV séc), onde o Hades grego é reformulado aos moldes da "Igreja" Universal Católica. Esse inferno de Dante se divide em vários patamares ou círculos onde se encontram pessoas que cometeram os 7 pecados capitais, segundo a catalogação católica. Cada patamar corresponde a um nível de pecado cometido e, curiosamente, o último patamar, residência do Diabo ou Lúcifer e a pior parte do inferno, estão aqueles que desobedeceram aos "superiores", os considerados traidores, rebeldes e revoltosos. Esse Nono e último Círculo, segundo Dante, é o lago congelado de Cocite, o lago das lamentações que fica no centro da Terra e é formado pelas lágrimas dos condenados e pelos rios do inferno que nele deságuam seu sangue. No Cocite estão imersos os traidores, representados por Lúcifer, o traidor de Deus.
No pensamento hebreu, a palavra que se traduz na Lei e nos Profetas como Inferno é שאולsheol, palavra usada num sentido poético para se referir a sepultura (cova)1, local físico onde se colocam os corpos dos mortos, e não um local de tormento eterno após a morte física, assim retratado no Hades grego. Num sentido simbólico e alegórico, שאולsheol é usado para transmitir a ideia de um estado de dormência, inconsciência, ausência de percepção e lucidez, o que pode significar insanidade, pois quem não é lúcido é insano, e insano é não ser são, e não ser são é ser desprovido de saúde, isto é, ser acometido por privações. O Inferno, nesta perspectiva hebraica, é uma condição de escuridão, cegueira interior, perca de visão, privações,... Para exemplificar, podemos analisar o seguinte verso do salmista: Os perversos retornarão ao inferno (sheol), e todas as nações que se esquecem de Deus. (Sl 9.17). Estas palavras, portanto, dizem-nos que os perversos, em consequência de suas más ações, retornarão tanto para g
10.15 Is 14.13-15
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Outra palavra que traduz sepultura no hebraico, entretanto, sem a intenção abstrativa poético, num nível mais concreto, é קבר
qeber.
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sepultura física quanto para um estado de privação, cegueira e insanidade (falta de lucidez - enfermidade). Outros versos são cabíveis para nossa observação:
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Pois não deixarás a minha almaa na morte (sheol),
nem permitirás que o teu Santo veja corrupçãob. 11 Tu me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente. (Sl 16.10,11). É notável aqui o jogo poético das palavras do salmista. Num verso ele declara que sua alma (psique – mente) não ficará na morte (sheol), isto é, não permanecerá na escuridão, cegueira ou falta de lucidez; no verso seguinte ele declara o oposto, expressa a condição contrária em que a sua alma desfrutará, em outras palavras, a sua alma será lúcida, verá os caminhos da vida. Este é o sentido do Céu, local iluminado, de visão e luz, na contrapartida do falta de visão do Inferno (Sheol - sepultura). O Reino dos Céus é, por assim dizer, um reino de lucidez e sobriedade, onde reina, alegoricamente, os filhos da luz — expressão muito usada entre Yeshua e seus discípulos. Linguagem que provavelmente tenha sido influência da classe judaica dos essênios. Respondeu-lhes Jesus: Ainda por um pouco a luz está convosco. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos apanhem; e quem anda nas trevas não sabe para onde vai. 36 Enquanto tendes a luz, crede na luz, para que vos torneis filhos da luz. Jesus disse estas coisas e, retirando-se, ocultou-se deles. (Jo 12.35,36); Mas vós, irmãos, não estais em trevas, para que esse Dia como ladrão vos apanhe de surpresa; 5 porquanto vós todos sois filhos da luz e filhos do dia; nós não somos da noite, nem das trevas. 6 Assim, pois, não durmamos como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios.(1 Ts 5.4-6) Sob esta perspevtiva, entende-se que quando a assembléia dos justos (filhos da luz) avançam, as portas do inferno (sheol – condição de cegueira, escuridão e insanidade) não prevalecem; a lucidez de entendimento, a consciência lúcida e a revelação fazem com que as trevas se dissipem. Desta forma se percebe o seguinte texto: Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei (oikodomeo – impulsionarei) a minha igreja (ekklesia – assembléia), e as portas do inferno (sheol) não prevalecerão contra ela. 19 Dar-te-ei as chaves do reino dos céus (reino de luz); o que ligaresh na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céu (Mt 16.18,19). Sob a pedra (revelação do messias – a pedra angular Ef 2.20; Sl 118.22), portanto, o Reino dos Céus ou reino da luz avança e dissipa a escuridão do Inferno (sheol – sepultura). Vale ressaltar, nas linhas finais, que além do Sheol (sepultura), analisado até o momento, existe outro conceito figurativo no hebraico chamado Geenna ou Vale de Hinon que transmite a ideia da condição infernal humana. Há, no NT, textos em que “inferno” é traduzido de Geenna. Não obstante, este conceito hebraico também foi transformado pela tradição “cristã”, tomando a forma de um lago de fogo a
16.10 1Co 15.4
h
16.19 Mt 18.18; Jo 20.23
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reservado para os ímpios após a morte física. De fato, estas palavras estão escritas nos textos do Novo Testamento, porém, o importante não é somente o que está escrito, e sim como é lido e interpretado. Pois bem, Geenna ou Vale de Hinon, era um local geográfico ao sul de Jerusalém, onde o lixo e os animais mortos da cidade eram jogados e queimados.2 Por ser um “lixão”, transformou-se numa forma de linguagem figurativa para expressar o resultado da impureza, isto é, a consumação pelo fogo ardente. Todavia, este fogo que consome não é necessariamente literal, como se percebe na fala de Tiago (Yacov), um judeu: Ora, a língua é fogo; é mundo de iniqüidade; a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o corpo inteiro, e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana, como também é posta ela mesma em chamas pelo inferno (Geenna no texto grego). (Tg 3.6) Por fim, cabe esclarecer que algumas parábolas ensinadas por Yeshua, como a do Rico e o Lazaro (Lc 16.19-31), a qual parece afirmar a imortalidade da alma em um local para mortos, não são, em sua maioria, literais, são aggadot (plural) — termo aramaico que corresponde a uma pedagogia judaica, em que se contam histórias ou fábulas com o intuito de transmitir um princípio não focado na veracidade do que está sendo contado. A visão proposta neste presente texto, portanto, discorda do Inferno como local de tormento eterno após a morte, ou região controlada por espíritos, demônios ou diabo, enquanto seres. Todavia, concorda com a visão de uma condição interna humana.
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Strong, James: Léxico Hebraico, Aramaico E Grego De Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2002; 2005, S. H8679