Por Carlos Coléct – 16/01/2015 |1
Sobre o Consolador “... a tua vara e o teu cajado me consolam” (Salmos 23.4)
1. Introdução
O Consolador — com letra maiúscula —, na interpretação cristã, é uma das facetas do Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Tal doutrina, segundo estudiosos, foi introduzida inicialmente por Tertuliano — advogado convertido ao cristianismo no séc III — através do uso do termo trinitas; entende-se que dele também é a frase: “O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”. Por interesses políticos e imperiais, influências gnósticas e pelo afastamento da teologia hebraica, alguns textos no chamado Novo Testamento receberam acréscimos e interpolações por parte dos líderes da Igreja Romana, com a finalidade de afirmar a doutrina trinitas; 1 João 5.7 e Mateus 28.19 são exemplos dessa articulação romana: Pois há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. 8 E três são os que testificam na terra]: o Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito. (1João 5.7) Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, [batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo]; (Mateus 28.19). — Entre colchetes estão as palavras que não se encontram nos textos mais antigos. Tendo a Santíssima Trindade, portanto, como base e herança histórica teológica, as seguintes palavras, acerca do Consolador, descritas no texto de João, tomaram muitas formas no seio da Cristandade: E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, 17 o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós. [...] Isto vos tenho dito, estando ainda convosco;
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mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu
nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. (João 14.16,17;25,26). Todavia, sem estar comprometido com as interpretações cristãs sobre a citação, proponho outro ponto de vista sobre o Consolador, sem visualizá-lo como uma pessoa que se assenta entre a Trindade. Meu ângulo de visão para esta proposição se baseia num pensamento hebraico, compreendendo que o Novo Testamento não está desassociado do Tanach (ou Velho Testamento), e que o Cristo, por ser um Ungido hebreu, tem as suas palavras embasadas nos textos da Lei, dos Profetas e demais escritos (ketuvim), como o livro dos Salmos.
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2. A consolação na visão do pastor
Para o início desta proposta, é pertinente fazer a seguinte pergunta: “quando o Ungido (cristo) fala de um consolador, com qual texto hebreu ele poderia estar relacionando (midrash) a sua fala?”. Muitos são os textos do Tanach que tratam de uma consolação por parte de Deus ao seu Povo, entretanto, há um em especial que pode revelar uma profundidade sobre o assunto em questão. Nos Salmos, o primeiro livro da terceira divisão do Tanach, chamada de K(ch)etuvim (escritos), expressam David, no salmo 23, relatanto uma situação de pastoreio, em que ele está na condição de ovelha perante um Pastor: O SENHOR (YHWH) é o meu pastor; nada me faltará. [...] Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. (Salmos 23.1;4). O verso 4, neste prisma, manifesta o consolador na visão de um hebreu, sobretudo, na visão de alguém que está na posição de pastor, assim como David e aquele que é entitulado Ben David (filho de David): Por isso, assim lhes diz o SENHOR Deus: Eis que eu mesmo julgarei entre ovelhas gordas e ovelhas magras. 21 Visto que, com o lado e com o ombro, dais empurrões e, com os chifres, impelis as fracas até as espalhardes fora,
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eu livrarei as minhas ovelhas, para que já não sirvam de rapina, e julgarei
entre ovelhas e ovelhas.
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Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo
Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor. (Ezequiel 34.20-23); Eu [Yeshua] sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. (João 10.11). Ambos, David e Yeshua, mas não só eles, como também um remanescente de Judá, exemplificado em Pedro (Kefá), são chamados para serem pastores das ovelhas de Israel: Pela terceira vez Yeshua lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas? E respondeulhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo. Yeshua lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas. (João 21.17). Visando esta posição de pastores de Israel, é justo pensar que carregavam em seu pensamento a ideia do consolo descrita no Salmo 23.4: a tua vara e o teu cajado me consolam.
3. A inspiração (ruach) que movimenta
Neste ponto, em relação a figura do Espírito, vale ressaltar que na espiritualidade de Abraão, Isaque e Jacó não havia uma personagem ou pessoa — Espírito Santo — que compunha uma Trindade Santa, sendo assim, é plausível deduzir que o representante (ungido) dos Patriarcas
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também não tinha em mente a concepção de tal pessoa. Para melhor esclarecer, na linguagem dos Patriarcas e do povo de Israel havia espírito, porém, não como uma pessoa, e sim como רוחruach (hb.), cujo significado é sopro ou ar. Este significado conceitua-se em uma inspiração que potencializa e motiva uma ação, assim como o ar nos pulmões que movimenta o corpo ou o ar que movimenta um pneu, daí a palavra grega pneuma utilizada para espírito. A tradução latina das palavras ruach (hb.) e pneuma (gr.) nos textos bíblicos por Espírito - spiritus (Lt.) como nome próprio acabou por dificultar esta compreensão do pensamento hebraico. O texto de Isaías exemplifica a ruach na linguagem hebraica como inspiração; sopro que cria energia eólica e dá movimento a uma ação, no caso, inspira o “renovo de Jessé” a agir com sabedeoria, entendimento, conselho, fortaleza, conhecimento e temor: Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo. 2 Repousará sobre ele o Espírito (ruach – sopro) do SENHOR, o Espírito (ruach – sopro) de sabedoria e de entendimento, o Espírito (ruach – sopro) de conselho e de fortaleza, o Espírito (ruach – sopro) de conhecimento e de temor do SENHOR. (Isaías 11.1,2). Dentro desta maneira de ver, o “espírito da verdade” e o “espírito santo ou da santidade” é uma inspiração (ar -ruach) produzida quando se desvenda e contempla o aculto, associado a novidade — sentido de verdade aletheia gr. / emet hb. — e quando se separa para um propósito específico — sentido de santidade – kadosh hb.. A verdade, para os discípulos nazarenos, consiste na mensagem dos Profetas de Israel reafirmada em Yeshua e a santidade na separação para dar continuidade a essa mensagem. A busca que visa estes dois alvos é o combustível que mantêm o fluxo de energia - inspiração (ruach – espírito). Num processo de retroalimentação, a exemplo de um carro que, ao estar em movimento, gera constante energia para si mesmo, o caminhar dos discípulos na busca pela verdade e santidade gera inspiração e energia que os movimenta para as mesmas, em um ciclo de inspiração (energia ruach). BUSCA Verdade (oculto revelado, novidade) Santidade (separação para um propósito)
Espírito (spiritus) Versão latina Ideia de pessoa
Ruach רוח Hebraico Pneuma πνευμα Grego
Pensamento hebraico
Produz
Sopro Ar
Inspiração Energia
retroalimentação BUSCA Verdade (oculto revelado, novidade) Santidade (separação para um propósito)
Movimento ação
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4. “... a tua vara e o teu cajado me consolam”
Esplanado, brevemente, sobre a ruach (inspiração), atenho-me a análise do “consolador”. Em seu contexto, os díscípulos do cristo se afligem com o anúncio da ausência do mestre. As palavras de morte perturbam as suas mentes, visto que o início do discurso messiânico é: Não se turbe o vosso coração... (João 14.1). É nesta situação de pesar que “entra em cena” o consolo ou alívio por intermédio da ruach – inspiração. De onde nasce a inspiração senão das palavras? Deste pressuposto, foram liberadas palavras como: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize. 28 Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós (João 14.27). Tais promessas são a inspiração (espírito – ruach) e o alívio (consolo) para o momento de perda. É interessante que a palavra grega usada para consolador é παρακλητος parakletos, um termo jurídico que indica um defensor, procurador, advogado, mediador; sua raíz original e literal é "chamar para o lado - parakaleo”. Parakletos, portanto, mostra a ação de defender ou chamar para o lado no sentido de proteger e acolher. Desta forma, a inspiração (ruach) recebida é uma consoladora; ela atua como a vara e o cajado do pastor que, como diz David, ainda que entre em um vale de perigos, a vara e o cajado são consoladores (nacham hb.), ou seja, ferem para a correção, protegem dos lobos e trazem de volta para o caminho e para o lado (parakaleo) do Pastor. A crença na existência de uma vara e cajado produz inspiração (ruach – espírito) em David, ele não teme continuar em movimento, porque sabe que a vara e o cajado estarão sempre ali para corrigi-lo, protegê-lo e trazê-lo de volta: Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. (Salmos 23.1;4). Em síntese, o consolador ou alívio no pesar da alma é também o espírito que, como vimos, é uma inspiração (ar – ruach) — gerada pela palavra absorvida — que produz movimento para o caminhar em um determinado caminho; este alívio ou conforto está expressado na “vara e no cajado” do pastor revelados em situações de perigo. Este vale da sombra e da morte era o vale de perigos em que os discípulos do ungido hebreu estavam prestes a entrar, por isso lhes fôra dado inspiração (ruach – ar) pela palavra, gerando o alívio no pensamento de que a vara e o cajado sempre estariam com eles: E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador [alívio - vara e cajado], a fim de que esteja para sempre convosco, (João 14.16). Ainda que os discípulos se esqueçam do propósito recebido (caminho do aprisco), a vara e o cajado do pastor se tornam em inspiração (ruach) que conforta, ensina, corrige, traz de volta ou relembra: esse vos ensinará todas
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as coisas e vos fará lembrar [retornar] de tudo o que vos tenho dito. Resumidamente, as situações que manifestam correção, proteção e acolhimento são a imagem da vara e do cajado e, em si, a expressão do consolador (alívio).
Palavras proferidas e absorvidas
Produz ruach (espírito) na mente
CONSOLADOR Parakletos
Vara e cajado
Inspiração Energia
- Defensor - Advogado - “chamar para o lado”
- corrige - protege - traz de volta (acolhe)
Movimento sobre a crença na existência de uma vara e cajado