Por Carlos Coléct – Cept- 02/01/2016 |1
O SUICÍDIO ALTRUÍSTICO
Émile Durkheim (1858 – 1917), em O Suicídio (1897) — monografia que se tornou uma grande obra para a sociologia —, classificou e explicou três tipos de suicídios: suicídio egoísta, suicídio anômico e o suicídio altruístico. Destes três, atrevome a comentar o terceiro, o qual, segundo Durkheim, é o sacrifício da própria vida em benefício de outra. Ouso ampliar esta definição para o campo do pensamento teológico, pois o altruístico me parece ser o mais comum e menos percebido (ou mais ignorado) dos suicídios na sociedade teocêntrica em busca de um Poder Oculto — metafísico ou físico, tenha forma ou não, seja uma ideologia ou um pensamento — que transcende a falibilidade humana. Sobre a impercepção do suicídio altruístico, é plausível pensar que assim se dê pelo peso pecaminoso que a própria palavra carrega. O suicida é alguém que ofende o Doador da vida e, por isso, é indigno de perdão – pensa a tradição ocidental. Visualizarse nessa posição é inconcebível para muitos. Melhor é se nomear solidário, caridoso, bondoso, beato, trabalhador, esforçado, dentre muitas outras palavras mais confortáveis, como veremos nos exemplos a frente. Não obstante, entendo que o suicídio altruístico, ainda que convenientemente imperceptível, é vigente em todos os grupos sociais: econômico, clérigo ou político. Existe um sacrifício pessoal (morte de si mesmo) exigido em todos os âmbitos da sociedade humana, isto pelo motivo de ser uma Sociedade centrada na busca por um Sagrado que, desde o início da civilização, convoca a Humanidade ao ato sacrificial de animais, humanos ou agrícolas. Não vem ao caso trazer explicações sobre a visão ampliada acerca da religiosidade humana, basta saber que todo Ser Humano é religioso, isto é, caminha em direção a uma religação com sua origem inundada em interrogações. Quando alguém, por exemplo, sacrifica o seu sono para que a empresa cresça; quando alguém sacrifica o seu tempo para ganhar mais dinheiro, dentre outras formas de sacrifícios capitalistas, tal pessoa é vista como uma trabalhadora esforçada, não como uma suicida, porém, ao analisarmos o profundo das intenções, ela está, por motivos e propósitos semelhantes, agindo como os antepassados que sacrificavam ao Sol, aos deuses e deusas nos altares e nos altos das montanhas. A vida é sacrificada ao seu sagrado (no caso, o capital), o qual promete e proporciona por algum momento a sensação de bem-estar, completude, satisfação, segurança, proteção, sustento, enfim,
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tudo o que se busca de um “deus”. Comete-se, assim, um suicídio em prol de um ideal, sonho de consumo ou um bem (segundo a teologia do empreendedorismo da religião capitalista). Igualmente o fazem os discípulos dos ensinos do Cristianismo que, em suas interpretações sobre os textos bíblicos, observam o suicídio altruístico como um mandamento divino que, obviamente não é assim considerado, e sim denominado solidariedade, amor, santidade, consagração,... Negar e dar a vida são o exemplo deixado por Cristo – declaram os cristãos. Neste aspecto, o ícone do cristianismo se transforma num suicida exemplar. Vejamos que o livro de João expressa que o Cristo dá a sua vida em benefício de suas ovelhas: Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor. 17 Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. 18 Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. (João 10.16-18). Em outra passagem, o Mestre, voltando-se para os seguidores, estabelece o mandamento de autonegação:
26
Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e
filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. 27 E qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo. (Lucas 14.26-27). Desta forma, as palavras sacrificiais do Cristo no Getsêmani — não se faça a minha vontade, e sim a tua [Deus]. (Lucas 22.42) — são, para os seguidores, o modelo de suicídio altruístico, tanto no sentido físico como psíquico. Os personagens bíblicos, dentre eles Paulo, para os romanos, ou rabino Shaul, para os judeus, seguiram o mandamento sacrificial; entregaram suas vidas em nome de uma missão proseletista, e por tal renúncia morreram apedrejados, a exemplo de Estevão, ou crucificados. Hoje, como herança das interpretações gnósticas e ascéticas, os grupos da cristandade (protestantes, católicos, espíritas,...) continuam a seguir esse tipo de suicídio sob o pensamento de solidariedade (caridade) e teologias que incentivam a mortificação da carne, do corpo, dos desejos, das vontades e da vida. Como visto, porém, esta característica suicida altruística não é exclusiva de apenas alguns grupos ou indivíduos, é plenamente natural da humanidade que visa um sagrado. Muitos são os exemplos explícitos desse comportamento na sociedade contemporânea, cito alguns: o homem-bomba, no Islã (entrega, submissão), acredita estar fazendo um bem para a humanidade ao obedecer aos líderes extremistas seguidores de Maomé e ordenados por Alá e, desta maneira, está convicto de que
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receberá virgens num paraíso; o kamikaze (vento divino) japonês, na segunda Guerra mundial, absorveu o ensino “nada perguntar, mas submeter-se à providência divina” de Norinaga Motoori, além de carregar a bandeira do xintoísmo estatal e a dedicação ao deus-homem-vivo (o imperador), por isso, acreditou na honra de morrer por seu país e imperador ao se jogar com seu avião sobre os navios inimigos; Madre Tereza de Calcutá doou sua vida aos pobres; Francisco de Assis renunciou suas riquezas em benefício dos desprezados; Freud também cometeu seu suicídio altruístico pelo ideal da psicanálise; Marx, Nietzche, Heiddeger e os demais pensadores se sacrificaram por seus pensamentos sobre o mundo e a Humanidade; tantos outros — nós todos — negam a si mesmos em prol de um bem ideal que, para cada um, em particular, é representação de algo sagrado — algo separado como especial, santificado, retirado do contexto comum e ordinário — que lhe devolve o sentido da vida. Todo Homem, em sua crença, se sacrifica e se suicida para alcançar um Bem (algo desejado) que reside nas mãos do seu Sagrado, sendo, portanto, uma troca expiatória em que uma vida é dada pelo resgate de outra; nesta perspectiva, o Tanach (bíblia hebraica) expressa muito bem esta relação sacrificial e suicida entre o Homem e seu Sagrado: Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida. (Levítico 17.11). Vale, por fim, compreender que o cerne do suicídio é aliviar-se de um sofrimento ou dor insuportável, o altruístico também é motivado pelo alcance desse alívio. Todo Bem que se almeja no despreendimento ou negação de si mesmo se volta inconscientemente para si próprio; — tudo o que desejamos é um desejo refletido em um espelho — ainda que haja a afirmação de que o Bem objetiva o outro ou a Humanidade, o suicídio altruístico é praticado para provocar o alívio no sofrimento causado pela incógnita e incompletude existencial de si mesmo. O objetivo e desejo motivador acabam por ser o resgate (expiação) de uma vida melhor, em completude. Em sinceridade e na primeira pessoa, seria como declarar: sacrifico-me em prol do outro (pessoa, empresa, ideal, instituição, grupo) para sentir-me bem comigo mesmo, para sentir minha vida resgatada.