Ano 3 - nยบ6 - 12/2017
grafias
POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Correa | Diretor Administrativo Financeiro Maria Izabel Casanovas | Assessora Técnica Ivanei da Silva | Museólogo Carla Regina Oliveira | Imprensa Angela Kina | Design CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA REVISTA GRAFIAS - revista do Centro de Apoio ao Escritor Marcelo Tápia | diretor Reynaldo Damazio | editor Maria José Coelho / Dayane Teixeira | Assistentes Angela Kina | Design Gráfico Carolina Ferreira, Giany Blanco e Renato Marciano | Assistentes
Ano 3 | Nº 6 DEZEMBRO | 2017
grafias
sumário 7
editorial ensaio
8
autoria, discurso e escrita literária: notas sobre foucault e barthes oficina
12 20 28 32 33
contos com palavras de estímulo: um método para a elaboração de textos acadêmicos homenagem: violeta parra: o centenário de uma poeta popular memória das coisas deixadas pra trás criação da janela, o horizonte ficção “o certo é ir embora. ficar é a mentira.” [cortázar]
editorial A revista Grafias, publicação do Centro de Apoio ao Escritor do museu Casa das Rosas, chega ao sexto número discutindo questões que são essenciais para a formação de autores, em sua dimensão mais estrita do trabalho com a linguagem e da inserção no ambiente da escrita literária. Nos ensaios assinados por Fabrício Tavares e Mayra Scheffel são abordados os temas da voz que se expressa nos textos, ou que se constitui a partir da escrita, e o uso da narrativa de ficção para alimentar os processos criativos na redação de ensaios ou textos acadêmicos. Também nesta edição a merecida homenagem à compositora, artista plástica e poeta chilena Violeta Parra, nascida em 1917, em artigo do jornalista Franklin Valverde. Dando continuidade à publicação de produções de alunos do CAE, incluímos textos que transitam entre o ensaio e a ficção, como exercícios de criação sugeridos em sala. Boa leitura!
8
ENSAIO
AUTORIA, DISCURSO E ESCRITA LITERÁRIA: NOTAS SOBRE FOUCAULT E BARTHES Fabrício Tavares
“De repente ouço minha voz caminhando pela rua logo abaixo de minha janela” Heitor Ferraz Mello, Meu semelhante
A questão Que importa quem fala? é aqui atravessada por outras. Que vozes compõem certos processos de escrita? Que regras os configuram? Quem é o sujeito que toma a palavra no jogo do discurso? Quais as potências a linguagem convoca que promovem na literatura um apagamento do sujeito que escreve, sua aparente dissolução e, até mesmo, sua transformação? Como o sujeito se constitui em relação ao texto, ao mundo, em relação a si e aos outros? Tais questões surgem com frequência nos limites entre filosofia e literatura, teoria e crítica literária. Roland Barthes e Michel Foucault deram a elas uma tonalidade especial, na segunda metade do século XX, com a publicação de dois textos críticos sobre a noção de autoria, o primeiro em 1968 e o segundo em 1969. Outros autores, como Maurice Blanchot e Gilles Deleuze, reivindicaram também uma dimensão impessoal para a escrita literária, dimensão de exterioridade, dimensão na qual o sujeito que escreve - o indivíduo, o autor - perde importância diante da força coletiva, ética, estética e política do texto literário. Pretendo assim, neste ensaio, a partir de questões extraídas dos textos de Barthes e Foucault, não mais do que expor umas poucas notas de leitura acerca de algumas dessas implicações. 1Professor,
filósofo, músico e compositor. Doutorando em filosofia, com projeto sobre o papel da escrita no pensamento de Michel Foucault.
9
*** No ensaio A morte do Autor, Roland Barthes retoma o problema da escrita literária sob a ótica do estruturalismo francês. O ponto de partida do texto é uma citação da novela Sarrasine, em que Balzac, ao falar de um castrado disfarçado de mulher, escreve: “Era a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos.” Ao articular a citação à questão “quem fala?”, Barthes apresenta seguramente um fio condutor de seu texto, oferecendo como perspectiva inicial a hipótese de que jamais será possível responder a questão e saber quem fala: se o indivíduo Balzac, o autor Balzac, o herói da novela ou a sabedoria universal. A escritura é, para Barthes, a destruição de toda voz, de toda origem; e o Autor uma personagem moderna que coincide com o advento do positivismo e do capitalismo, segundo uma ordem de sobrevalorização de características individuais bastante comum ao liberalismo econômico de nossa época. Barthes então direciona sua crítica ao “culto do Autor”, à intenção moderna de sobrevalorizar a pessoa do escritor em relação à obra. Em outras palavras, esse fenômeno inaugura a crítica literária moderna, cuja investigação sobre a pessoa do autor seria o ponto de partida para a decodificação da obra. Como contraponto, Barthes evoca as sociedades etnográficas em que o xamã toma a palavra apenas como mediador do discurso, da narrativa, e não como pessoa, indivíduo em que se originaria o discurso. Nesse sentido, escreve Barthes em relação ao xamã: “a rigor, se pode admirar a performance (isto é, o domínio do código narrativo), mas nunca o ‘gênio’.” A escritura (a literatura) é, então, para Barthes uma atividade performática cuja linguagem é seu território primeiro, seu ponto de partida, e não o Autor. Importantes contrapontos surgem nas obras de Mallarmé, Proust, Valery, Brecht, no Surrealismo e na própria Linguística, mas é na crítica à perspectiva hermenêutica (que tem origem na
teologia medieval) que Barthes conclui sua leitura sobre a morte do Autor. Uma vez desconstruído o culto do Autor, a pretensão de atribuir ao texto um sentido único (uma lei) se torna inútil. Isso porque todo processo de escritura é feito de uma multiplicidade de outros textos, oriundos de diversas culturas, de diferentes épocas, e na qual uma multiplicidade de sentidos ganha unidade não mais na figura do Autor, mas na figura do leitor. É o leitor (e não o Autor) quem confere, a partir de probabilidades múltiplas de significação, novos sentidos à obra. É a linguagem, em sua potência de exterioridade, o motor da escritura, o fora de qualquer planejamento e de qualquer busca de um sentido velado no texto. A escritura é, para Barthes, uma atividade contrateológica. O ato de escrever adquire, então, uma tonalidade impessoal e um caráter de acontecimento; e o Autor, deslocado de qualquer genialidade manifesta, é além do mais um leitor, compositor de discursos dispersos no tecido da cultura, arranjador intempestivo e aberto à linguagem como fonte primeira do texto literário.
*** Em fevereiro de 1969, Michel Foucault apresenta uma comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia, com o título O que é um autor?. No registro da conferência, pronunciada no Collège de France, onde viria a trabalhar no ano seguinte, Foucault repensa algumas das objeções colocadas a seus trabalhos anteriores, de certo modo, respondendo a elas com uma formulação crítica sobre a questão do autor. Para ele, o autor deve ser pensado como uma função no discurso, na medida em que não se trata apenas de um apagamento de seus caracteres empíricos, mas de observar as articulações que, na linguagem, nos textos e em cada época, o caracterizam e o compõem a partir de diferentes status e funções estruturais que organizam, distribuem, legitimam ou deslegitimam discursos em nossa sociedade. Importante sublinhar que o texto de Foucault, assim como o de Barthes, aparece na esteira
10
das revoltas sociais do Maio de 68 francês. Seria assim um equívoco acreditar no caráter unicamente teórico dos questionamentos que aparecem nesses textos. O pensamento teórico desses autores se faz entrelaçado às reivindicações culturais e sociais do momento: a teoria é, nesse sentido, indissociável de uma ética como prática social. Assim como Barthes, Foucault inicia seu texto pela questão (tomada de empréstimo a Samuel Beckett) que importa quem fala?, reconhecendo nesta indiferença um dos princípios fundamentais da escrita contemporânea, um princípio ético com o qual a escrita literária apresenta um traço fundamental de seu processo, sua “regra imanente, constantemente retomada, nunca completamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática.” Regra imanente que abarca dois temas fundamentais: primeiro, o caráter de exterioridade da escritura, a literatura como limite e transgressão; segundo, a sua relação com a morte: desde o sentido da narrativa grega exaltando a memória do herói, como o que conferia a ele imortalidade, ao apagamento dos caracteres individuais do sujeito que escreve como procedimento ético da escrita contemporânea. Foucault, contudo, não está convencido de que a “morte do autor”, que desde Mallarmé se apresenta como um protocolo da escrita literária, tenha escapado, por assim dizer, de um sentido transcendental muito próximo do princípio religioso da tradição. Isso porque interessa a Foucault, naquele momento, analisar o conjunto de problemas e regras imanentes que constituem esta noção, sem dúvida historicamente construída, que é a existência mais ou menos concreta do autor. Em outras palavras, é nas diferentes funções que nossa civilização ocidental conferiu à autoria que Foucault encontrará uma chave de leitura para as suas inquietações sobre o tema: a função-autor possui suas constantes históricas, mas varia também conforme a época e de acordo com os regimes discursivos filosóficos, literários, jurídicos e políticos - nos quais os textos circulam e se inscrevem.
BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Marins Fontes, 2012. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. 8. ed. Lisboa: Vega, 2012. SUGESTÕES DE LEITURA BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: ______. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. MELLO, Heitor Ferraz. Meu semelhante. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
11
12
OFICINA
CONTOS COM PALAVRAS DE ESTÍMULO: UM MÉTODO PARA A ELABORAÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS Mayra Scheffel
“Sem texto escrito não existe aprendizagem. Sem texto escrito não existe compreensão. Sem um texto escrito eficaz não existe um discurso científica.” BRÄUER, GIRGENSOHN (2016)
1. Introdução Aprendizagem e compreensão se desenvolvem a partir de um texto escrito; é assim que entendo os pesquisadores alemães Gerd Bräuer e Katrin Girgensohn no prefácio da obra GRIESHAMMER et al. (2016) “Modelo futuro da tutoria para a elaboração de textos“. Os autores consideram essencial a conexão do texto escrito ao desenvolvimento da pesquisa científica. A minha proposta é apresentar postulados essenciais para uma carreira universitária e profissional. Estes postulados, eu os aplico na Universidade alemã Karlsruhe Institute of Technology (KIT), com o objetivo de criar motivação válida para a elaboração de qualquer texto sobre um trabalho científico. Dispus-me a desenvolver um processo de ampla averiguação, detetivesco mesmo, mas também objetivo e científico, com foco na pergunta: Como e com que métodos posso propor aos estudantes um padrão satisfatório para a criação de um texto acadêmico?
13
2. Pesquisa básica Conheço o CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO desde o colégio e do ensino de línguas estrangeiras. Este método motivacional não se costuma aplicar ao preparo de textos acadêmicos – mesmo assim eu estava disposta a oferecer um exercício fácil e motivador para os estudantes se interessarem por um processo de elaboração de textos. Contos se situam no âmbito literário e não costumam ter uma relação com escritos acadêmicos. Minha experiência com textos, adquirida durante mais de dez anos, mostra, porém, um resultado diferente: textos convencem sempre quando possuem uma boa textura, e são apresentados com as caraterísticas de um conto, em referência, por exemplo, aos protagonistas. Estes não somente ajudam a construir a sequência de ações de um conto, mas também aprimoram o trajeto de uma tese acadêmica – refiro-me aos autores que lançam teoricamente os fundamentos de um texto acadêmico; tais fundamentos o escritor de uma tese faz interagir em algum tipo de debate. Este artigo procura aplicar esta idéia. Dois “protagonistas“ me inspiraram para este artigo: 1. Otto Kruse, professor de técnicas de elaboração de textos e 2. Hans-Peter Ortner, o linguista de comportamento. Kruse apoia minha idéia; ele diz: “O entendimento das regras de como referir ou relatar [em escritos acadêmicos] é muito importante porque os autores recebem uma voz própria através do ato de referir, mesmo quando não se apresentam com um ‘eu‘. Na novela vemos
uma situação parecida [destaque da autora]. Aí também existe uma voz narrativa audível, sem que o narrador apareça. Mas, sem dúvida, a voz narrativa que sustenta o texto é vinculada ao narrador. Além da voz do narrador, outras vozes também se fazem ouvir, e são as vozes das figuras que se expressam nos diálogos ou na voz indireta. A situação quanto aos textos acadêmicos é muito parecida [destaque da autora].“ (KRUSE 2015). O segundo protagonista, Hans-Peter Ortner, tornou-se um modelo para mim no artigo “De como motivar ideias e acumular atenção“ (ORTNER 2003), onde ele vai em busca de estratégias para a elaboração de textos tal como um detetive, e consulta não somente cientistas, mas também escritores considerados experts em composições de sucesso. Ao mínimo denominador comum e ponto de partida para todos que estão diante de um processo de elaboração de texto, Ortner chama as ideias. Elas se juntam a arcadas e prédios quanto mais se viram e giram. Do mesmo jeito que Ortner busca uma resposta à pergunta de como um processo de elaboração de texto se efetua intrinsicamente no escritor, eu faço uma investigação detetivesca sobre o mínimo denominador comum de um exercício que possa compreender todas as perguntas sobre problemas dos estudantes no processo de elaboração de texto. Escrever ou relatar um conto é competência intrínsica de cada um. Portanto, desenvolvi o exercício do CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO e espero que produza o efeito desejado: motivar os estudantes para a elaboração de textos.
1 Professora na Universidade alemã Karlsruhe Institute of Technology (KIT). Todas as citações são traduções do alemão. A palavra “conto“ aqui não designa um gênero. Eu a compreendo como “evento, relato“ com referência à origem etimológica (DICCIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA ALEMÃ, 2004) e explico aos estudantes a palavra designando todo tipo de relato. Mas todo tipo de relato se baseia numa teoría narrativa destinada a aplicar-se durante o exercício.
14 2.1 O CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO como uma aproximação metodológica Os participantes do curso provêm de diferentes disciplinas e de todos os níveis acadêmicos encontrados no KIT. Ofereço o curso “Sem dificuldades para uma escrita acadêmica“ dentro da instituição House of Competence do KIT desde o segundo semestre 2014/2015. Entre os participantes, 60 % possuem maior experiência na escrita; os outros 40 % costumam escrever pouco, por causa da natureza da matéria. Alguns deles já têm escrito teses de bacharelado; ou, pelo menos, já têm escrito trabalhos curtos resumindo cursos. Mais de 80 % revelam que gostariam de aprender como estruturar um texto. Uns 10 % admitem bloqueios na escrita ou são frustrados por causa de sucessivos e involuntários adiamentos. Uns 20 % se consideram experimentados na escrita, mas querem ampliar sua competência. Todos esperam de mim respostas sobre como superar bloqueios individuais ou como adquirir novas competências. O CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO apresenta um método que serve para todos os estudantes, não importa qual seja a matéria, o problema ou a pergunta. O exercício visa identificar claramente um número concreto de palavras necessário para se construir um conto. Os números acima apresentados se tornaram evidentes durante um currículo de dois anos em que perguntei aos estudantes, no começo de cada curso, sobre as suas experiências ao escrever textos. Eu mesma me apresento como escritora habilidosa e profissional na revisão de textos, e declaro no início do curso que, por meio do CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO, provarei a cada participante que ele ou ela já domina a competência de escrever uma tese acadêmica. Até agora esta sugestão, emocionalmente positiva, sempre tem inspirado os participantes a darem o seu melhor durante a realização do exercício; seu efeito motivacional permanece durante todo o curso.
Do latim: texere = “tramar, trançar, construir, arquitetar“.
3. MINHA MUNIÇÃO: O CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO COMO EXERCÍCIO Os estudantes recebem um folheto que explica o exercício e são orientados a escrever em papel de sua escolha ou em um laptop.
EXERCÍCIO “CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO“ “Escreva um conto em pelo menos uma página em papel A4. Escolha ao menos cinco das seguintes vinte palavras ou expressões: Perseguir, demora, sabiá, pilar, ainda quando, por conseguinte, calçamento, lixo, desperdiçar, alaranjado, oblíquo, descuidadamente, solícito, cidadão indignado, companheira, servir a mesa, bola, resíduos, ponta, desvalido. Tempo: 30 minutos“. Após todos fazerem o exercício, leio, para todos os participantes, dois ou três dos contos preparados; observo a reação geral, que se poderia chamar de “coquetel de entusiasmo neurobiológico“, segundo HÜTHER (2009). Estudantes que introduzem em seus contos expressões como “eu não sei escrever um conto“ geralmente apresentam textos com estruturas claras e experimentam a apreciação positiva da sua competência de escrita por parte de seus companheiros. A seguir, gostaria de enfocar as bases para um criterioso processo educacional criado neste contexto pedagógico. 3.1 De um conto “fácil“ para uma tese “difícil“ – é possível? Alguns contos são apresentados aos estudantes. Como experienciada na elaboração e revisão de textos, informo cada estudante quão próximo ele está da elaboração de um conto com clara sequência narrativa. Como os outros participantes também dão suas opiniões, cria-se uma atmósfera confiante com respeito à própria competência quanto à elaboração de textos. Neste
15 ponto faço a pergunta: “O que tem a ver um exercício assim, a redação de um texto ficcional, com a elaboração de um texto acadêmico?“ E realmente bem poucos são os que podem imaginar uma relação entre ambos. Contos são vinculados à ficção, teses têm a ver com a realidade. Contos são engraçados. Teses não têm muita graça; antes, criam tédio, esforço, pressão e frustração. Todo este horizonte de expectativas é construido; então proclamo solenemente: “Quem sabe escrever um conto, também sabe escrever uma tese.“ Voltamos então ao exercício e identificamos as palavras de estímulo. São: verbos, substantivos abstratos, substantivos concretos e adjetivos. As palavras dessas categorias têm objetivos distintos. Verbos geram ações, que se desenvolvem através dos protagonistas (substantivos concretos). O modo da ação se expressa através dos adjetivos. Substantivos abstratos são igualmente participantes da ação. O tipo de enfoque perspectiva narradora também pode ser tratado neste contexto por ser elemento importante da escrita acadêmica. Palavras como “alaranjado“ são palavras menos usadas e são um estímulo para começar a utilizar uma terminologia acadêmica. Este processo é uma projeção ao uso insólito de uma linguagem científica. Examinemos as teorias clásicas de narração. Entram em cena os protagonistas Aristóteles e Gustav Freytag. ARISTÓTELES (384 a. C.) identifica as assim chamadas “partes qualificativas“ para um texto: • Ação (mythos), • Personagens (êthê), • Ideia / habilidade para conhecimento (dianoia), • Forma linguística (lexis), • Melodia (melodia) e • Encenação (opsis) A teoria narrativa de Gustav Freytag (FREYTAG 1863) apoia esta ideia atribuindo nomes aos elementos constitutivos de uma narração . Entre parêntesis mostro a transferência destes elemen-
tos para as partes de uma tese acadêmica. • Perspetiva narradora (autorial, pessoal ou voz passiva) • Exposição (motivação, pergunta da tese, ou apresentação da questão que a tese levanta) • Protagonistas (fontes/autores, explicados na parte teórica) • Ação (pesquisa, parte prática) • Clímax (resultado, interpretação) • Parte final com um fim aberto ou fechado (sinopse/previsão) 3.2 Transferência do CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO à composição de uma tese acadêmica em seis pontos. 1. Um conto precisa – igual a uma tese acadêmica – de uma exposição e situação em contexto específico. De que se trata? A exposição de um conto deve apresentar uma pergunta motivadora, tanto quanto uma tese. 2. Os protagonistas correspondem aos autores, que formam a base de uma tese acadêmica. Eles são introduzidos na parte teórica da tese e aparecem durante o transcurso dela para acompanhar e sustentar a ação, i.e., os resultados da pesquisa. 3. A descrição da ação se reflete na realização de uma experiência, i.e., a parte prática. 4. Para onde vai a ação, como termina o conto (parte dos resultados)? 5. Ela apresenta uma previsão, um tipo de moral (parte final/sinopse)? 6. A perspectiva narrativa também é um elemento importante da escrita acadêmica porque, em muitas materias científicas, é obrigatória a adoção de uma perspectiva narradora específica. Possibilidades são: uma perspectiva neutra/quase-onisciente, voz passiva, perspectiva pessoal com “eu“ etc. 3.3 Deduzo: é possível chegar do “fácil“ ao “difícil“! Os estudantes apercebem-se que agora a questão é somente definir a estrutura de uma tese e a linguagem científica adequada para
Ver citação KRUSE (2015). Tanto Aristóteles como Gustav Freytag se referem no gênero do drama. As teorías de ambos autores, porém, costumam-se aplicar a textos de prosa ou respetivamente a uma teoría básica de narração.
16 se poder escrevê-la. Observo que mais e mais estudantes aceitam esta transferência instantaneamente. Tenho observado também, desde o início de meu trabalho como docente, que os estudantes já possuem suficiente competência para escrever textos científicos. Por meio dos CONTOS COM PALAVRAS DE ESTÍMULO procuro dirimir principalmente as dúvidas e inseguranças pessoais usando este método lúdico. Os estudantes logo percebem quão infundadas são suas dúvidas e inseguranças. Seguindo com o programa do curso, olhamos exemplos de textos de cursos anteriores que empregam claramente a escrita científica mas, ao mesmo tempo, possuem caraterísticas narrativas que não afetam sua qualidade científica. Muitos estudantes procuram meios para decorar textos com formulações literárias ou, de certo modo, especiais. E todos eles querem alcançar um texto entusiasmado, tanto para eles como para o público previsto. Por meio dos exemplos mencionados, a transferência de textos com caraterísticas literárias a textos científicos é possível. Prosseguindo, consultamos textos escolhidos de literatura apropriada, direcionada à escrita acadêmica. Estes textos não somente abordam convenções da escrita acadêmica, como também os processos de planejamento de um texto. 4. O CENÁRIO PEDAGÓGICO: O DIÁLOGO “CONSPIRATIVO“ O próximo passo é o trabalho em grupos, seguido por apresentações dos estudantes; participo acrescentando algumas ideias minhas. Estes grupos, eu os chamo grupos de experts, porque cada grupo trabalha sobre seu tema específico e apresenta o resultado. A partir da visão neurobiológica, o texto que cada estudante produz é a única base para a criação de processos de aprendizagem pela associação a conteúdos já aprendidos anteriormente (ROTH 2006). Explico esta estratégia de aprendizagem para os estudantes. Todos os textos para o trabalho em grupos são escolhidos
de maneira a permitir que os estudantes os possam associar a outros textos e assim identificar analogias. Através de materiais de apresentação coloridos proponho um comportamento lúdico que quase sempre capacita os estudantes a resumir os textos e destacar os pontos mais importantes, sem que eu tenha que adicionar algo mais. Minha postura pedagógica pessoal se baseia na teoria de PAULO FREIRE (1971), um protagonista cuja influência foi fundamental em minha formação. Elementos essenciais de sua teoria: princípio dialógico, conscientização vs. conceito bancário, e a eliminação da dicotomia profesor/estudante. Estas ideias eu as encontro também em GIRGENSOHN (2007) e CZAPLA/BÖTTCHER (2003). Estes protagonistas adotam conscientemente o papel de professores moderadores que não se distinguem hierarquicamente no comportamento comunicacional com os estudantes. A estruturação do curso é o único elemento que distingue o profesor dos estudantes. Comporto-me como um ser dialógico: explico a eles o que procuro fazer e entro em diálogo com eles. Ao me referir a FREIRE (1971), parto da convicção a priori que não sei mais do que eles ou que não sou mais “ciente“ que eles. Na verdade, são eles que participam diariamente da vida acadêmica, não eu. A única coisa que posso fazer então é convidar os estudantes ao diálogo; ao fazê-lo, lhes apresento a realidade acadêmica para que eles nela se situem conscientemente. “Na educação conscientizadora as pessoas desenvolvem a força de compreender criticamente a maneira de como elas existem no mundo (…) e assim criam uma verdadeira forma de pensar e atuar.“ (FREIRE 1971) É agora que acrescento minha própria realidade profissional neste diálogo. Isto é interessante para os estudantes porque eles procuram uma qualificação orientadora, uma instrução que seja capaz de orientá-los inclusive no âmbito profissional. Argumentando com o conceito
São textos das fontes bibliográficas:FRANK et al. (2003), KÜHTZ (2016), KRUSE (2015) e ORTNER (2003).
17 de FREIRE (1971) da “educação conscientizadora“, mostro aos estudantes como compreendo a pesquisa acadêmica: um discurso que persiste na busca de novas ideias. Elas enriquecem a pesquisa mundial para solucionar problemas concretos técnicos, filosóficos etc. A criação de novas ideias científicas se inspira em modos de trabalho criativos e interdisciplinares que incluem conhecimentos neurobiológicos e promovem analogias. Todos os protagonistas neste artigo apoiam esta afirmação (KRUSE 2015, ORTNER 2003, GRIESHAMMER 2016, GIRGENSOHN 2007, HÜTHER 2006 e 2009, ROTH 2006, FREIRE 1971, ARISTÓTELES ~ 384 a. C.). Neste contexto os estudantes confirmam que entendem minha ideia de uma escrita acadêmica narrativa. Esta estratégia cria novas abordagens, faz os textos e a produção de textos muito mais emocionante e estimula o pensamento científico. O principio dialógico contém também um intercâmbio interativo com cada participante. Para fortalecer este diálogo e motivar os estudantes a apresentar opiniões próprias, peço-lhes que escrevam seus nomes num papel e os ponham na mesa para que eu os possa interpelar diretamente, mantendo o diálogo vivo. Durante os anos passados ganhei boas respostas com esta prática: estudantes que costumam falar pouco em público gostam de poder contribuir ao diálogo desta maneira. Gerald Hüther chama este modo de aprendizagem “aprender com emoção“ (HÜTHER 1999). Os estudantes que opinam abertamente recebem uma resposta direta dos outros – os conteúdos se manifestam no cérebro por meio da emoção e podem ser aprendidos (HÜTHER 1999, ROTH 2006). Há outra coisa que sustenta o processo de aprendizagem: um ambiente educacional de confiança. Eu procuro criá-lo por meio do principio dialógico. 6. Conclusão Este artigo destina-se não somente ao público científico, mas a todos os estudantes que
participam dos meus cursos. Procurei descrever os conteúdos de modo tanto acadêmico como literário. Os meus modelos são maioritariamente do âmbito científico e apresentam uma escrita científica. Mesmo assim tenho constatado que mais e mais vozes se manifestam favoráveis a teses tão emocionantes como contos, contendo elementos de outros gêneros de textos. O elemento que eu mesma escolhi para este artigo é o do detetive. Na Europa o assim chamado “processo Bologna“ (sistema de estudar em módulos) institucionalizado nas universidades, promove uma sociedade que insiste na eficiência, explora os recursos humanos e desencoraja a aprendizagem lúdica e autônoma. O professor catedrático de filosofia Rüdiger Safranski (FUB, Freie Universität Berlin) mencionou este desenvolvimento em palestra recente sobre a situação atual da educação . Ele recordou o ideal da educação humanista de Wilhelm von Humboldt e Friedrich Schiller; ambos postularam que o ser humano é somente humano quando pode brincar (SCHILLER, 1989). O interesse recente pelos ideais educacionais humanistas demonstra que o modelo do professor que procura armazenar conteúdos no estudante vem sendo desvalorizado. Um bom professor, segundo minha observação, é alguém que desiste da expectativa de armazenar conteúdos e assim possibilita um âmbito educacional autônomo e dialógico, onde docentes e estudantes podem colaborar na pesquisa de novos conhecimentos. O impulso lúdico expresso pelo Prof. Safranski, que faz o ser humano se sentir realizado, manifesta-se num exercício tal como o CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO. Uma aprendizagem lúdica instiga o estudante a uma aprendizagem autônoma. Por meio do CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO procuro motivar o estudante a continuar escrevendo — além do curso. Finalmente, desejo mencionar o conceito de analogia, eis que o CONTO COM PALAVRAS DE ESTÍMULO é uma tal analogia. Analogias pro-
A participação de estudantes de todas as matérias, tanto ciências naturais como humanas, abre um contexto interdisciplinar que instiga novas ideias para a pesquisa.
18
movem ideias inovadoras que, de outra forma, não se teriam achado. Um exemplo célebre no KIT é o Prof. Dr. Claus Matthek. Ele observou durante anos o crescimento de árvores e deduziu regras que aplicou à otimização da construção de automóveis – e ganhou o prêmio federal para o meio ambiente 2003. Um exemplo mais recente vem da Inglaterra: a astrofísica Dra. Cheryl Hurkett, do Centre for Interdisciplinary Science, em Leicester, incentiva seus estudantes a verificar as leis do mundo de Harry Potter com ferramentas científicas (revista GEO 09/2016). O método, diz Hurkett, tem por objetivo familiarizar os estudantes com as ferramentas da física, e, mais ainda, em áreas jamais pesquisadas por quem quer que seja. Hurkett alega que o mundo de Harry Potter é muito mais emocionante para novatos na materia do que a física abstrata.
São textos das fontes bibliográficas:FRANK et al. (2003), KÜHTZ (2016), KRUSE (2015) e ORTNER (2003).
19
PROTAGONISTAS (REFERÊNCIAS) ARISTÓTELES (~384 v. Chr.): Poética. http://digbib. org/Aristoteles_384vChr/De_Poetik BÖTTCHER, Ingrid, CZAPLA, Cornelia (2003): Flexibilizando repertórios – Métodos criativos para uma escrita criativa. Em: PERRIN, Daniel, BÖTTCHER, Ingrid et al. (2003): Escritura – Desde estratégias de escrita intuitivas a estratégias profissionais. Westdeutscher Verlag, 2a edição. DICCIONÁRIO ETIMOLÓGICO DO ALEMÃO (2004), Deutscher Taschenbuchverlag. FREIRE, Paulo (1971): Pedagogia do oprimido. https:// vivelatinoamerica.files.wordpress.com/2014/03/pedagogia_do_oprimido_paulo_freire.pdf Último acesso: 4/6/2017 FREYTAG, Gustav (1863): A técnica do drama. Reimpressão: editora Reclam (1993). GIRGENSOHN, Katrin (2007): Novos caminhos para a qualificação chave Escritura – grupos autônomos na universidade. Editora VS Research, Wiesbaden. GRIESHAMMER, Ella et al. (2016): Modelo futuro para a tutoria de escritura. Editora Schneider Hohengehren. GEO (Ausgabe 09/2016): Quanto é real no Harry Potter?, Rubrica: Pesquisa peculiar, p. 122.
KRUSE, Otto (2015): Ler e escrever. Editora UVK, serie UTB, 2a edição. HÜTHER, Gerald (2006): O significado de experiência social para o desenvolvimento estrutural do cérebro humano. Em: Herrmann, Ulrich (Hrsg.): Neurodidática. Editora Beltz Weinheim. HÜTHER, Gerald (2009): Sem um sentimento não dá! Palestra original em DVD por meio de Auditorium Netzwerk, Jokers. ORTNER, Hans-Peter (2003): Escrever e saber. Motivar idéias e acumular atenção. Em: PERRIN, Daniel, BÖTTCHER, Ingrid et al. (2003): . Escritura – Desde estratégias de escrita intuitivas a estratégias profissionais. Editora Westdeutscher Verlag, 2a edição. ROTH, Gerhard (2006): Por que ensinar e aprender são tão difíceis? Em: Herrmann, Ulrich (Hrsg.): Neurodidática. Editora Beltz Weinheim. SCHILLER, Friedrich (1989): Sobre a educação estética do homem. Editora Freies Geistesleben, 2a edição. SAFRANSKI, Rüdiger: Educação e vida. Palestra introdutora durante o congresso educacional „Integração como tarefa da edução!?“ no Karlsruhe Institute of Technology 2016 (primeiro dia: 22.09.2016) WISNIEWSKI, Benedikt (2013): Psicologia na formação de futuros profesores. editora Klinkhardt, série UTB
20
HOMAGEM
VIOLETA PARRA: O CENTENÁRIO DE UMA POETA POPULAR Franklin Valverde
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo es como descifrar signos sin ser sabio competente, volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo como un niño frente a Dios, eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
21
A autora desses versos é Violeta Parra, que se estivesse viva, teria completado 100 anos no último dia 04 de outubro. Nascida em San Carlos, Ñube, no Sul do Chile, Violeta era filha de um professor primário e de uma costureira. Teve nove irmãos, entre eles o cantor e compositor Roberto Parra (19211995) e o poeta Nicanor Parra, hoje com 103 anos e um dos mais destacados poetas da atualidade. Dois de seus quatro filhos, Isabel e Ángel, foram os responsáveis por levarem o seu legado artístico, pois também se dedicaram à música. IMPORTÂNCIA MUSICA O trabalho realizado por Violeta Parra como compositora e folclorista foi um dos mais importantes para a preservação do patrimônio cultural chileno. Durante anos percorreu, de norte e a sul, todo o Chile gravando inúmeras manifestações artísticas genuinamente populares que, hoje, estariam desparecidas se não fosse seu labor pioneiro coletando poemas e canções, com seus ritmos populares. Muito do que hoje se conhece internacionalmente da música chilena deve-se ao trabalho de divulgação que Violeta fez pela Europa e América Latina, entre os anos cinquenta e sessenta. Começou com a sua participação no Festival da Juventude na Polônia, em 1954, passando pela antiga União Soviética, indo depois para a França, onde morou por dois anos. A partir dessa estadia francesa a música popular do Chile passou a ser conhecida, apreciada e gravada fora das suas origens. Esse seu labor de pesquisadora e de divulgadora
teve uma importância muito grande para a música de raiz popular do seu país, assim como da América Latina, pois impulsionou outros artistas a fazerem o mesmo. Violeta Parra desbravou caminhos para o que depois veio a ser a chamada Nueva Canción Chilena, movimento musical e cultural que surgiu no final dos anos 60, chegando ao auge no período de governo socialista do presidente Salvador Allende (1970-1973), depois perseguido pela posterior ditadura miliar de Augusto Pinochet. Nesse período destacam-se os grupos musicais Quilapayún, Inti Illimani e Illapu; os artistas Victor Jara, Patricio Manns e Rolando Alarcón, além de Ángel e Izabel Parra, filhos de Violeta. A Nueva Canción Chilena teve como características principais o resgate da música folclórica e a valorização de temáticas sociais. ARTISTA PLÁSTICA O talento artístico de Violeta Para não se limitou à área musical, destacando-se também das artes plásticas com telas, cerâmicas, tapeçarias e bordados em arpillera, uma espécie de tecido rústico feito de juta ou cânhamo. Suas pinturas retratavam, principalmente, cenas da cultura chilena, resgatavam a vida rural do seu país e seus trabalhadores, seguindo um estilo que se aproximava do naif. Como artista plástica realizou, em 1964, uma exposição no Museu do Louvre, período em que novamente morou na França, sendo a primeira artista sul-americana a fazer uma individual no museu. Terminada essa sua segunda estadia na França voltou para o Chile, em junho de 1965, com o objetivo de concretizar uma proposta ousada: criar uma es-
Jornalista, poeta e professor universitário, autor de Tributo a Guernica e Banco de versos.
22
pécie de centro cultural, La Carpa de los Parra. Tratava-se de um local que funcionava como se fosse um circo no qual havia espetáculos musicais, servindo também como ateliê de arte para exposição e venda de suas telas e arpilleras. Além disso, também funcionava como uma espécie de bar e restaurante, no qual eram servidos pratos da culinária popular do Chile. Foi lá que ela passou seus últimos anos de vida. Depois do sucesso inicial, la carpa teve uma diminuição paulatina de público, pois o local era um pouco afastado do centro de Santiago, dificultando o acesso dos fãs. Violeta, nesse momento, também passava por um momento pessoal difícil com a sua recente separação do músico Gilbert Favre, seu último amor. A soma desses dois fatos fez com ela caísse em uma profunda depressão, pondo fim a vida com um tiro, aos 49 anos. FOI PARA O CÉU Depois de sua morte a história de Violeta Parra esteve durante algum tempo quase que esquecida ou não tão valorizada como sua obra e percurso mereceriam. O filme Violeta foi para o céu (Violeta se fue a los cielos, 2011), uma produção feita em conjunto com o Chile, Argentina e Brasil, dirigida por André Wood, o mesmo do premiado Machuca (2004), de uma certa forma resgatou a história de Violeta. Nele destaca-se a interpretação magistral da atriz Francisca Gavilán, que encarnou uma Violeta de uma forma visceral, demonstrando na tela toda a força de sua personalidade, tanto como artista assim como mulher. Há também uma versão ampliada do filme como série de TV, exibida no Chile, dividida em três capítulos: Raízes, Amores e Sonhos.
O filme foi baseado na obra homônima escrita pelo seu filho Ángel Parra, falecido em março de 2017, que junto com a sua irmã Izabel Parra foi um dos principais preservadores da obra de sua mãe, mantendo viva a sua história nestes últimos 50 anos. VIOLETA PRESENTE As canções de Violeta Parra sempre despertaram o interesse em muitos interpretes da música latino-americana, como foi o caso da argentina Mercedes Sosa, falecida em 2008, coincidentemente em um 4 de outubro, data do aniversário da compositora chilena. A bela voz de Mercedes imortalizou “Gracias a la Vida”, música que se transformou em uma ode a vida e a esperança de dias melhores para os povos latino-americanos, tema, objetivo e preocupação constante das duas artistas. Destaque para o disco Homenaje a Violeta Parra com suas principais músicas, além do poema “Defensa de Violeta”, escrito pelo poeta e irmão Nicanor Parra e declamado por Mercedes. A música de Violeta Parra também está presente no Brasil. Vários artistas brasileiros já gravaram suas músicas como Milton Nascimento (“Volver a los 17”), Elis Regina (“Gracias a la Vida”) e os grupos Taráncon e Raíces de América. Violeta Parra deixou um legado inestimável para a cultura do Chile e da América Latina. O seu trabalho foi e continua sendo fundamental para a construção de uma identidade latino-americana comprometida com o seu povo e suas raízes indígenas e mestiças. As letras das músicas selecionadas foram coletadas da obra Violeta del Pueblo, com prólogo, seleção e notas de Javier Martínez Reverte, editada pela espanhola Visor (Madri, 1983).
23
Gracias a la Vida Volver a los 17 Gracia a la vida que me ha dado tanto. Me dio dos luceros que, cuando los abro, perfecto distingo, lo negro del blanco, y en el cielo su fondo estrellado y en las multitudes el hombre que yo amo. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado el oido que, en todo su ancho, graba noche y días grillos y canarios; martillos, turbinas, ladridos, chubascos, y la voz tan tierna de mi bien amado. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado el sonido del abecedario, con él las palabras que pienso y declaro: madre, amigo, hermano, y luz alumbrando, la ruta del alma del que estoy amando. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la marcha de mis pies cansados; con ellos anduve ciudades y charcos, playas y desiertos, montañas y llanos, y la casa tuya, tu calle y tu pátio. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me dio el corazón, que agita su marco cuando miro el fruto, del cerebro humano; cuando miro el bueno tan lejos del malo, cuando miro el fondo de tus ojos claros. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la risa y me ha dado el llanto. Así yo distingo dicha de quebranto, los dos materiales, que forman mi canto, y el canto de ustedes que es el mismo canto y el canto de todos que es mi propio canto. Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo es como descifrar signos sin ser sabio competente, volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo como un niño frente a Dios, eso es lo que siento yo en este instante fecundo. Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza, el arco de las alianzas ha penetrado en mi nido, con todo su colorido se ha paseado por mis venas y hasta la dura cadena con que nos ata el destino es como um diamante fino que alumbra mi alma serena. Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber, ni el mas claro proceder ni el más ancho pensamiento todo lo cambia el momento cual mago condescendiente, nos aleja dulcemente de rencores y violencias sólo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes. El amor es torbellino de pureza original, hasta el feroz animal susurra su dulce trino,
24
detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros, el amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño y al malo solo el cariño lo vuelve puro y sincero. De par en par la ventana se abrió como por encanto, entro el amor con su manto como una tibia mañana, al son de su bella diana hizo brotar el jazmín, volando cual serafín al cielo le puso aretes y mis anos en diecisiete los convirtió el querubín.
mi vida, se sienten acongojados, mi vida, se sienten acongojados. Mi vida, porque los gobernadores, mi vida, los tienen tan separados. Mi vida, los pueblos americanos. Cuándo será ese cuando, señor fiscal, que la América sea sólo un pilar. Cuándo será ese cuando, señor fiscal.
Estribillo Se va enredando, enredando, como en el muro la hiedra, y va brotando, brotando como el musguito en la piedra. Ay sí sí sí aay sí sí sí Los pueblos americanos
Sólo un pilar, ay sí, y una bandera, que terminen los líos en las fronteras.
Mi vida, los pueblos americanos,
Al centro de la injusticia
Por un puñao de tierra no quiero guerras.
25
Chile limita al norte con el Perú y con el Cabo de Hornos limita al sur, se eleva en el oriente la cordillera y en el oeste luce la costanera, la costanera. Al medio están los valles con sus verdores donde se multiplican los pobladores, Cada familia tiene muchos chiquillos con su miseria viven en conventillos, en conventillos. Claro que algunos viven acomodados, pero eso con la sangre del degollado. Delante del escudo más arrogante la agricultura tiene su interrogante, su interrogante. La papa nos la venden naciones varias cuando del sur de Chile es originaria. Delante del emblema de tres colores la minería tiene muchos bemoles, muchos bemoles. El minero produce buenos dineros, pero para el bolsillo del extranjero; exuberante industria donde laboran por unos cuantos reales muchas senhoras, muchas senhoras, y así tienen que hacerlo porque al marido la paga no le alcanza pal mes corrido. Pa no sentir la aguja de este dolor en la noche estrelada dejo mi voz, dejo mi voz. Linda se ve la Patria, señor turista, pero no le han mostrado las callampitas. Mientras gastan millones en un momento, de hambre se muere gente que es un portento, que es un portento. Mucho dinero en parques municipales y la miseria es grande en los hospitales. Al medio de Alameda de las Delicias, Chile limita al centro de la injusticia, de la injusticia.
por el correo temprano, en esa carta me dicen que cayó preso mi hermano, y sin lástima, con grillos, por las calles lo arrastraron, sí. La carta dice el motivo de haber prendido a Roberto haber apoyado el paro que ya se había resuelto. Si acaso esto es un motivo presa también voy, sargento, sí. Yo que me encuentro tan lejos esperando una noticia, me viene decir la carta que en mi patria no hay justicia, los hambrientos piden pan, plomo les da la milicia, sí. De esta manera pomposa quieren conservar su asiento los de abanicos y de frac, sin tener merecimiento, van y vienen de la iglesia y olvidan los mandamientos, sí. Habráse visto insolência, barbárie y alevosía, de presentar el trabuco y matar a sangre fría a quien defensa no tiene con las dos manos vacías, sí La carta que he recibido me pide contestación, yo pido que se propale por toda la población, que el “león” es un sanguinario en toda la generación, sí.
La carta Me mandaron una carta
Por suerte tengo guitarra para llorar mí dolor,
26 también tengo nueve hermanos fuera del que se m’engrilló, los nueve son comunistas con el favor de mí Dios, sí. Rin del angelito Ya se va para los cielos ese querido angelito a rogar por sus abuelos por sus padres y hermanitos. Cuando se muere la carne el alma busca su sitio adentro de una amapola o dentro de un pajarito. La tierra lo está esperando con su corazón abierto por eso es que el angelito parece que está despierto. Cuando se muere la carne el alma busca su centro en el brillo de una rosa o de un pececito nuevo. En su cunita de tierra lo arrullará una campana mientras la lluvia le limpia su carita en la mañana. Cuando se muere la carne el alma busca su diana en el misterio del mundo que le ha abierto su ventana. Me gustan los estudiantes ¡Que vivan los estudiantes, jardín de las alegrías! Son aves que no se asustan de animal ni policía, y no le asustan las balas ni el ladrar de la jauría. Caramba y zamba la cosa, ¡que viva la astronomía!
¡Que vivan los estudiantes que rugen como los vientos cuando les meten al oído sotanas o regimientos! Pajarillos libertarios, igual que los elementos. Caramba y zamba la cosa ¡vivan los experimentos! Me gustan los estudiantes porque son la levadura del pan que saldrá del horno con toda su sabrosura, para la boca del pobre que come con amargura. Caramba y zamba la cosa ¡viva la literatura! Me gustan los estudiantes porque levantan el pecho cuando le dicen harina sabiéndose que es afrecho, y no hacen el sordomudo cuando se presenta el hecho. Caramba y zamba la cosa ¡el código del derecho! Me gustan los estudiantes que marchan sobre la ruina. Con las banderas en alto va toda la estudiantina: son químicos y doctores, cirujanos y dentistas. Caramba y zamba la cosa ¡vivan los especialistas! Me gustan los estudiantes que van al laboratorio, descubren lo que se esconde adentro del confesorio. Ya tienen un gran carrito que llegó hasta el Purgatorio. Caramba y zamba la cosa
27 ¡los libros explicatorios! Me gustan los estudiantes que con muy clara elocuencia a la bolsa negra sacra le bajó las indulgencias. Porque, ¿hasta cuándo nos dura, señores, la penitencia? Caramba y zamba la cosa ¡que viva toda la ciencia!
28
MEMÓRIA
DAS COISAS DEIXADAS PRA TRÁS Tobias Vilhena de Moraes
Foi após a morte de minha avó materna que, pela primeira vez, tive consciência da importância dos objetos pessoais que usamos em vida. Não digo daqueles bens materiais que carregam em si certo ar de preciosidade, raridade, mas daqueles que nos transportam para uma época e momento importante da pessoa que partiu. Todas as famílias herdam em algum momento estes bens, que durante a existência são carregados por vários cômodos em suas casas. Mudam de quarto, de estante, de gaveta. De qualquer forma, estão ali guardados sempre que precisamos deles para lembrar (ou para não esquecer?) nossa ligação com um mundo que não existe mais. É assim com a imagem de nossa senhora de minha avó, ou com seu porta-retratos com as imagens de três netos. Um mini oratório composto por uma vela, erguido em uma estante, onde ela sempre parava diante para rezar. Tudo mantido com zelo na mesma posição, após o seu falecimento. Nada indica que seja um fenômeno isolado. Na longa estrada da história humana, objetos como os descritos acima têm sido deixados para trás. Esquecidos por descuido, ou propositalmente, largados por séculos em lugares desconhecidos. Pura obra do acaso que nos obriga a dar três pulinhos para São Longuinho, já que se não fossem estes atos (mesmo que falhos), o que seriam dos arqueólogos e museus sem nada para escavar e expor nos dias de hoje?
29
Sorte (?) a nossa que povos, dos mais longínquos confins da terra, se preocuparam com a preservação de sua história antes de seu desaparecimento. Entre os Egípcios e os Maias, pirâmides foram construídas de forma a guardarem tudo o que fosse necessário para o retorno futuro, quando o residente retornasse à vida. Contradição absoluta de nossa existência: perpetuar a vida depois da morte do corpo. Mas qual interesse nós temos quando desejamos que um objeto resista aos anos após a nossa partida? Um motivo pode ser o mesmo que nos tornou acumuladores de relíquias de santos, de reis, de nobres, com o status mediando a posse. Ou talvez, seja a importância da preservação da memória familiar que os antepassados queriam que fosse mantida, por uma linhagem de gerações e séculos. Que ninguém esqueça os que partiram, talvez eles pensassem mesmo sem expressar isso. De qualquer forma, em respeito ao objeto antigo, costumamos dar a ele uma posição privilegiada em nossos lares, expondo-os em lugar de destaque no ambiente doméstico. Um amigo adorava deixar à vista as ferramentas que seu pai usava para fazer xilogravura. Tudo ali atraía os olhares dos visitantes. Tornam-se repositórios do passado, verdadeiras relíquias que reúnem a saudade materializada daqueles que partiram. Um pequeno museu doméstico. “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, diz uma mensagem na entrada de um cemitério, sempre a nos lembrar da nossa efemeridade. Neste sentido, acredito que ligação íntima com os objetos pode ser recriada no tempo presente por cada um de nós. Herdamos trecos, cacarecos, troços que possuem um significado hoje e permitem nos relacionarmos com o mundo passado. Dispostos e cheios de significados intrafamiliares, eles escapam de qualquer explicação racional para as pessoas não conscientes do seu uso. Nós podemos contar a sua história, fornecendo informações com detalhes sobre seu uso por um parente querido. Sem este lastro de histórico familiar, qual interesse em querer guardar algo que não lhe diz sentido?
Por este caminho ladrilhado por lembranças e esquecimentos, dúvidas nos afligem ao percebermos que não podemos parar o tempo. Contra ele corremos, buscando deter o maior número de significados possível. Eles dão forma ao nosso desejo de sobreviver pela eternidade. Neste exato instante me pergunto: Seria o objeto que me trás à memória as vozes do parente morto, ou é a memória que fala pelo objeto? Difícil argumentar, sabendo que o objeto não tem voz, cabendo ao interlocutor humano lhe conceder este dom através da sua própria voz. Só assim podemos contar sua história,
Fig. 1 Capacete Revolução de 1932. Foto: Tobias Vilhena
nossa história, a minha e a tua. E todos nós temos pressa porque sabemos como o tempo é voraz. Pode tardar, pode ser lento às vezes, mas é contínuo. Devagar e sempre, ele caminha. Depois de nos engolir, só com muito esforço o tempo cospe alguns fragmentos. Como parte deste processo, desejamos dar nova vida aos objetos que nos cercam. Desde o momento em que a minha mãe usa o colar de minha avó em uma festa, até quando peguei o capacete de combate da Revolução de 1932 de meu avô para uma peça de teatro, tudo simboliza o objeto que respira, que pode mudar e ressignificar conforme a nossa vontade. Indígenas do Amazonas
30
viram suas ferramentas no sentido oposto ao que era usado pelos antepassados com o intuito de não os desrespeitarem (fig. 1). Do subjetivo para o real o território da materialidade nos trás sentido e permite compreendermos o mundo de forma muito mais acurada. Apesar deste aspecto positivo alguns especialistas argumentam que somos muito dependentes desta interconexão ideia-matéria. Mas até que ponto nos seria possível escapar de nossas relações materiais com o uso da nossa mente? Mais dúvidas que respostas... Apenas alguns avanços em um mundo de pura teoria especulativa futurista. Os poucos experimentos realizados por neurocientistas permitem que deficientes físicos possam se relacionar virtualmente com membros mecânicos a partir de implantes instalados em seus crânios. Inspirado nestes estudos, por exemplo, Miguel Nicolelis, da Duke University já prevê viagens espaciais em que o corpo humano permanece no planeta Terra, enquanto a mente do viajante espacial segue para localidades distantes, impossíveis de suportar a vida. A interação se daria a partir de robôs tal como no filme Matrix (1999). Qualquer explicação retirada do campo científico parece insuficiente e muito distante para entendermos questões profundas da completa simbiose que existe entre nosso mundo mental e o material. Projetos que nos aproximam dos objetos pelas suas características físico-químicas deixam de lado características da cultura e sociabilidade tão importantes no seio familiar. Eu pelo menos reconheço que tenho dificuldades para transformar em ciência algo que só pode ser explicado dentro das minhas relações com meus pais e irmãos. Esta dificuldade tende a aumentar quando inserimos outros parentes mais distantes. Imagine com nações e sociedades ! E, ao final de contas, qual realidade íntima aproxima os objetos que herdamos de nossos entes queridos? Aqui colocamos os pés em um terreno movediço para os cientistas sociais e de difícil aferição: o afeto,
aquele pequeno espaço de demonstração de carinho por algo que faz parte de nossa existência. Uma malha foucaultiana de afetos parece interconectar as redes de contatos entre as pessoas e os objetos. Um mecanismo humano que pode durar por gerações, ou ser interrompido a qualquer momento por algum movimento contrário de discordância. O afeto é um terreno não limitado por argumentos empiricamente embasados. De um lado, sua observação se faz através da observação das demonstrações de carinho, delicadeza e amor ao próximo. Por outro, é contrabalançado por movimentos de conflito que pode, por exemplo, levar a sua perda em uma discussão. Ambos sedimentam a solidez-frágil de nossas relações humanas.
Fig. 2 Pequeno oratório. Foto: Tobias Vilhena
31
Tecido com esmero através dos anos, este novelo de relações afeto-objeto demonstra a capacidade do artífice em construir sua história. Sua textura é tão frágil quanto o açúcar do algodão doce, bastando um leve sopro para que tudo desapareça. Hoje sou arqueólogo, especialista em recuperar o passado dos objetos e a memória dos que se foram. Minha matéria-prima é a morte e como legista da História, uma das lições mais importantes da minha vida profissional não veio a partir dos livros e das pesquisas de laboratório. A lição aconteceu quando descobri que a pior dor da perda de um ente querido não vem no minuto seguinte à sua partida. Para mim a pior dor chegou muitos anos depois, quando morava na antiga casa de minha avó herdada por minha mãe, em um dia que eu precisava decidir algo importante. O luto, este período que psicólogos tentam quantificar em meses, já havia findado (figura 2). Neste momento percebi que estava ali, sem ela, e teria que resolver por conta própria. Não me aguentei. Subi as escadas, dei duas chaveadas para abrir o quarto e entrei. Lá estava como sempre, a estante, o porta-retratos, a vela e a imagem. Acendi o fósforo e rezei. Mestre em Arqueologia e doutor em História, aluno da turma de Ensaio do Curso Livre de Preparação do Escritor / Casa das Rosas
32
CRIAÇÃO
DA JANELA, O HORIZONTE Fernando Alves Medeiros
33
O que acontece quando você anda? De trem? — É a emenda que surge natural em minha mente. E isso não ocorre só porque sou funcionário do Metrô há anos e usuário do modal há décadas. Mas sim porque andar de trem, creio, é uma radicalização do ato de caminhar. No trem, você não gasta energia em desviar de obstáculos, atravessar a rua, pular da poça, proteger-se da chuva. No trem, recostado à janela, na fluidez quase que monótona do trajeto, você fatalmente é sequestrado pelos devaneios e sacações da própria mente. Repete-se o olhar de Gregor Samsa na janela, o tempo turvo deixando-o melancólico. Isso penso numa viagem longa, em planos abertos, como nas linhas Vermelha, Lilás, e todas da CPTM. Sem música, sem livro e nada de celular à mão, de preferência. Andar sem gadgets, já que eles ordenam tanto a vida interior e nos isolam das coisas que nos estimulam lá fora. Andar é uma atividade de dois “níveis”, se é que podemos enquadrá-la assim. O primeiro, receptivo, é quando nos deixamos levar pelas imagens, o recortado dos prédios, as cores, a fumaça das fábricas, o movimento do sol e o formato das nuvens. O segundo “nível”, reflexivo, é quando olhamos para dentro de nós, quando nos fechamos para nossas preocupações e lembranças, medos e projetos. É quando um momento morto do passado volta à vida e resolve ficar junto da gente.
No primeiro, voyeur e flâneur são mais que uma rima pobre — são características de uma postura ativa ainda que passiva: nada absolutamente deve escapar das nossas retinas infatigáveis. No segundo, o olhar é secundário. Dependendo da intensidade da vida interior, do torvelinho de impressões que se instalaram nesse vagão íntimo, as cores e luzes que pipocam no mundo são irrelevantes. Mas acredito que esses aspectos — “níveis” — não são estanques. Eles se contaminam, dançam numa aleatória alternância de recessivos e dominantes. Como cantou certa vez Roberto Carlos, em seu desabrido momento Anti-Kerouac: Da janela o horizonte A liberdade de uma estrada eu posso ver O meu pensamento voa livre em sonhos Pra longe de onde estou O preponderante nunca reina só; o ausente permanece atuante nos bastidores. Andar — e isso digo sobre suas múltiplas formas — andar, talvez, seja um mergulho nas águas dos sentidos e uma ponte que une duas realidades. Nossos olhos são janelas onde termina o indivíduo e começa o mundo. E tanto do lado de lá quanto de cá, tudo é ruidoso, nada é estático. E várias são as vozes que clamam, ao mesmo tempo, por nossa atenção
Técnico eletroeletrônico, com extensão universitária em criação literária na PUC-SP e aluno da turma de Ensaio do Curso Livre de Preparação do Escritor / Casa das Rosas.
34
FICÇÃO
“O CERTO É IR EMBORA. FICAR É A MENTIRA” Cristina Ventura
35
Na rua de terra a mulher de longos cabelos, descalça, veste um rosto gasto. Curvada, olha o chão através das palmas e enxerga mais que os pés na terra. A palma rasgada, o pulso torcido. Não tem forças para unir as mãos em prece. Quem consegue rezar quando a alma pesa? Saiu de casa apenas com uma bolsa cheia de cadernos em branco, não antes de molhar a planta amarela infestada de pulgões no canto da sala, não antes de beijar a cabeça do filho - raspada por causa dos piolhos. E não antes de encarar os olhos esfumaçados do marido no retrato ao lado da porta de entrada, no dia em que embarcou para a Síria para fotografar a guerra há exatos mil quatrocentos e sessenta e cinco dias. A mulher de longos cabelos deu à luz a guerra de se tornar mãe. O homem de olhos esfumaçados viajou para a guerra para não ser pai. O menino dorme na casa mofada e sonha com sombras sem sol. Uma das sombras ganha luz: a mulher de longos cabelos emaranhados em uma espiral de raízes caminha descalça pela rua de terra atrás da casa a caminho da estrada. O menino vê a mulher, curvada, olhando para o chão, carregando um poço em cada uma das mãos.
Formada em Letras, pós-graduada em Marketing e aluna da turma de Prosa do Curso Livre de Preparação do Escritor / Casa das Rosas.
36