Casa das Rosas - Revista Grafias - Ed.7 Dez/18

Page 1

Ano 6 - nยบ7 - 12/2018


POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Correa | Diretor Administrativo Financeiro Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA REVISTA GRAFIAS - revista do Centro de Apoio ao Escritor Marcelo Tápia | diretor Reynaldo Damazio | editor Revista Grafias- Ano VI – nº 7 – Dezembro 2018 São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas ISSN 2358-9035 1.Literatura Brasileira. 2.Literatura 3. Escrita criativa - Prosa Brasileira.




sumário 8

EDIÇÃO ARTESANAL / Espectro Editorial: uma pequena intervenção Ronald Polito

20

POESIA / A primeira vez que ouvi Diane de Prima foi pela garganta de um homem Cristina Judar

26

ENSAIO / EM ALGUM LUGAR – PARECE QUE NO BRASIL – EXISTE UM MAIAKÓVSKI FELIZ DESDE 1922 Paulo Ferraz

34

LETRA E MÚSICA / “O tempo é um pássaro de natureza vaga” Márcia Cristina Fráguas

36

OFICINA DE CRIAÇÃO / Deslocamentos Tarso de Melo e Reynaldo Damazio

38

DEPOIMENTO / Lygia bem de perto Lucas Bandos



editorial O caráter artesanal da escrita literária também se expressa em múltiplas formas de edição e circulação de livros, abrindo caminhos entre leitores que muitas vezes estão fora ou além do circuito convencional, ou de mercado. As vozes da poesia, do mesmo modo, conquistam seu público por canais de troca e convívio, como recitais, saraus, zines, publicações coletivas, torneios de slam, entre outras ações. Uma das funções do Centro de Apoio ao Escritor (CAE) do museu Casa das Rosas é justamente fomentar o conhecimento e a prática de formas alternativas de publicação e circulação de livros, como no projeto editorial do poeta Ronald Polito, que hoje inspira muitos editores e autores independentes. A poesia da norte-americana Diane di Prima, integrante da geração Beat, e a recepção da obra de Maiakovski no Brasil também são temas desta edição, trazendo informações preciosas sobre a escrita e sua relação com a crítica literária, em textos da jornalista Cristina Judar e do poeta Paulo Ferraz. Completam a sétima edição da revista Grafias trabalhos de alunos que participaram de atividades de formação do museu, como a oficina Deslocamentos, realizada por Tarso de Melo e Reynaldo Damazio, em que o caminhar pela cidade foi o ponto de partida para a escrita de poemas, resultando inclusive num poema coletivo, publicado aqui, e o artigo sobre a canção e a poesia de Paulinho da Viola, de Márcia Cristina Fráguas, que foi aluna do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE), do CAE. A revista apresenta também uma homenagem sensível à escritora Lygia Fagundes Telles, escrita pelo jovem mestrando em literatura Lucas Bandos. Com esse breve painel das múltiplas práticas da escrita e seus desdobramentos editoriais, de tradução e de crítica, seguimos com a proposta de estimular a criação literária em todas as suas vertentes.


8

EDIÇÃO ARTESANAL

Espectro Editorial: UMA PEQUENA INTERVENÇÃO Ronald Polito

Eu gostaria de agradecer ao Reynaldo Damazio e à Casa das Rosas o convite para falar sobre os trabalhos que venho desenvolvendo. Em conversa com Reynaldo, ele propôs alguns temas e eu escolhi falar sobre a Espectro Editorial, minha editora independente que está em atividade desde 2004. Meu interesse por publicações não é de agora. Já aos 14 anos eu produzi com alguns amigos um pequeno jornal. Depois vieram outros trabalhos, mas poucos, porque meu maior interesse era fazer edições artesanais, mas não costuradas, eu não sabia fazer isso. Mas não queria trabalhar com folhas soltas e não consegui no Brasil um grampeador com um braço longo que me permitisse grampeálas. Até que eu fui morar por um período em Tóquio e acaso me fez encontrar um grampeador alemão em 2004 e que eu trouxe para o Brasil. Ele permite grampear folhas de A2 a A6. Só atualmente conseguimos achar uma ferramenta dessas por aqui. Mas nos últimos meses que passei em Tóquio, ainda sem o grampeador, fiz três edições com folhas soltas em envelopes. Eu tinha muito material traduzido nesse momento e os papéis japoneses era encantadores, par dizer o mínimo. Como eu estava em um lugar muito diferente do Brasil, decidi chamar o trabalho de EDIÇÕES DO OUTЯO MUN-

DO. É curioso notar que em uma dessas edições estão algumas das diretivas da Espectro Editorial: o envelope em três cores diferentes (dourado, prata e bege) em que publiquei 10 autores catalães traduzidos por mim e revistos por Josep Domènech Ponsatí. Usei papéis de 10 cores diferentes, algumas singulares, para as impressões a laser e carimbei a apresentação com o carimbo com meu nome em japonês (imagem 1). De volta ao Brasil no início abril de 2004, eu distribuí esses três trabalhos entre os amigos e o retorno foi positivo. Alguns amigos insistiram que eu deveria continuar editando e eu tinha mesmo isso em mente, tanto mais depois de ter adquirido o grampeador alemão. Mas entendia que não poderia usar o mesmo nome, eu não estava mais no outro mundo, mas neste. Pensando um nome para minha editora fantasma, porque sem registro, sem ISBN etc., foi imediato o salto para chegar à palavra “espectro”. A ideia de um espectro editorial permite diversas variações. Mas pelo menos duas decisões limitavam o que pretendia: publicar, principalmente, meus próprios trabalhos e de pessoas próximas; privilegiar a poesia, particularmente a poesia traduzida, mas não apenas.


9

1.

CARNER, Josep et al. Teoria do anzol poético etc. Tradução do catalão e notas de Ronald Polito; revisão de Josep Domènech Ponsatí. Fuchu-shi: Edições do Outro Mundo, 2003/2004. 41 p. (100 exemplares)


10 Até o momento, editei 53 plaquetes. Mais de 10 delas são com trabalhos meus, diversos são traduções do catalão e do castelhano feitas por Josep Domènech Ponsatí e eu, quase sempre de poesia. Publiquei 14 plaquetes de poetas brasileiros, outras 29 plaquetes são de poesia traduzida. Ainda não consegui um grande espectro de línguas traduzidas, mas já publiquei, sempre de forma bilíngue, poesia em castelhano, inglês, alemão, francês, italiano e catalão. A maioria dessas traduções é de autores que ainda não tinham sido divulgados no Brasil. Das 10 plaquetes restantes que não são de poesia, publiquei duas de contos, duas apenas com imagens, uma plaquete com uma peça teatral (com métrica e rima, o que a aproxima da poesia), uma com aforismos, outras com pequenos ensaios etc. Sempre com essa ideia de arco, de gama, optei por diversidade de gerações e de orientações poéticas. Publiquei desde jovens na faixa dos 30 anos até senhores na faixa dos 80. Só pelas idades dos participantes é possível imaginar as diferenças entre seus poemas e textos. E tal como no envelope japonês, venho tentando usar e abusar de todas as cores: nas capas, nos títulos, nas folhas de rosto. Aqui há limitações diversas: as papelarias brasileiras oferecem, em geral, uma quantidade pequena de papéis coloridos e com alguma qualidade, o oposto do que pude experimentar no Japão. As impressoras têm limites evidentes, mesmo a laser, para operar com cores sobre papéis mais escuros. Fiquei limitado, portanto, a papéis claros na maioria das vezes, exceto quando me utilizei de técnicas alternativas de gravação ou quando colei etiquetas na capa que continham o título e o nome do autor (imagem 2). Os tamanhos das plaquetes é que não foram muito diversificados. A quase totalidade é em tamanho A3. Fiz uma em A4, duas em A2 e uma em formato quadrado, além de um envelope com folhas A3 soltas. Os miolos sempre foram impressos em, no mínimo, papel 90g para evitar vazamento. Em algumas ocasiões, pude fazer guardas de papel de seda ou vegetal e imprimir etiquetas em couchê. Não há muita diversidade de projeto gráfico. Creio que sou um editor convencional ou que

privilegia formas “clássicas”. A maioria das capas é sóbria, mas há algumas bem livres e “experimentais”. Claro que levei em conta alguns modelos, certas preferências. Gosto muito, por exemplo, do trabalho de Cleber Teixeira, da editora Noa Noa, e tive sempre em mente a limpeza e a economia de seus procedimentos. Mas penso também em edições antigas, como as da Gallimard (autor, título, duas cores, capa creme, mas não adotei o fio); ou em formatos de outros ambientes, como os boletins de centros de pesquisa acadêmicos, que podem estar sugeridos em algumas capas. Empreguei quase exclusivamente a mesma tipologia: Garamond, letra tradicional em publicações de poesia. Só nas capas é que há maior variação de tipos em corpos variados. Para a impressão dos materiais, usei principalmente impressoras a jato de tinta e a laser, mas pude eventualmente gravar capas em silk-screen, offset e tipos móveis, tentando ampliar o rol de materiais e técnicas. As plaquetes são quase todas grampeadas (com grampos prateados e cobreados, não há outras cores de grampos no Brasil, como no Japão), mas oito foram costuradas (com alguns padrões de costura). A partir da plaquete número 11, passei a carimbar com meu nome em japonês a página do colofão. Trouxe comigo cinco carimbos (imagem 3). Usei cores diferentes para carimbar, relacionadas com capas ou cores dos títulos: vermelho “japonês” (predominante), mas também azul, verde, preto, roxo). Um fato que talvez surpreenda é que nunca usei programas profissionais de editoração, tudo foi feito em um simples Word, exceto uma ou outra capa ou plaquete que foi montada por Luciana Inhan ou Denis Araki. Devo muito a Luciana. Ela fez diversos trabalhos para a Espectro, montagens, ilustrações para capas, concepção de capas, a primeira logomarca a partir de minhas orientações... Sim, eu já adotei três logomarcas. O que não é propriamente original, a Cosac Nayfi, por exemplo, fez isso. Acho interessante variar também a identificação, isso torna mais virtual o trabalho. A terceira logomarca que concebi foi desenhada eletronicamente por Tarcísio de Souza Lima.


11

2.

As 30 primeiras plaquetes publicadas pela Espectro Editorial.

3.

Carimbos com o nome do editor grafado em katakana.


12 Pude contar, também, com a colaboração de outros ilustradores. Por exemplo, Ana Letícia, Marcelo AB, Fabiana Éboli, Ananda Sette e Welliot, alguns deles tendo feito trabalhos especialmente para as edições que planejei. Mas como meu contato com artistas plásticos é bem limitado, e premido por diversas circunstâncias, eu próprio tive de me transformar em um ilustrador amador porque as plaquetes pediam algum elemento. Observando o conjunto das plaquetes, foram muitas as ilustrações de capa e de miolo, e muitas colagens. E duas plaquete envolveram mais colaboradores porque foram coeditas: uma com Fabio Weintraub, outra com Denis Araki, o que é outro tipo de concepção da proposta editorial. Ao longo de todos esses anos, pude também discutir ideias com alguns amigos, principalmente Josep Domènech e Júlio Castañon Guimarães, que sugeriram autores, materiais e procedimentos de edição. De qualquer modo, a maioria das edições foi decisão minha, por vezes solicitando ou aprovando materiais que me enviaram: as traduções de Ruy Proença, as traduções de Jardel Dias Cavalcanti, os poemas de Mário Alex Rosa e de Júlio Abreu, como exemplos. Algumas observações são ainda necessárias. A Espectro Editorial é uma editora errática, sem endereço definido: pertence ao triângulo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte, com parada em Juiz de Fora, mas pode ir para outros lugares. Sua periodicidade, como a dos fantasmas, é igualmente errática, surge e some em vários momentos. Teve anos em que não fiz nenhuma plaquete, em outros, editei diversas. Em termos do montante produzido, as 53 plaquetes somam cerca de 4 mil exemplares feitos à mão e quase tudo foi financiado por mim. Praticamente a totalidade dos exemplares foi dada de presente para amigos e escritores, nunca tive a intenção de comercializar o trabalho. Acho importante também registrar que algumas pessoas se sentiram incentivadas pelo projeto que venho desenvolvendo e passaram a produzir suas próprias plaquetes fundando editoras alternativas: a Galileu Edições, de Jardel Dias Cavalcanti, a Petits Furts (Pequenos Furtos, em catalão), de Josep Domènech

Ponsatí, a Pão ou Pães, de Ruy Proença, para cita alguns. Não vou apresentar todas as edições que fiz. Privilegiarei algumas como exemplo da orientação geral do projeto. Em primeiro lugar, como já disse, a Espectro Editorial foi pensada para a divulgação de meus próprios trabalhos, quase todos traduções de Josep Domènech Ponsatí e minhas. Como exemplos, gostaria de citar a plaquete Dúzia de frade, com poemas de Vicente Molina Foix (imagem 4), inédito no Brasil até 2005. Lições, desejos, com poemas de Jaime Gil de Biedma, é também um trabalho que tem interesse por divulgar pela primeira vez no Brasil poemas do autor (imagem 5). Publiquei uma plaquete com poemas de Josep Domènech Ponsatí traduzidos por mim. Ela é em formato A6 e foi costurada à mão (imagem 6). Publiquei duas plaquetes com poemas do poeta catalão Carles Camps Mundó, até então inédito no Brasil. Elas foram revistas por Josep Domènech Ponsatí. Uma delas se intitula Grande silêncio (imagem 7). Foram muitas as plaquetes que fiz com Josep Domènech Ponsatí, das quais citei alguns exemplos. Outras traduções eu fiz sozinho. Particularmente duas me parecem curiosas, com trabalhos do escritor mexicano Renato Leduc, inédito até então no Brasil. A primeira, Epístola a uma dama que nunca em sua vida conheceu elefantes e outros poemas (imagem 8), com uma capa bem experimental; a segunda com uma peça de teatro intitulada Prometeu (imagem 9), metrificada e rimada, e com um posfácio de minha autoria. Também publiquei duas plaquetes com poemas de Adolfo Montejo Navas e traduzidos por mim: Esse animal de água, com imagem na capa de César Brandão (imagem 10), e Sem título, mas com ímã, com desenhos de Fabio Inecco (imagem 11). A capa e as ilustrações do miolo foram gravadas em silk-screen. Foi a trigésima edição da Espectro Editorial. Por isso, compus um colofão comemorativo em forma de taça e tendo o carimbo de minha assinatura como uma cereja (imagem 12).


13

4.

5. MOLINA FOIX, Vicente. Dúzia de frade. Tradução do castelhano de Josep Domènech Ponsatí; revisão de Ronald Polito; ilustração de capa de Luciana Inhan. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2005. 32 p. (60 exemplares)

7.

BIEDMA, Jaime Gil de. Lições, desejos. Tradução do castelhano de Josep Domènech Ponsatí e Ronald Polito. Belo Horizonte: Espectro Editorial, 2005. 36 p. (50 exemplares)

8. MUNDÓ, Carles Camps. Grande silêncio. Tradução do catalão de Ronald Polito; revisão de Josep Domènech Ponsatí. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2005. 24 p. (60 exemplares)

LEDUC, Renato. Epístola a uma dama que nunca em sua vida conheceu elefantes e outros poemas. Tradução do castelhano de Ronald Polito; desenho de Welliot. Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2006. 28 p. (75 exemplares)


14

9.

10. LEDUC, Renato. Prometeu. Tradução e posfácio de Ronald Polito. São Paulo/Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2008. 28 p. (96 exemplares)

11.

MONTEJO NAVAS, Adolfo. Esse animal de água. Desenho de César Brandão, tradução do castelhano de Ronald Polito. Juiz de Fora; Belo Horizonte: Espectro Editorial, 2005. 24 p. (100 exemplares)

12. MONTEJO NAVAS, Adolfo. Sem título, mas com ímã. Tradução do castelhano de Ronald Polito; desenhos de Fábio Innecco. São Paulo/Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2008. 40 p. (100 exemplares)

Colofão de Sem título, mas com ímã.


15

13.

14. PALMA, Bruno. Palavras. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2016. 24 p. (65 exemplares)

15.

GUIMARÃES, Júlio Castañon (Org.). Muriliana. Diagramação de Luciana Inhan. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2015. 88 p. (20 exemplares)

16. GUIMARÃES, Júlio Castañon. Assajos, figures. Traducció de Josep Domenech Ponsatí. Rio de Janeiro: Espectro Editorial, 2006. 24 p. (60 exemplares)

COSTA, Horácio. Marat. Traducció de Josep Domenech Ponsatí. São Paulo: Espectro Editorial, 2007. 20 p. (70 exemplares)


16 Outros autores publicados mais de uma vez pela Espectro Editorial foram Bruno Palma e Júlio Castañon Guimarães, com quatro trabalhos de cada um. De Bruno Palma publiquei suas traduções de Saint-John Perse (Amizade do príncipe e Para festejar uma infância) e traduções de François Cheng (Cantos toscanos — seleção), poeta chinês radicado na França e que era inédito no Brasil. Mas considero que o trabalho mais importante de Bruno Palma que publiquei são seus próprios poemas, a plaquete Palavras (imagem 13). De Júlio Castañon Guimarães publiquei traduções de Umberto Saba, Joachim Du Bellay, François Malherbe, John Keats e Charles Baudelaire. Além dessas traduções, o volume Muriliana, com a rubrica de Murilo Mendes na capa, organizado por Júlio Castañon Guimarães. É um trabalho mais extenso, com 88 páginas a cores, diagramado por Luciana Inhan e impresso em offset, com tiragem de apenas 20 exemplares. Ele reúne 86 imagens de capas de publicações estrangeiras com trabalhos de Murilo Mendes: catálogos de exposições de artes plásticas, periódicos de literatura e livros do próprio poeta (imagem 14). Outro trabalho de Júlio Castañon Guimarães foi a tradução de seu livro Ensaios, figuras para o catalão, feita por Josep Domènech Ponsatí: Assajos, figures. É uma das edições que mais me agradam em termos de projeto gráfico, foi costurada e colei cantoneiras de seda vermelha nos exemplares. É também uma edição meio inusitada. Como é muito pequeno no exterior o interesse por nossa poesia, pensei em editá-la e exportá-la, e assim foi feito. Quase toda a tiragem foi enviada para a Catalunha e lá distribuída por Josep Domènech Ponsatí (imagem 15). A mesma coisa fiz com o belo poema Marat, de Horácio Costa, em tradução para o catalão de Josep Domènech Ponsatí. O diferencial dessa edição é a ilustração interna em couchê e colada: a foto de uma banheira de metal que Denis Araki trabalhou e transformou em 30 imagens de cores e texturas diferentes. São raríssimos, então, exemplares iguais. Quase toda a edição também foi exportada para ser

distribuída na Catalunha (imagem 16). Também publiquei alguns trabalhos de Mário Alex Rosa: um com suas traduções de Alejandra Pizarnik, outro com poemas do próprio Mário Alex Rosa intitulado Fresta. O terceiro trabalho com sua participação é a plaquete Outros bichos, com traduções feitas por ele e por mim de poemas infanto-juvenis de Fidel Sclavo. A ilustração da capa é minha, um desenho com nanquim e aquarela, e a edição de 100 exemplares tem capas de 10 cores diferentes (imagem 17). Já foi dito, tive de improvisar ilustrações para diversas plaquetes. Como exemplos, a plaquete com poemas de Adriana Versiani dos Anjos, intitulada Três pedras, com uma escultura em grafite 0,7mm na capa de minha autoria (imagem 18). Outra plaquete que ilustrei com uma colagem minha foi Segunda escuridão, com poemas inéditos de Donizete Galvão, e que foi distribuída gratuitamente na Casa das Rosas por ocasião da homenagem ao poeta ocorrida em agosto de 2017. A capa foi gravada com tipos móveis (imagem 19). Quero ainda citar uma edição que produzi com Fabio Weintraub, a tradução do texto O poeta e a cidade, de Wystan Hugh Auden, feita por Carlos Felipe Moisés, recentemente falecido. A imagem da capa, que foi gravada em offset, é uma foto de Fabio Weintraub (imagem 20). Incluo a imagem do arquivo de capa e contracapa para a visualização da foto inteira, que é muito especial (imagem 21). Quero ainda citar a tradução de Dahut, de Paol Keineg, poeta inédito no Brasil. Ela foi feita por Ruy Proença com a colaboração de Marcela Vieira. A capa foi gravada em offset (imagem 22) e no miolo há algumas colagens com ilustrações. Como disse antes, fiz duas edições apenas com imagens: a Muriliana, já citada, e Grafites, com objetos ou esculturas feitas com grafites de lapiseira e que desenvolvi nos últimos anos (imagem 23). A edição é em formato quadrado, foi costurada, e o posfácio é assinado por Jardel Dias Cavalcanti, de quem também publiquei plaquetes com traduções e poemas de sua autoria. Concluo com a edição de número 50. Para


17 comemorar os 50o número publicado, publiquei um texto de Murilo Mendes inédito em livro, O amador de música, divulgado no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, em agosto de 1944, e fiz exatamente 50 exemplares que foram distribuídos (imagem 24). Apresentei as capas de 19 edições da Espectro Editorial, ressaltando orientações editoriais, opções técnicas, autores, ilustradores e colaboradores. O catálogo tem outros trabalhos que podem interessar, mas essa 19 publicações dão uma ideia geral do que foi feito ao longo dos últimos 13 anos. E já tenho alguns trabalhos selecionados a serem publicados em breve. Ronald Polito é poeta, tradutor e editor. Autor dos livros De passagem, Terminal e O livro dos haicais, entre outros.

18.

17. SCLAVO, Fidel. Esses bichos. Tradução de Mário Alex Rosa e Ronald Polito. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2016. 28 p. (100 exemplares)

ANJOS, Adriana Versiani dos. Três pedras. Escultura da capa de Ronald Polito. Juiz de Fora, Espectro Editorial, 2014. 24 p. (80 exemplares)


18

19.

20. GALVÃO, Donizete. Segunda escuridão. Colagem da capa de Ronald Polito. Juiz de Fora: Espetro Editorial, 2017. 16 p. (98 exemplares)

21. Capa e contracapa de O poeta e a cidade, fotografia de Fabio weintraub.

AUDEN, Wystan Hugh. O poeta e a cidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés; fotografia da capa de Fabio Weintraub. São Paulo; Rio de Janeiro: Fabio Weintraub/Espectro Editorial, 2009. 28 p. (60 exemplares)


19

23.

22. KEINEG, Paol. Dahut. Tradução de Ruy Proença; com a colaboração de Marcela Vieira. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2015. 36 p. (60 exemplares)

24. MENDES, Murilo. O amador de música. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2017. 16 p. (50 exemplares)

POLITO, Ronald. Grafites. Posfácio de Jardel Dias Cavalcanti. Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2017. 44 p. (33 exemplares)


20

POESIA

A PRIMEIRA VEZ QUE OUVI DIANE DI PRIMA FOI PELA GARGANTA DE UM HOMEM Cristina Judar

Na Biblioteca Alceu de Amoroso Lima, em São Paulo, minha alma ricocheteava pelos quatro cantos do auditório local aos quase gritos de “Liberte (...), Liberte (...), Liberte (...)!”, (carta 49, do volume Revolutionary Letters) emitidos sequencialmente pela frequência vibratória que subia das cordas vocais do poeta Claudio Willer. Ele declamava a carta-poema-revelação em tradução instantânea, numa experiência que me pôs em contato primeiro e direto com o pensamento de Diane di Prima, uma das grandes poetas da geração Beat – geração que ainda é prioritariamente (re)conhecida pelos livros e feitos de

seus escritores, a começar por Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs. Naquele momento, decidi que ela seria uma de minhas madrinhas. E, nesses anos todos, foi mais ou menos assim: havia um olhar pairando sobre mim, dois faróis suspensos a me espiar enquanto eu escrevia (e, arrisco dizer, em alguns outros momentos específicos, que aqui não cabe elucidar), como que sustentados por trechos memoráveis de suas cartas bombásticas:


21

“Every teacher lying thru sad teeth a political prisoner Every Indian on reservation a political prisoner Every black man a political prisoner Every faggot hiding in bar a political prisoner Every junkie shooting up in John a political prisoner Every woman a political prisoner Every woman a political prisoner You are political prisoner locked in tense body You are political prisoner locked in stiff mind You are political prisoner locked to your parents You are political prisoner locked to your past Free yourself Free yourself” (Trecho da Revolutionary Letter #49) Todo professor mentindo através de dentes tristes um prisioneiro político Todo índio em reserva um prisioneiro político Todo homem negro um prisioneiro político Cada bicha escondida no bar um prisioneiro político Todo viciado atirando em John um prisioneiro político Toda mulher um prisioneiro político Toda mulher um prisioneiro político Você é prisioneiro político trancado no corpo tenso Você é prisioneiro político trancado na mente dura Você é prisioneiro político trancado para seus pais Você é prisioneiro político trancado para o seu passado Liberte-se Liberte-se (tradução livre da autora)


22

De beat em beat Fenômeno contracultural nascido nos Estados Unidos no início dos anos 50, quando a aquisição de bens de consumo e uma existência previsível & estável (casamento heterossexual para toda a vida + filhos + casa, carro e eletrodomésticos) eram a meta de vida para a grande maioria dos cidadãos do país, o movimento Beat veio para negar a obsessão ao materialismo e os valores que o sustentavam e, de fato, mudou a história da literatura e da cultura norte-americanas de maneira significativa. Seus ecos ainda são potentes e altamente transformadores, com reflexos em diversas linguagens artísticas, como a música e as artes visuais, embora a literatura tenha representado o seu mais forte registro e meio de expressão. Para os inventores da coisa toda, poetas e prosadores da transgressão, músicos e viajantes, visionários e sacerdotes independentes, vida e arte eram absolutamente indissociáveis. Um movimento que representasse a revolução de costumes e ideias não teria como ser genuíno caso não fosse plenamente vivido; o que representava a negação dos padrões de comportamento vigentes. Da sexualidade sem barreiras à espiritualidade errante, das novas composições familiares à vida itinerante, passando pela experimentação de drogas aliada à escrita livre de regras e classificações: praticadas nas estradas, em campos de plantação, nos encontros para leituras, nos subsolos de jazz e fumaça, em São Francisco ou em Nova York. Se essa forma de vida e expressão expôs os homens do movimento a todo tipo de intolerância e julgamentos, é fácil deduzir que, com as mulheres Beats, as dificuldades foram muito maiores. A começar pela maior delas: a invisibilidade.

Quem foram as mulheres Beats? Muita gente ainda não sabe da existência delas. Quando se fala em Beat Generation, mentes e ouvidos já ficam preparados para reconhecer e reafirmar os nomes de seus parceiros, amigos e companheiros, daqueles que – ao contrário do que o próprio movimento Beat propunha como “ideal”, é importante lembrar – ganharam toda a atenção do público e da mídia (muitas vezes, ao noticiar de forma sensacionalista seus feitos chocantes para o grande público), o respeito e a notoriedade como os criadores, os inventivos, os rebeldes, os revolucionários. Só que elas existiram. Foram várias e de importância determinante. A começar por Helen Adam e Madeline Gleason, co-fundadoras do San Francisco Poetry Festival ou pela Irmã Mary Norbert Korte, que largou o convento e passou a viver como poeta; bem como as escritoras sobre as quais muito ainda precisa ser pesquisado e revelado, tais como Denise Levertov, Joyce Johnson, Josephine Miles, Mary Fabilli, Joanne Kyger, Elise Cowen, Jane Bowles, Barbara Guest, Hettie Jones, Joanna McClure, Janine Pommy Vega, Ruth Weiss, Aya Tarlow, Brenda Frazer, Lenore Kandel, Anne Waldman, Jan Kerouac, além da própria Diane di Prima, sobre a qual escreverei a seguir . A lista seria ainda maior se considerássemos todas as mulheres que, de certa forma, tiveram conexão com o movimento Beat, as que faziam uso de outras linguagens artísticas e as afins.


23

Quando poesia é sacerdócio (e vice-versa) “Eu acredito que o poeta é a última pessoa que ainda fala a verdade quando ninguém mais ousa fazer isso. Eu acredito que o poeta é a primeira pessoa a começar a moldar e a visualizar novas formas e a nova consciência quando ninguém mais começou a sentir isso; eu acredito que essas são duas das funções humanas mais essenciais”, Diane di Prima. Nascida no Brooklyn, Nova York, em 1934, Diane di Prima cresceu com estímulos suficientes para aquilo que mais gostava: escrever, ler e buscar conhecimento. Ex-estudante de Física, ciência que estudou por cerca de dois anos, em sua juventude trabalhou em algumas livrarias e, no início dos anos 50, pouco antes dos Beats, já estava bem próxima dos “novos boêmios”, grupo de amigos que passaram, juntos, por experiências de diferentes naturezas (vários desses episódios foram relatados em Memórias de uma Beatnik – ver abaixo). Em 1953, trocava correspondências com o poeta Ezra Pound, além de travar contato com os donos de outras mentes e palavras poderosas, entre eles Lawrence Ferlinghetti a Allen Ginsberg. Paralelamente, seu aprendizado de ordem espiritual, algo constante em toda a sua trajetória, começou nesse período. Com o professor James Waring, di Prima passou a se dedicar aos estudos do Zen o que, futuramente, constituiu a base para a prática do Budismo em toda a sua vida. Seu contato com os Beats se deu em Nova York, em 1957, assim que ela conheceu Allen Ginsberg e os comparsas Jack Kerouac, Peter Orlovsky e Gregory Corso. Este encontro histórico, envolvendo

corpos e mentes, é um dos trechos mais célebres de Memórias de uma Beatnik, autobiografia classificada como obscena, até pornográfica, pela forma franca com que as experiências sexuais vividas por di Prima e seus amigos foram descritas em determinados trechos do livro. Publicações & ativismo revolucionário O ano de 1958 também foi marcado pelo lançamento de seu primeiro livro de poesia, This Kind of Bird Flies Backward. Quanto à prosa, a primeira publicação viria três anos depois, com Dinners and Nightmares. Di Prima trabalhava como modelo vivo para vários artistas ao mesmo tempo em que, com os amigos Hettie e LeRoi Jones, deu origem ao jornal literário Yugen. Ao lado de LeRoi Jones, di Prima criou The Floating Bear, revista que revelou o trabalho de vários poetas Beats. Segundo di Prima, o assédio policial era constante devido à natureza de sua poesia, assim como a dos poetas que ajudava a divulgar. Em 1961, ela e LeRoi Jones foram presos pelo FBI devido a uma acusação de obscenidade referente ao conteúdo publicado na nona edição da The Floating Bear. A partir desse período, passou a ser ainda mais atuante. Foi co-fundadora do The New York Poets Theatre, assim como da editora Poets Press. Na segunda metade dos anos 60, viveu em uma comunidade experimental, organizada pelo profeta do LSD, Timothy Leary; cruzou os Estados Unidos de carro, fazendo leituras poéticas em bares, salões de dança, universidades e galerias de arte. Em 1968, se envolveu com a política, distribuiu comida aos menos favorecidos e participou de comícios. Em 1971 lançou o livro Revolutionary Letters, que, em suas cartas-poemas, traduz o forte engajamento político dessa época, relacionado ao grupo de ativistas radicais “The Diggers” e à utopia anarquista da qual di Prima foi propagadora.


24

Poética da espiritualidade Ao longo da década de 70, di Prima voltou-se mais para o lado espiritual, intensificando os estudos e a prática do Zen e, após anos de dedicação, sentiu-se pronta para ensinar. Passou a oferecer workshops de escrita, visualizações e sonhos na cidade de São Francisco. Ao lado de Allen Ginsberg e Anne Waldman, ajudou a fundar, em 1974, a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, instituição situada no Colorado. Em 1978, escreveu seu épico poema Loba. Composto por uma série de textos visionários sobre diferentes arquétipos e manifestações do poder feminino, di Prima afirma tê-lo escrito após a aparição de uma loba em um sonho, que a ela revelou a verdadeira faceta da sabedoria ancestral e selvagem do Grande Ser-Mulher. Em 1980, foi co-fundadora do Programa de Mestrado em Poética do New College of California, onde, por sete anos, deu aulas sobre ocultismo e tradições herméticas na poesia. Enquanto se dedicava ao Zen e ao Budismo, Di Prima foi professora de cura e magia prática em outra instituição que ajudou a fundar, o

San Francisco Institute of Magical and Healing Arts, no qual lecionou até 1992. Nas décadas seguintes, continuou a fortalecer sua posição como uma das personalidades mais inventivas da América, dentro e fora do movimento Beat, tanto pela consistência de sua arte poética quanto pela atuação como editora de publicações, ativista, feminista e fundadora de núcleos de pesquisa e estudos que até hoje são centros de referência para gente de todo o mundo. Diane di Prima lançou, em 2001, seu mais recente trabalho autobiográfico, Recollections of My Life as a Woman: The New York Years, no qual explora as três primeiras décadas de sua vida. Atualmente ela vive na cidade de São Francisco (onde foi eleita Poeta Laureada em 2009). Em todos esses anos, foram publicados mais de 40 livros de sua autoria, além de uma infinidade de poemas – a prova viva e certeira de uma existência memorável e prolífica, que por nós precisa ser lembrada e propagada à sua maneira: via palavra, devoção, muita ação e livre exercício do pensamento.


(Livro autobiográfico de Diane di Prima)

25

Cristina Judar é escritora e jornalista, autora das HQs “Lina” (Editora Estação Liberdade) “Vermelho, Vivo” (Devir), do livFontes:

ro de contos “Roteiros para uma Vida Curta” (Finalista e Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014) e do

Women of The Beat Generation, the writers, artists

romance “Oito do Sete” (contemplado pelo ProAC de Prosa)

and muses at the heart of a revolution, Brenda Knight

- ambos publicados pela editora Reformatório. É coautora

(Conari Press)

do livro-arte “Luminescências” e criadora do “Questions For

Revolutionary Letters, Diane di Prima (Last Gasp of

a Live Writing”, projeto de prosa poética desenvolvido na

San Francisco)

Queen Mary University of London. É uma das editoras da

Memórias de uma Beatnik, Diane di Prima (Editora Veneta)

revista de arte e cultura LGBT “Reversa Magazine”, além de

Poetry Foundation (www.poetryfoundation.org)

integrante do conselho editorial da revista de literatura e

The Academy of American Poets (www.poets.org)

artes visuais “Theodora”.


26

ENSAIO

EM ALGUM LUGAR PARECE QUE NO BRASIL EXISTE UM MAIAKÓVSKI FELIZ DESDE 1922 Paulo Ferraz

Para muitos, pode parecer que a presença de Vladímir Maiakóvski no Brasil tem início em 1967, ano em que veio a público a antologia de seus poemas organizada e traduzida por Boris Schnaiderman, Haroldo e Augusto de Campos, pela editora Tempo Brasileiro, que revista e ampliada ao longo de cinqüenta anos voltou ao mercado livreiro em uma edição especial pela Perspectiva. É provável que muitos leitores tenham tido seu primeiro contato com a poesia russa por essas traduções, tamanha a importância e a influência de seu trabalho, que resultou em outras antologias dos mesmos tradutores e de outros que se formaram a partir dessa obra paradigmática. Porém, 1967 não é o início, mas sim o auge de um processo tanto de recepção crítica quanto de apuro técnico das traduções de sua poesia. Poucos se atentam que a presença de Maiakóvski entre nós coincide com a própria poesia modernista brasileira, ainda que de imediato ele não tenha despertado o interesse que lhe seria devido. Como quase todos os russos, a barreira da língua há de

ter sido um empecilho quase intransponível num primeiro momento. O que nos chegava era mediado por outras línguas e, como de costume, esse é um processo que muitas vezes implica em graves perdas... sobretudo no âmbito da poesia. De qualquer modo, sua recepção se deu num processo lento e por camadas, chegando primeiro a notícia do gesto revolucionário, no conjunto das demais vanguardas europeias, depois a mensagem política e só então a sua complexa poética formalista em sua totalidade. Podemos rastrear uma primeira citação a seu nome já na revista KLAXON que em seu número 4, de agosto de 1922, dá nota do recebimento da revista belga Lumière, publicada em junho/julho daquele mesmo ano, dedicada à poesia russa. Ali aparece registrado como Maïaskowski... um pequeno equívoco de transliteração que seria repetido por Mário de Andrade em pelo menos outras três ocasiões, o que poderia fazer supor que aquela revista fosse, naquele momento, sua única fonte (citações futuras feitas por Mário, trazem a grafia correta, provavelmente por incluir outras fontes, como em 1939 ao


27

Ainda há letras boas R CH CHTSCH Basta de verdades sem valor!

dizer numa coluna Neste sentido é que muita literatura social de hoje em dia me irrita. Não a determina uma verdadeira e dura fraternidade, tal como a que vibra nos melhores versos de um atual Aragon, do Maiakóvski da boa fase ou de Whitman). A primeira referência encontra-se na introdução do livro Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924, aproximando – e não poderia ser mesmo feito em relação a nenhum outro modernista brasileiro – o radicalismo cubo-futurista à obra de Oswald de Andrade, já que Mário vê nas invenções oswaldianas uma intenção francamente construtivista, que constituíam um livro que saiu mais alegre das

destruições, quase dadá. O trecho que escolhe de Maiakóvski diz respeito a uma sequência de letras que em português não fazem lá muito sentido: O impacto de tal construção há de ter sido grande no poeta da rua Lopes Chaves, pois quando reencontramos esses versos em A Escrava que não é Isaura percebemos que o radicalismo de Maiakóvski, chamado ali de “arqui-moderno”, era um passo que Mário não estava disposto a dar em “seu salto para o futuro”, como o poeta georgiano e seus companheiros de geração haviam dado, pois não estava seguro sobre a necessidade de se romper com o passado, dizendo explicitamente que

B D G Z, Remington. Pra todas as cartas da gente. Eco mecânico De sentimentos rápidos batidos. Pressa, muita pressa.

certas soluções eram exageradas. Ali Mário transcreve um bom fragmento do poema, seguramente uma tradução indireta sua, deixando de fora, inclusive, o título “Ordem ao exército das artes” (“Приказ по армии искусства”), de 1918, escolha que se por um lado preservava o caráter quase de manifesto em relação à estética de ruptura, por outro elidia a força da poética futurista. De todo modo, exagerado ou não, concordando ou não, essa passagem do poema pode ter inspi-

rado Mário. Vejamos, diz Maiakóvski: “Есть еще хорошие буквы: Эр, Ша, Ща”, o que basicamente seria Existem ainda letras boas: Erre, Shá, Shchá, sendo estas últimas palavras os nomes das letras do alfabeto cirílico Р, Ш e Щ, mas que na tradução ganhou um ar ainda mais ousado, já que se criou uma composição puramente tipográfica baseada na reprodução em letras latinas dos fonemas. O dado curioso é que em 1924, Mário empregaria um recurso semelhante, ao escrever


28

Mas sigamos, pois Mário ainda cita numa terceira ocasião Maiakóvski, dessa vez na “Carta aberta a Alberto de Oliveira” publicada na revista Estética de 1925, na qual, ao comentar uma crítica de Alceu Amoroso Lima, diz que este poderia ter incluído Maiakóvski entre as influências de Paulicéia Desvairada, não apenas Marinetti, Whitman, Verhaeren... como se trata de uma passagem um tanto quanto irônica, em tom de blague, fica aí a dúvida se antes de sua “Ode ao burguês”, por exemplo, ele já conhecia ou não o poeta bolchevique. Mário é aparentemente o único modernista atento ao futurismo russo, ou pelo menos aquele que publicamente falou dele, ainda que com suas ressalvas. Porém notícias sobre a poesia e a arte soviética, em especial sobre o futurismo, circulavam pela imprensa brasileira. Alguns exemplos são uma nota no jornal O Paiz de 11 de janeiro de 1924, intitulada “Literatura do proletariado”, assinada por Victor Serge, que faz referência aos futuristas e à revista LEF, afirmando que sua estética já estava um tanto desgastada, destacando-se porém o talento de Maiakóvski. O Correio da manhã de 27 de junho de 1924 traz um pequeno artigo não assinado cujo título é “A poesia soviética” e traça um rápido perfil de Tzvetáieva, Iessiênin e Maiakóvski, sendo a este atribuído os adjetivos “extravagante” e “ousado”, quanto aos seus versos dizia: não são harmoniosos nem graciosos. Mas possuem uma energia latente, traduzem uma nova e sã alegria de viver. O autor ainda chega a citar alguns versos do prólogo do Mistério-Bufo, sem mencionar que se trata de um texto dramático, para exemplificar a “antítese entre o espírito moderno e o antigo”. Já a revista Fon Fon em 11 de abril de 1925 publica um artigo de M. Capistrano sobre o poeta, hoje desconhecido, Alexandr Kussikov, que é apresentado ao público brasileiro como futurista, ten-

do Maiakóvski como seu mestre. Em seguida, uma pequena nota jornalística, igualmente fora do círculo modernista no Diário de Pernambuco de 17 de maio de 1925, faz uma breve resenha da revista francesa L’art vivant, cujo tema era a arte russa posterior à Revolução de 1917 e entre os artistas citados estava, obviamente, Maiakóvski. No mesmo ano de 1925 ainda aparece n’O Globo outra breve citação registrada pelo poeta Paulo Torres em uma entrevista com o crítico Serge Romoff que afirma ser Maiakóvski o maior poeta épico do século. Quanto a Paulo Torres é importante destacar que ele estivera na URSS nos últimos meses 1925 quando fez uma série de reportagens sobre as mudanças implementadas pelos soviéticos, destacando a participação dos artistas na propaganda do ideário socialista, citando o particular uso dos cartazes para esse fim, porém sem mencionar a contribuição dos futuristas nesse contexto. O modernismo teria sido o momento ideal para uma maior difusão de procedimentos e atitudes do futurismo russo – até porque o futurismo italiano já era conhecido desde cedo, no Pirralho, por exemplo, em diversos números foram publicadas paródias futuristas –, mas nossos modernistas em muitos aspectos mantiveram uma postura tímida em relação às propostas mais radicais das vanguardas europeias. Com exceção de Oswald, os demais mantinham uma relação complexa/contraditória com o legado acadêmico e com a própria sociedade aristocrática da qual muitos eram egressos. Não me ocorrem ataques concretos à burguesia ou aos seus valores coletivos, tão somente “bofetadas líricas no Trianon”... Por sinal, esse verso presente no Paulicéia ecoa devidamente suavizado o título do manifesto futurista russo “Bofetadas no Gosto Público” (“Пощёчина общественному вкусу”), de 1912. A semelhança entre as imagens talvez seja um in-


29

dício de que Mário tenha tido pelo menos notícia do manifesto russo e que eventualmente já o conhecia quando da redação do Pauliceia. Mesmo Manuel Bandeira, que no futuro ensaiaria poemas visuais, fez um severo e injusto julgamento, em sua Noções de história das literaturas, da importância do poeta georgiano, ao qual descreve como um poeta de estilo dinâmico, alógico, telegráfico, que se aparenta ao futurismo italiano, tendo refreado a sua sensibilidade profundamente lírica e individualista para fazer poesias de propaganda revolucionária. Quanto à sua personalidade diz esse estranho poeta, que condenou o suicídio de Iessiênin como uma afirmação de individualismo incompatível com o ideal coletivista, acabou também matando-se por desgosto amoroso. De toda forma, é instigante imaginar o quão conhecido era entre nós nesse momento – e o devia ser, a despeito da ausência de traduções, tanto que seu suicídio foi destaque de primeira página do jornal A Gazeta de 14 de agosto de 1930. Com a manchete “O suicídio do maior poeta da Rússia revolucionária” que trazia foto de seu corpo sendo velado, o texto não assinado informa ao leitor que Maiakóvski era autor do hino vermelho e de uma série imensa de cânticos de guerra e de trabalho que são cantados por todos na Rússia e cita, sem fonte para que possa ser cotejada, a cifra de 6000 composições poéticas de cunho político. Talvez já fosse efeito do mito se sobrepondo ao homem. Além desta matéria, outras notas curtas, mas todas destacando a sua fama e importância como poeta e dramaturgo, apareceram no Jornal do Brasil, no Diário Carioca, n’O Jornal, no Diário da Noite e no Correio Paulistano. No mesmo ano também circulou um artigo de Motta Filho no jornal ABC intitulado “A literatura russa” no qual a poesia de Maiakóvski

e sua vida merecem um grande destaque. No referido artigo o autor informa que conhece sua poesia a partir de traduções do italiano e do espanhol, destacando que sua morte foi em consequência de certo desencanto com a revolução. O contexto político da década de 1930 introduz algumas mudanças de atitude no meio literário, especialmente porque marca o ascensão de uma militância de intelectuais filiados ou próximos ao partido comunista. Essa militância é responsável pela introdução de uma literatura social, com livros que tanto abordavam as mazelas sociais das cidades e do campo, quanto atuavam como peças de propaganda revolucionária, incluindo-se algumas traduções de obras de autores soviéticos, como Cimento, de Fiodor Gladkov ou ligados à onda de literatura proletária pelo mundo, como Judeus sem dinheiro de Michael Gold. Entretanto o interesse político que se viu na prosa não se repetiu com a mesma intensidade na poesia, marcada no geral por outros interesses, com a rara exceção de um livro como Poemas proletário de Paulo Torres, de 1931. Ainda assim o nome de Maiakóvski continua presente. Merece destaque o artigo “O fracasso de Maiakóvski”, assinado por João Calazans, no jornal A Nação de 21 de maio de 1933, no qual procura situar a poesia de Maiakóvski dentro de um processo de decadência estética, merecendo destaque a seguinte passagem: se Pushkin encontrou popularidade pela compreensão mais viva dos motivos rebeldes que despertavam na sociedade, Maiakóvski tornava-se difícil, hostil às interpretações naturais, chegando a ser o mais incompreendido e o mais confuso artista do seu tempo. (...) Seus versos eram lidos às vezes com certa ironia cáustica. Foi um poeta de círculos limitados, de elites. Poeta para as minorias. Faltava às suas imagens um claro e simples, embora tivesse capacidade de torná-las sentidas (...)


30 Seu fracasso é uma expressão de decadência que acentua ainda mais a falência da ‘arte pela arte’. Em 1936 nos chegam os sinais de que a literatura soviética de fato já havia se cristalizado em torno das diretrizes do Iº Congresso da União dos Escritores Soviéticos, segundo José Jobim no Diário Carioca, de 26 de abril, a novela soviética, adquirindo um papel educador, papel de propaganda, já não admite experiências extravagantes (...). A medida que o país se proletarizava, também a literatura se tornava proletária e nesse sentido, a poesia do gigante da ‘As nuvens nas calças’ cultivava o ódio, estava impregnado do espírito de destruição. Seus sucessores cantam o amor, constroem. Maiakóvski interpretou seu tempo, o seu meio, mas teve a infelicidade de

viver numa época de transição. Outro raro exemplo que busca divulgar sua poética encontra-se no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, numa coluna assinada por “Ariel” de 11 de março de 1937. Trata-se de uma breve introdução biográfica, na qual o colunista destaca que a despeito de ter trabalhado como os temas da rua, da revolução e da filosofia materialista, sua poesia não deixara o âmbito russo, destacando porém em sua obra um curioso poema sobre a América, mais especificadamente sobre Chicago e seu desenvolvimento urbano. A nota terminava com um desculpem os leitores a má tradução...

Chicago. Cidade construída sobre um eixo de aço Cidade eletro-dínamo-mecânica Espiralada em um disco de aço Quinhentos arranha-céus, sóis de granito E as ruas: Caminhos elevados Altos de milhas, galopando para o céu Carregados de milhões de homens Tecidos com teares de aço Caminhos que voam....

Infelizmente não consegui descobrir quem estava por trás do pseudônimo “Ariel”, muito menos a origem da tradução. O fato é que não se trata de um poema completo, mas um pequeno fragmento do longo poema 150.000.000, publicado em 1921, bastante descontextualizado, mas que nos permite perceber algo do estilo hiperbólico de Maiakóvski. Na década de 1940, há uma espécie de boom soviético entre nós, como diversas publicações de caráter quase propagandístico por meio de jornais vinculados a partidos ou grupos de esquerda. No caso do Maiakóvski, a razão imediata para a maior circulação de seu nome, que então era visto até

na revista Cruzeiro, deve-se a um fato editorial em nosso país vizinho, a publicação de uma antologia organizada pela russo-argentina Lila Guerrero publicada em 1943 (seu verdadeiro nome era Elizaveta Innokentievna Yakovleva, vivera em Moscou entre 1926 e 1937 e teria conhecido Maiakóvski e Lilia Brik...) e que foi bastante lida pelos escritores nacionais, havendo diversas noticias de sua publicação e mesmo resenhas de maior densidade como de Sergio Millet, “Um poeta da revolução”, publicada no Diário de Notícias em 30 de dezembro de 1945. Por sinal, nesse ano circulou ainda pelo O Jornal um artigo biográfico de Elsa Triolet, não apenas


31 tradutora de Maiakóvski para o francês, mas irmã de Lilia Brik, dando assim ao público um perfil ainda mais completo do poeta. O clima político obviamente influenciava no juízo critico de um lado ou de outro, tomemos o exemplo de uma passagem de Helio Pelegrino que em 1945 dizia que Maiakóvski era admirado e amado por sua grandeza como poeta, mas não era aceito no tocante a sua doutrina e princípios. E não custa lembrar que Maiakóvski recebe um extemporâneo adeus de Carlos Drummond em A Rosa do povo. O nome de Maiakóvski será frequentemente citado por críticos como Otto Maria Carpeaux, Mario Da Silva Brito ou Mário Pedrosa, que em 1948 já atribuía seu suicídio ao conservadorismo burocrático se impôs sobre os formalistas. Mas essa incompreensão soviética não impediu que passasse a ser divulgado especialmente por publicações de esquerda, no papel icônico de porta-voz literário da revolução, como Imprensa Popular, Temário ou o jornal Fundamento, criado em 1948 por Monteiro Lobato, num viés nacionalista, no contexto da campanha do petróleo, e que na década de 1950 adotou um discurso explicitamente socialista. No ano de 1955, por exemplo, além de um artigo intitulado “futurismo, formalismo e realismo em Maiakóvski”, assinado por Alfredo Guilherme Galliano, no qual constam diversos fragmentos de seus poemas, foi publicado na íntegra em mais de 30 páginas o ensaio “Como Fazer Versos” do próprio Maiakóvski. Mas nessa primeira metade da década de 1950 o que merece mesmo destaque é o papel do poeta e tradutor Emílio Carrera Guerra que em 1951 dá início a um projeto de divulgação da obra e da vida de Maiakóvski por meio de artigos e palestras, que estão devidamente documentadas, e que em seguida converte-se num projeto de tradução. Foi pela impressa que Carreira Guerra começou a divulgar esse trabalho, “Versos Sobre o Passaporte Soviético” e um fragmento do poema “Lenin” podem ser encontrados na Imprensa Popular no ano de 1954. Dois anos depois é editada a primeira coletânea de seus poemas, um livro que ainda hoje está no mercado em edições variadas. Tem o mérito de ampliar

o acesso aos poemas de Maiakóvski, obviamente, tanto imagens e quanto discurso ficam preservados em grande parte, mas perde do ponto de vista formal, pois foi realizada com base nas traduções para o espanhol e para o francês como ele mesmo informa, esclarecendo, porém, que cotejou quando possível com o original russo. É uma pena que dois anos depois Carrera Guerra morreria e assim não pode dar sequência em seu trabalho, nem revê-lo. Em 1956 um acontecimento editorial irá criar as condições para que houvesse uma mudança na apreensão do Maiakóvski entre os intelectuais brasileiros, indo além de sua história privada ou de sua militância. Falo da publicação do Suplemento Literário do Estado de São Paulo, que dividia com o suplemento do Jornal do Brasil o lugar de mais importante veículo de debate cultural entre nós. Foi nas páginas do Suplemento que Boris Schnaiderman deu início a uma mais completa abordagem e divulgação da literatura e da poesia russa entre nós. Sabemos que Boris já havia traduzido alguns livros, alguns com o pseudônimo de Boris Solômonov, mas no Suplemento ele assume um papel protagonista quanto à difusão não só da literatura, mas das artes plásticas, do teatro e do cinema russo e soviético. Só assim, com uma visão ampla da intelectualidade soviética, podia-se compreender a poética de Maiakóvski. É pelos artigos do Boris que o leitor tinha notícias da republicação das suas obras completas em 1961 em 13 volumes, quando diversos inéditos foram revelados, de uma edição em inglês ou outra em espanhol, não se recusando inclusive a fazer uma leitura crítica da antologia da Carrera Guerra, reeditada em 1963, apontando sua importância, mas revelando seus pontos frágeis, alguns frutos mesmo da impossibilidade documental, já que a partir da morte de Stalin e da autocrítica de Khrushchiov vieram à luz informações e dados que nem na URSS se tinha acesso. Seria leviano dizer que Boris apresentou Maiakóvski aos poetas concretos, como vimos Maiakóvski era um poeta bastante conhecido desde 1922 e lido em espanhol pelo menos desde 1943 e em francês desde pelo menos 1952. Certamente


32

seus caminhos eram convergentes no tocante à incorporação não só das vanguardas russas, mas também de sua produção crítica e teórica a respeito da arte e da linguagem. O trabalho em conjunto parecia ser mais que natural. As citações dos Campos a Maiakóvski em seus textos críticos têm início por volta de 1957, mais ou menos à mesma época que Boris inicia sua colaboração no Estado de São Paulo. Haroldo, por exemplo, nesse momento ainda faz referência à tradução francesa de Elsa Troilet. Já em 1961, Haroldo – poucos meses após iniciar as aulas de russo – já publicava sua primeira tradução, o poema “A Serguei Iessiênin”, na Revista do Livro, e em 1962 nas páginas do Suplemento era publicada a “Carta para Tatiana Iakovleva”, em parceria com Boris, que vinha acompanhado de um artigo “Maiakóvski e o construtivismo”. Aí estava a chave de leitura que nos faltava. De toda forma, ainda se passariam cinco anos até a primeira edição da antologia, até lá os poetas concretos ainda aprimorariam e ampliariam seu projeto tradutório, já que além das traduções que saíam regularmente na imprensa, foram publicadas as antologias de Pound e Cummings, por exemplo, nos primeiros anos da década. Esse encontro dos poetas concretos com Maiakóvski deu a largada para uma nova fase do movimento, o conhecido “salto conteudístico-participante” divulgado no II Congresso de Crítica e História Literária de Assis, em 1961. O dado mais relevante, em relação a essa aproximação foi sua inclusão no seleto paideuma concreto, onde não constava inicialmente, e mais ainda o acréscimo de um post scriptum no “Plano Piloto”, o célebre mote: sem forma revolucionária não há arte revolucionária, atribuído a ele, ainda que tal frase talvez não possua um correspondente direto em russo. Na forma

como se encontra, lembra mais uma construção de Lenin, sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário, é a mesma estrutura de frase. Seja como for, de fato a frase resume bem a concepção da arte revolucionária para Maiakovski, inclusive o repõe no seu devido lugar, uma vez que a propaganda soviética o havia posto na linha de frente do proletkult, o havia convertido num poeta que se resumia à oratória revolucionária, o que subvertia a realidade, pois jamais abandonou a revolução estética em razão da política, o que o punha numa rota de confronto com a burocracia estatal que desde a década de 1920 passa a estabelecer padrões conservadores para a arte proletária. É o que já se vê em 1918 na “Carta aberta aos operários”: A revolução do conteúdo – socialismo-anarquismo – é inconcebível sem a revolução da forma: o futurismo e também o que resume sua participação em 9 de fevereiro de 1925 na conferência “As primeiras pedras da nova cultura” (Первые камни новой культуры) na qual debateu com Anatóli Lunatcharski sobre o tema. Essa conferência foi citada por K. S. Karol, quando são abertos os arquivos do stalinismo, em artigo publicado no Estado de São Paulo de 1º de março de 1959 no qual relata: Maiakovski disse que era contra a arte clássica, herdada da burguesia da Rússia czarista e a favor de uma nova arte comunista, revolucionária não apenas no seu conteúdo, mas também na sua forma. Como vemos Karol resume com a frase as posições de Maiakovski no debate, atribuindo-lhe uma fala. Esse artigo é origem do post scriptum e foi citado, pelo menos uma vez, na introdução de Revisão de Sousândrade. Os efeitos desses ensaios do Boris, somado às suas aulas, e as primeiras traduções que iam aparecendo nos jornais tiveram efeito quase que de imediato, transformando a forma de recepção,


33

equilibrando as linhas de força de sua complexa poética e de sua imensa personalidade, dando início a um processo contínuo de interesse pela poesia russa, além de ter aberto o caminho para uma contínua incorporação de contribuições intelectuais no campo da crítica. O jovem Paulo Leminski, por exemplo, por volta de 1963 já ensaiava algumas traduções do Maiakóvski, como os poemas “Noite de Lua” e “Baku”, que chegaram a ser publicados pela imprensa paranaense, aliás, uma pequena nota do jornal Ultima Hora do Paraná o apresenta como um tradutor que estava vertendo os poemas diretamente do russo. Aliás, Maiakóvski foi uma rara constante nos interesses tão difusos Leminski, pois além do poeta de vanguarda, além do militante, interessava a Leminski o Maiakóvski que almeja ser compreendido pelas massas, que acreditava que a poesia de vanguarda tinha um papel de inaugurar signos novos, isso já num contexto de indústria cultural, de popularização dos meios de comunicação de massa e informática. Leminski lembrava, em diversas ocasiões, que Maiakóvski dizia que o poeta deveria se comportar como uma usina elétrica, ou seja, o poema que gerasse um novo conhecimento, mesmo quando de difícil compreensão, poderia ser transmitido em uma cadeia entre leitores, do mais ao menos experiente, isto é, de um poeta para outros e desses para as massas. Maiakóvski estava certo, quem sabe até poderíamos arriscar a dizer que aqui seria um homem feliz, pelo menos assim tem sido desde 1922, pois sua poesia influenciou o ambiente literário, sobretudo depois de 1967, despertou o interesse e contribuiu para o fortalecimento de uma nova sensibilidade estética e vem de tempos em tempos sendo ainda redescoberta, uma vez a parcela de sua poe-

sia que está editada em português ainda é uma fração bastante reduzida de toda a sua obra. Nos últimos anos, somaram-se às antologias de Carrera Guerra e de Boris e dos irmãos Campos, outros trabalhos como Vladimir Ilitch Lênin, traduzido por Zoia Prestes, Minha descoberta da América, traduzido por Graziela Schneider, O Que É Bom, o Que É Ruim, traduzido por Jorge Sallum e Tatiana Lárkina e mais recentemente o impressionante poema Sobre isto (Про это), traduzido por Letícia Pedreira Mei, que compunha sua dissertação de mestrado defendida há alguns anos na Universidade de São Paulo, que acaba de ganhar sua versão em livro, publicado pela Editora 34. Suponho que haja outras em andamento. Há quase um século circulando entre os brasileiros, sendo lido de diferentes formas conforme o ambiente politico e literário que vivíamos, mais uma vez as nossas atenções se voltam para ele e sua inventiva e eloquente poética.

Paulo Ferraz (1974) é autor dos livros Constatação do óbvio, Evidências pedestres, De novo nada e Vícios de imanência. Organizou a antologia Roteiro da poesia brasileira: anos 90 e traduziu livros de poetas mexicanos contemporâneos. É graduado em Direito e História e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.


34

LETRA E MÚSICA “O tempo é um pássaro de natureza vaga” Márcia Cristina Fráguas

Sempre penso na afirmação do samba de Paulinho da Viola em dias de chuva quando o tempo parece estar em suspensão. “Para onde os dias passam?” Parece-me notável que num samba cujo tema aparente seja o orgulho se esconda uma meditação sobre o tempo, sobre os dias que passam, não se sabe para onde nem como. Há dias em que tudo o que se quer é uma pausa de mil compassos, mas nem sempre é possível que nosso tempo seja hoje. A sabedoria do samba de Paulinho da Viola é justamente a de se equilibrar sobre um acorde tenso, com graça e leveza, não sem alguma melancolia ou elegância de quem sabe que as coisas passam, e seu maior desejo é passar com elas, sem grandes paixões que deem movimentos demais aos olhos. Paulinho da Viola é o mestre do samba da delicadeza. Essa leveza dos que sabem passar com as coisas confere graça aos versos ásperos de Wilson Batista em “Meu Mundo é Hoje”. Nos momentos em que poderia resvalar na amargura, “tendo pena daqueles que se agacham até o chão”, a interpretação do cantor é suave, ao sublinhar que não levará arrependimentos da vida, pois tem convicção de que seu mundo é hoje. Paulinho sabe que o tempo é invencível, mas trata o transitório como um

mestre que se vê apaziguado com os assuntos de Saturno. Sua canção tem a intenção de fluir com o tempo sobre o qual medita. Contudo, seria enganoso acreditar que não haja tensão em absoluto com o deus do tempo. O desejo por um silêncio que amorteça o cansaço leva ao anseio pela pausa de mil compassos. No limite, mais do que ver passar as meninas, Paulinho almeja fazer um samba sobre o infinito, que se equilibre na vida como o ritmado dos dedos numa caixinha de fósforos. O já famoso rio que passou em sua vida, uma metáfora sobre a Portela, sua escola de origem, consiste também numa imagem muito potente sobre a passagem do tempo e seu poder de modificação através da experiência. Ninguém se banha no mesmo rio duas vezes, diria Heráclito de Éfeso. Paulinho da Viola vai além, pois aceita que o rio passe por ele, modificando-o sem provocar grandes desassossegos. Se Ricardo Reis fosse carioca, não teria convidado Lídia a sentar-se calmamente junto de si para fitar o movimento do rio, mas a habitar juntos um samba de Paulinho da Viola. Lá, onde a vida passa e dói sem ressentimentos, breve como um pássaro de natureza vaga.


(Paulinho da Viola)

35

Márcia Fráguas é geminiana com ascendente em gêmeos, ou seja, é o duplo de si mesma e já foi muitas pessoas nessa vida. Trabalha com crítica e ensaio, atualmente é poeta em processo. Faz mestrado em literatura brasileira na USP, em busca das relações entre poesia e música popular. Gosta de café preto sem açúcar e canções de Paulinho da Viola.


36

OFICINA DE CRIAÇÃO

DESLOCAMENTOS Márcia Cristina Fráguas

(Turma da oficina Deslocamentos, na bairro do Bixiga)

Escrito à maneira da renga, poema coletivo da tradição japonesa, o texto abaixo é o resultado de uma das incursões da turma que fez a oficina “Deslocamentos: poesia e multiplicidade”, no museu Casa das Rosas, em julho de 2018. Andando na noite gelada de São Paulo, numa das aulas que tiveram por “sala” as ruas da cidade, cada um dos participantes anotou dois ou três versos que, mais do que darem sequência a uma corrente, ecoavam

nossas conversas e o que a cidade também nos falava enquanto andávamos. Construímos, assim, um poema polifônico: escrito por nós (os coordenadores da oficina, alunas e alunos), mas ditado por essa cidade de infinitas vozes. Reynaldo Damazio e Tarso de Melo


37

Deslocamentos (uma renga, Paulista/Bixiga, 10/07/2018) há formas terríveis de amor em cada calçada de São Paulo as línguas se maltratam como os pés que se afastam os taciturnos trafegam tempos sedimentando anúncios em ônibus encrustados de mentiras andar com mãos machucadas escrever-se com pés tortos e imperfeitos conversas roubadas no bolso esquentando ouvidos na luz de uma cena os calçados ficam imundos é certo, mas a sujeira não apaga a história impregnada a idade pregada em fundas passagens paisagens de agora e letreiros mudos dão uma piscadinha-biscatinha aos pés verticalizados, mato mudas verticais: mudos gritos pisados calados

o passado equilibrista suspenso em vidro e metal nos observa como se congelados pela fria noite em movimento enquanto as palavras dançam o balé de incerteza uma calçadoteca espalha-se pelas ruas pisos de diversas cores e formas não há nada uniforme só os buracos se repetem crateras asfálticas lixo, lambes e esse lusco-fusco que sai da janela do casebre abandonado acertam o cerne do meu corpo andarilho reflito, pari passu, o que nos é tirado aflitos, num abraço, choram mães e filhos reaprender as ruas como quem reinventa o corpo próprio analisar depois os passos é individual, talvez, o mapa na Treze gentrificada um navio permaneceu são paredes rabiscadas pela saracura que não morreu


38

DEPOIMENTO

LYGIA

BEM DE PERTO Lucas Bandos

Meu primeiro contato com a literatura de Lygia Fagundes Telles aconteceu ainda na infância, por meio de uma das coletâneas de contos brasileiros da antológica série Para Gostar de Ler – verdadeiro baluarte da história editorial brasileira que, desde 1977, resiste, inabalável e onipresente, nas prateleiras de bibliotecas e livrarias país afora. O volume foi adquirido numa das inúmeras visitas a sebos que fiz – e, felizmente, ainda faço – na companhia de meu pai e reunia narrativas assinadas por nomes do calibre de Clarice Lispector, Machado de Assis, Moacyr Scliar e Murilo Rubião. Entre os textos, que normalmente versavam sobre temas leves e descontraídos – próprios para cumprir o propósito estabelecido pelo título da coleção e ganhar o coração dos leitores iniciantes –, me deparei com a densidade sombria de Natal na barca. Até então, durante minha recém-iniciada jornada enquanto amante da literatura, eu já havia rido do Homem nu de Fernando Sabino, me surpreendido com a astúcia da Velha contrabandista de Sérgio Porto (a.k.a. Stanislaw Ponte Preta) e me comovido com o trágico fim do Pintinho de Carlos Drummond de Andrade. Mas, ao fim da primeira leitura de Natal na barca, senti uma emoção que eu ainda não conhecia e que, até hoje, não sei nomear. Conforme meus olhos percorriam as linhas impressas, um misto de encantamento e assombro me invadia. A história da mulher solitária, que passara

a noite de Natal a bordo de uma embarcação rudimentar, ao lado de um velho bêbado e de uma mãe com um recém-nascido a tiracolo, nunca mais me abandonou a memória. Em pouco menos de seis páginas, esse conto repleto de nuances – e surpreendentemente infiltrado numa coletânea infanto-juvenil – toca em temas mais do que adultos, como fé (ou a ausência dela), morte, abandono e empatia. A narrativa é perpassada desde o início por um tom melancólico, mas, como fruto de um milagre, termina esperançosa, mirando a incerta direção do amanhã. Em meu imaginário infantil, o misterioso encanto que envolve o texto passou a envolver também a figura que se esconde por trás desse nome aristocrático, como o de uma baronesa quatrocentona: Lygia Fagundes Telles. No miolo da minha modesta edição de Para Gostar de Ler, o nome de Lygia vinha acompanhado de um retrato seu: uma fotografia em preto e branco, na qual se avistava uma elegante senhora, que encarava a câmera com um sorriso discreto, sentada numa poltrona de teatro, com um lenço listrado no pescoço e uma bolsa de couro repousada sobre o colo. A legenda abaixo da imagem dizia: “Em seus romances, Lygia faz poesia em forma de prosa”. Encarei aquele rosto, certo de que, em breve, nossos caminhos voltariam a se cruzar. O reencontro aconteceu um ou dois anos depois,


39

ainda no colégio, durante uma aula de Língua Portuguesa, na qual o foco era análise interpretativa de uma das narrativas que revolucionou minha trajetória enquanto leitor e pela qual cultivo, até hoje, uma admiração desmensurada, inundada de afeto e nostalgia: Venha ver o pôr do sol. Num ritmo de suspense crescente, o conto narra o angustiante encontro entre Raquel e Ricardo, um casal de ex-namorados que decide revisitar seu antigo relacionamento, em meio a um passeio de final de tarde por um cemitério abandonado. Apesar do impacto inicial causado por Natal na barca, devo dizer que foi Venha ver o pôr do sol a minha definitiva porta de entrada para a obra e o mundo de Lygia. Depois de duas leituras em sala de aula – uma individual, silenciosa, e outra conjunta, em voz alta –, não me restou alternativa a não ser adquirir, novamente num sebo, o livro-ostra de onde fora retirado aquele texto-pérola. E assim se fez. Tendo em mãos meu exemplar de Antes do baile verde, imergi num mar de palavras cuja simplicidade se misturava a uma inconfundível elegância. Elegância que arrisco considerar como o principal traço da prosa de Lygia Fagundes Telles, concorrendo apenas com o mistério. Ah, o mistério! Esse elemento que invariavelmente paira sobre seus personagens e narradores – sejam eles um anão de jardim, uma cantora de ópera ou uma mãe enlutada. Dos contos de Lygia, parti para seus romances. Por meses, fui íntimo de Lorena, Ana Clara e Lia, as estudantes de As meninas; de Virgínia, Otávia e Bruna, as irmãs de Ciranda de Pedra; e, como gosto de acreditar, da própria autora – a quem procuro enxergar em cada personagem. Ao longo dos anos, entrei em contato com diversas outras damas literárias, mestres na arte do conto e do romance. Passaram, pelas minhas mãos e pela minha estante, nomes como Katherine Mansfield, Virginia Woolf, Alice Munro e a incontornável Clarice – de quem Lygia foi amiga e confidente. Todas elas geniais e revolucionárias à sua própria maneira. Mas, quando meu desejo é – ao invés de desbravar paisagens desconhecidas – viajar para dentro de

mim mesmo, é à Lygia a quem recorro e retorno. É em meio à linguagem descomplicada, poética e de uma honestidade cortante, que me vejo novamente menino, embasbacado ao encarar, tête-à-tête, aquele felino requinte, presente não só nas palavras, mas também no sorriso da nobre baronesa, fotografada em preto e branco, na plateia deserta de um teatro vazio.

(Lygia Fagundes Telles)

LUCAS BANDOS LOURENÇO é jornalista-aprendiz, metido a bibliófilo e a cinéfilo profissional. Esporadicamente, publica resenhas críticas no blog Extraquadro (extraquadro. wordpress.com) e sempre aceita café na hora de discutir assuntos aleatórios, que vão da psicanálise à discografia de David Bowie, passando por uma inexplicável obsessão por edifícios modernistas.


40


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.