Revista Grafias

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Ano 1 - nยบ3 - 4/2015

grafias


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Geraldo Alckmin | Governador do Estado José Roberto Sadek | Secretário de Estado da Cultura Renata Vieira da Motta | Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Correa | Diretor Administrativo Financeiro Maria Izabel Casanovas | Assessora Técnica CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA Marcelo Tápia | Diretor REVISTA GRAFIAS Reynaldo Damazio | Editor Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenação Maria José Coelho e Dayane Teixeira | Assistentes Angela Kina | Design Gráfico Carolina Ferreira | Assistente


grafias


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editorial

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ensaio / linguagens fronteiriças (colagem, fotomontagem, digital)

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poesia concreta: 60 anos – augusto de campos e a concretude da invenção

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adolfo montage navas

franklin valverde escrita criativa “el encuentro con la propia voz en el texto”

laura duschatzky

artigo / escriturdidura: a linha resistente

irana gaia

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literatura latino-americana uma experiência de leitura: “paradiso”, de lezama lima

34

raro frêmito, poesia de maura voltarelli

bruno eliezer melo martins

carlos eduardo marcos bonfá


sumário 38

oficina crítica literária / aroma amaríssimo

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oficina crítica literária / “como conversar com um fascista”

40

oficina crítica literária / a autobiografia de todos os hebreus, incluso eu

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silvana pierro

alexandre caetano

marcio branquinho por gertrude stein oficina crítica literária / “um, dois e já”

felipe lários

oficina / poema

clara szifer

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oficina / poema

44

oficina / poema

eunice tomé

nara iachan


GRAFIAS – revista do centro de apoio ao escritor Diretor: Marcelo Tápia Editor: Reynaldo Damazio Assistentes: Maria José Coelho / Mayne Benedetto Produção: Carmem Beatriz Henrique de Paula Design: Angela Kina / Carolina Ferreira Revisão: Centro de Apoio ao Escritor Imprensa: Carla Regina / Débora Nazari ANO II – N° 5 – dezembro de 2016


editorial Em seu quinto número, a revista Grafias amplia a discussão sobre a escrita literária e a formação do escritores em conexão com experiências da América Latina, como ilustra o artigo da professora argentina Laura Duschatzky, apresentado no Primeiro Encontro de Escrita Criativa da Casa das Rosas e do Centro de Apoio ao Escritor. Dois ensaios complementam essa reflexão, um sobre a relação entre linguagens visuais e a escrita, do poeta e crítico de arte espanhol Adolfo Montejo Navas, e outro sobre o romance experimental Paradiso, do escritor e poeta cubano José Lezama Lima, publicado em 1966 e com mais de uma tradução para o português. A exposição “Rever”, que contempla a trajetória poética de Augusto de Campos, é analisada por Franklin Valverde, que destaca a permanência do rigor e da experimentação com as possiblidades inesgotáveis da linguagem na atual produção do poeta e co-fundador do movimento de poesia concreta. Ainda nesta edição, inauguramos seções de crítica e criação para acolher produções de alunos dos cursos e oficinas promovidos pelo Centro de Apoio ao Escritor. Assim, para além do incentivo à criação e da orientação formativa, cumpre-se também a função de apoiar a difusão dos trabalhos produzidos nestas atividades.


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ENSAIO

LINGUAGENS FRONTEIRIÇAS COLAGEM, FOTOMONTAGEM, DIGITAL Adolfo Montejo Navas

“Construir algo, algo artificial, algo fabricado.” Bertolt Brecht O que nos interessa neste trânsito é a confluência entre colagem e fotomontagem e suas derivações textuais. Sendo disciplinas diferentes, muitos artistas as fazem convergir, e isso em grande parte devido à aparição da imagem fotográfica, seja da procedência ou com a execução que for. Ambas devem sua aparição à fragmentação do mundo do entre-guerras, ambas inventaram uma nova percepção, sempre insatisfeita, contra a ideologia mais burguesa. E perseguem como condição criar um espaço novo de olhares e perspectivas plurais, o que as alinha à natureza da poesia, em função da polivalência de significados que esta pretende convocar. Talvez a primeira linguagem do século XX que sabe ler a idiossincrasia do que está vindo, a semântica dos tempos é a colagem, que foi incipiente na multiplicação de olhares que o cubismo

buscava (George Braque chamava o artista de colagem de “edificador”). Colagem, fotomontagem ou foto-plástica, todos termos dos anos 20, diferem no fundo por questões formais como o recorte e a reagrupação das imagens. As vanguardas históricas, liberadoras do espartilho da imagem e seu espírito: futuristas, formalistas russos, dadaístas e surrealistas, são adeptos furibundos desta prática. Na natureza da colagem há a mesma leitura do mundo que na fotomontagem: procura-se responder a um mundo caótico, com sua credibilidade humanista afetada, instável com uma visão múltipla. Nessa tradução atraída pelo plural, reconhece-se o mistério de cada coisa e as certezas obrigatórias são rebaixadas de escalão, numa mistura de “sonho e reflexão”. O que se divisa na colagem é a condição enigmática da totalidade, agora fragmentada, redimensionada. Há algo de ilusionismo, de cenografia (veja Joseph Cornell ou as colagens de Jorge de Lima ou de Athos Bulção).


9 As justaposições e discordâncias são o trabalho de construção e desconstrução sobre uma matéria que é o acaso, o descontínuo, o acidente, a fragmentação do mundo em partes de acontecimento. Uma quebra representacional dentro da visualidade que responde a uma quebra maior, de sentimento e de entendimento do mundo. No fundo, cada fragmento é um desvio, um antídoto para essa totalidade examinada como canônica e insuficiente. Estamos no campo da metáfora e da metamorfose, também devido ao abandono da “textura real” do mundo em favor da sua espessura, de uma supra-realidade organizada, tanto como utopia quanto jogo, como aponta László Moholy-Nagy: “Um método experimental de visão simultânea: tais obras condensam e resumem a intricação do olho e da palavra; de uma forma aberrante, fazem passar os meios mais realistas, os mais miméticos, para o lado do imaginário.”* Como na poesia, não há outra finalidade maior do que a de “arruinar todas as veleidades do sentido.” (Enmanuel Guigon) Para isso, “todas essas tentativas se baseiam na idéia de unir artes gráficas e fotografia, de modo que texto e imagem formem um todo”. A manipulação da fotografia é reconhecida quase ao mesmo tempo que sua invenção (o quarto escuro como lócus do processo criativo, como diz Rosalynd Krauss/Annette Michelson, “esse inveterado gerador de metáforas e paradoxos, que promete valor e subverte a autenticidade, revela as contradições da nossa cultura”. Impressões duplas, fotografias compostas, retocadas, são um bastidor inclusive humorístico do gênero no século XIX (veja os tradicionais cartões postais alemães). Mas o paralelismo entre fotomontagem e poesia dadá é reconhecido apenas na medida em que em ambas o acaso dá total liberdade às composições, com a inclusão de palavras, fragmentos, frases fora de contexto, escolhidas com liberdade completa por Hans Arp, Tristan Tzara, Kurt Schwitters ou Erwin Blumenfield. É sabido que a fotomontagem dadá reage contra a colagem cubista, acusada de realista, e que pode ser chamada “fotocolagem”. Marx Ernst, figura chave da época, dá o passo para uma colagem transformada em “procedimento poético”,

como disse o poeta Louis Aragon. Algo que pode ser reconhecido em Marcel Duchamp, Joseph Cornell, Robert Rauschenberg, John Baldessari, Marcel Broodthaers, no famoso “Um salto no vazio” (1960) de Ivens Klein ou na série de Grete Stern, “Os sonhos” (1948-51). A condição paródica (às vezes de crítica militante) da fotomontagem alemã se diferencia da surrealista posterior (com mais eros e mais noturno), de seu imaginário que explicita o maravilhoso ou o enigma necessitado de imagens estranhas, mágicas, outras. Os dadaístas são os mais interessados em expressar contradições. Entram em uma arte de agitação, em que a distância entre a tese e a antítese muitas vezes é imperceptível. Ainda assim, John Heartfield, a vanguarda russa (El Lissitzky, Rodchenko), ou Josep Renau fazem escola política sem em nada rebaixar o padrão estético. Os cartazes de propaganda russa, entretanto, prezavam um ascetismo formal derivado da linha reta, do construtivismo que limava toda ornamentação. “Muitos artistas fazem montagem; isto é, com fotografias e inscrições suas, compõem páginas inteiras que são então reproduzidas por impressão através de procedimentos fotográficos. Dessa forma, desenvolveu-se uma técnica eficaz e simples que é muito fácil de praticar e, por esse motivo, pode ser transformada em uma rotina entediante, mas que em mãos fortes é o método mais feliz para se obter a poesia visual”. São palavras de El Lissitzky, em 1925. O próprio Moholy-Nagy defende suas variações como “uma série fotográfica inspirada em um objetivo concreto pode se transformar instantaneamente na arma mais potente e na lírica mais doce”. As mudanças de escala e a percepção simultânea de diversas coisas, como aponta Dawn Ades em seu estudo histórico sobre a fotomontagem (1976), são armas para a desorientação, algo que Max Ernst soube intuir em 1920 em suas colagens híbridas como fonte dessas possibilidades. Inclusive, a mesma historiadora inglesa sugere o parentesco entre as funções do objeto surrealista e da fotomontagem. A fotomontagem transforma o gesto do fragmento em estética, choque, crítica e


10 discordância. E sua contradição visual reflete sempre um esgarçamento (seja dadaísta, construtivista ou surrealista), uma fissura. Seus autores são montadores de fissuras. Nesta forma de poesia visual entravam títulos, citações, fragmentos de notícias, discursos, provérbios, slogans, etc., bem presentes na obra de Raoul Haussmann, Hannah Höch, entre outros. (Mário de Andrade chamava as fotomontagens de “criações líricas” e T. Tzara chamou as colagens de “provérbios em pintura”). Não obstante, talvez um dos encontros mais felizes de poesia e fotomontagem tenha sido o de Rodchenko e Maiakosvki, no livro deste último, Isto (1923). Outra admirável experimentação verso-gráfica (de viés surrealista) são as imagens suspensas com poemas-retalhos de La Septième face du dé (1936) de Georges Hugnet. A imagem eletrônica, procedente do intenso processo de produção tecnológica em que nos encontramos desde os anos 90, acentua um grau de manipulação da fotografia nunca antes sonhado. As novas técnicas digitais estão modificando o olhar, instaurando novos espaços de criação e intervindo nos criados anteriormente. “O digital desestruturou, destruiu inclusive, uma cultura analógica, uma forma de olhar a realidade analógica, e agora é preciso reconstruir a realidade de uma forma eletrônica.” (Daniel Canogar) Ainda assim, as operações da nova imagem possuem conexões conceituais (menos formais) com a colagem e a fotomontagem. Também o tratamento de imagens alimenta indefectivelmente o dilema real-irreal, constitutivo de grande parte desta nova fotografia, assim como uma inscrição espaço-temporal diferente e outra valorização de tais coordenadas. A dependência do real (e o exterior) foi minguando cada vez mais, retomando aproximações com a poesia, já que coloca em xeque o resultado da representação (a cosmologia do poema) e seu próprio suporte (linguagem do poema). Textualidade fotográfica ou escrituras da imagem “a ubíqua crença de que ‘o visual’ é uma experiênci totalmente separada (de fato antitética) do verbal” Victor Burgin

“As palavras evocam imagens e as imagens evocam palavras que podem falar de coisas totalmente diferentes”, aponta Rod Slemmons. O ponto de partida desta afirmação serve para nos colocar num caminho bifurcado que acaba convergindo. O de um campo dentro da última fotografia que cresceu exponencialmente: o da combinação de texto e imagem, de palavras e fotografias. E aí estão como referência as obras pioneiras de Robert Frank, Martha Roesler, Barbara Kruger, Victor Burgin, Jochen Gerz, Sophie Calle, Leonel Moura, entre outros artistas que trabalham com a imagem fotográfica e o texto como intervenção dentro dela. Se a fotografia é uma linguagem sui generis, com esta inclusão do texto essa ênfase se multiplica. Não é por acaso que muitas obras de arte, fotografia em arte ou arte em fotografia incluem uma reflexão de gênero, no sentido de poética. Se a poesia última mergulha continuamente sobre a razão de ser da sua prática, ou melhor, da sua condição lingüística, e a fotografia se abisma cada vez mais no fio da linguagem também por isso, pela sua autonomia centuplicada ao longo do século XX, é porque a capacidade metalingüística, auto-reflexiva de ambas as disciplinas é notória. O texto entra como materialidade icônica (elemento, forma, substrato crítico), o que significa transferência de sentidos, subversão somada aos suportes independentes. Outra semiose. Interessante, em qualquer caso, é a recepção diferente, que obriga a fazer esta combinação de materiais diversos, seu degrau perceptivo: “em comparação com os passos agigantados aos quais uma imagem fotográfica é assimilada, as palavras, em fila, forcejam glacialmente. Por outro lado, depois que todas as palavras tenham entrado, podem dançar formando um número qualquer de figuras tridimensionais, enquanto a fotografia fica congelada em uma memória formal.” Com estas diferentes velocidades e configurações, o crítico norte-americano Rod Slemmons não alude à linguagem da poesia, na qual justamente aproxima-se mais o valor da imagem por si só, muitas vezes rivalizando com sua sintaxe e, portanto, com sua percepção-leitura. Se a


11 imagem chega primeiro, na poesia também ela o faz rápido, independentemente da totalidade semântica de seu discurso e da sua fisionomia sintática. Como outro ponto de ligação com este campo, é conveniente destacar a importância teórica, pós-estruturalista, que a noção de texto como obra teve. A fortuna de Barthes foi rebatizar a obra como tecido textual. Isso flutua nas coordenadas das obras que consideram o trabalho artístico um espaço de percepção que pede “leitura”. Outra leitura/tradução, que faz ver o texto como imagem e a imagem como texto. Esta inversão é plausível a partir da estética conceitual do texto (a palavra transformada em imagem, a imagem transformada em idéia, como em Joseph Kosuth) que confere uma carta de natureza nova ao texto como visão. Em tempo, vale lembrar: escrever com imagens não é só o que a poesia contemporânea faz, mas todo nosso entorno midiático. “O indireto, o terreno fértil da comunicação poética, é difícil de alcançar com a fotografia”, ainda que depois se reconheça que “Não há nenhuma diferença entre a página em branco na frente do poeta e o filme não exposto”.* É precisamente essa difícil diagonal que motiva e traça nossa aproximação. E é curioso reconhecer que, se a língua foi inventada para se apreender o mundo visível, sobretudo no caso da poesia ela permite uma invenção do mundo/imaginário, uma descontextualização das nossas mediações verbais. As imagens – e uma maioria de tropos e figuras – são profundamente isso, a salvaguarda dessa alteração. Contudo, são também a prisão da linguagem – grades, como Paul Celan denominou o reconhecimento dessa limitação –, algo com que a poesia sempre conta. Outro fator em nossa aproximação é o grau de “subjetividade” que este olhar alcança nessas obras, um desafio relacional que se vincula à natureza da poesia, com seus permanentes ajustes associativos e interpretativos. Não nos interessa tanto aqui, e é um viés intencional que reconhecemos, estabelecer o valor dos textos como narrativa, como discurso seqüenciado. Em parte porque a leitura dos textos deste tipo de obra não busca

uma interpretação linear da linguagem e sim seus meandros, devaneios, distorções, derivas que alterem a construção normal do discurso. Assim como a poesia não persegue o saber catalogado, estipulado, essa genealogia artística também não. Entre a realidade verbal e visual há outra passagem, alteridades novas que não pertencem às correias de transmissão habituais, à linguagem da costume. Ambas, poesia e foto-arte, vão atrás de uma imagem subscrita, outra vez como matriz livre, e em um território visual socializado que hoje padroniza e fagocita qualquer coisa. Estamos falando sempre de uma imagem-verbo, de outra fotografia-poesia visual, que recorre a uma fusão de signos, com a confiança de instaurar outro território que denomina diferente. De novo, a união do texto com o visual estabelece um espaço imaginário: “a imagem de repercussão discursiva se articula com um texto que assume em certos aspectos um estado de imagem” (Victor Burgin). Com efeito, a poesia sempre está em estado de imagem. No caso de Jochen Gerz, discípulo de Joseph Beuys, seu foto-texto veterano pretende buscar uma alteridade, ou bem “outras coisas”, “uma identidade que está além da luta por uma unificação ou a singularidade”. O campo prometido é toda uma pretensão de ordem poética: “O visível domina cada vez mais o que não é. A arte tem menos a ver com as imagens do que com o que não pode ser fixado, comprado ou até mesmo visto.” Subjetividade e imaginário, presentes em obras decodificadoras, entram em sintonia com dimensões da poesia, com os recursos de desvio e ruptura da norma característicos dela – e dentro de um marco adverso de sobre-iconização e hipertrofia verbal da linguagem publicitária –, como os truísmos de Jenny Holzer (com uma visualidade epifânica, quase aforística, escritos em neon ou na pele) ou as fotografias de Shirin Neshat de mulheres árabes com poemas de amor e desejo escritos nas mãos. Outro caso de síntese texto e imagem, que respira ecos dadaístas e russos, estratégias publicitárias e universo pop são as imagens de Barbara Kruger, de alta subversão ideológica, crítica e feminista. E um exemplo extraordinário de atualização


12 da poesia visual (pós-concreta) e instalação pública se encontra na estação de metrô Sumaré (São Paulo), com rostos anônimos agigantados portando fragmentos de poesia brasileira, obra de Alex Flemming. Também singular é o caso de Matt Siber: sua fotografia digital pensa a estrutura visual dos meios de massa e estruturas de poder, fazendo desaparecer de suas fotografias todos os códigos e signos visuais das vozes públicas, resgatando um silêncio anterior aos signos. No fundo, estamos sempre no território dos significados múltiplos, perante a evidência, detectada pela fotografia e a arte, de que o texto fora da imagem rebaixava a obra à categoria de ilustração e, dentro dela, a ampliava. Não há dúvida de que esta vertente supõe um vínculo com as experiências vanguardistas e a poesia visual (que rompeu com a linearidade do discurso poético) e, ao mesmo tempo, ostenta sua própria natureza, pois reconhece-se que o texto que muitas obras incluem não é de leitura mecânica, mas uma forma de linguagem verbal contaminada que altera sua percepção. “A coreografia imagem/palavra/palavra/ imagem não é fácil de compor. Mas, quanto mais difícil é, mais possibilidades existem de qualificar ou esclarecer o mundo mais amplo que é sua origem.” As palavras de Rod Slemmons podem ser relacionadas à defesa da poesia de Paul Valéry como linguagem de dança, em contraposição à prosa como linguagem de caminhada. A identificação da fotografia com a construção, mais do que com um reflexo espontâneo do real, enfatiza ainda mais a noção de escritura com imagens: “sempre considerei a fotografia como um texto, tendo uma estrutura de texto, que é necessário escrever e ler.” (Joan Fontcuberta) De nosso lado, entre a realidade verbo/visual, não é possível escolher. Esta vertente de trabalho, que nunca é gerada de um só lado – uma coisa se transforma na outra – torna a insistir nesse intervalo, nessa fenda de linguagem que tanto defendemos.


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Notas - Herbert Bayer exemplifica a vertente, junto a L. Mohoy-Nagy, que associa artes gráficas e fotografia em Fotografia da Bahaus, Berlin, IRCE (1983/1990) - Reflexões de Joan Fontcuberta, Estética fotográfica (Barcelona, Gustavo Gili, 2003) - As considerações de cambio de estatuto da fotografia pela digitalização da imagem de Geoffrey Batchen se encontram em Histórias de assombração (Rio de Janeiro, Revista do Patrimônio – Fotografia, n.29, 1998), e também no texto, Ectoplasma, la fotografía en la era digital, incluído em Efecto Real, Barcelona, 2004, p. 324 e 320. - Palavras e referências de Rod Slemmons, em Entre el lenguaje y la percepción (Madri, Exit, 16, 2005, pp. 24-32) - Para o artista e ensaísta inglês Victor Burgin, a prática fotográfica é, “de fato, escripto-visual”. Ver Ensayos, Barcelona, Gustavo Gili, 2004. - Jochen Gerz, Remember photo/text: from 1 to 2, Madri, Exit, 16, 2005, p. 64 Sugestões de leitura Como bibliografia estética em torno da fotografia, reunimos referências em várias direções: Walter Benjamin, Obras escolhidas / Magia e técnica, Arte e política (São Paulo, Brasiliense, 1996); Susan Sontag, Sobre fotografia (On photography, 1977; São Paulo, Companhia das Letras, 2004); Roland Barthes, A câmara clara (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984); Vilém Flusser, Filosofia da caixa preta, (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002); Philippe Dubois, O ato fotográfico, (Campinas, Papirus, 1994); Bernardo Pinto da Almeida, Imagem da fotografia, (Lisboa,

Assírio e Alvim, 1995); Régis Durand, El tiempo de la imagen (Salamanca, Universidad de Salamanca, 1998); Efecto real / debates posmodernos sobre fotografia, Jorge Ribalta (ed.), VV.AA. (Barcelona, Gustavo Gili, 2004); Dominique Baqué, La photographie plasticienne. Un art paradoxal (París, Du Regard, 1998; Barcelona, Gustavo Gili, 2003); André Rouillé, La photographie (Paris, Gallimard, 2005); Rosalind Krauss, Le Photographique. Pour une Théorie des Ecarts (Paris, Macula, 1990; Barcelona, Gustavo Gili, 2002); Lucia Santaella & Winfried Nöth, Imagem (Cognição, semiótica, mídia), (São Paulo, Ed. Iluminuras, 1999); Maria do Carmo Serén, Metáforas do sentir fotográfico (Porto, Centro Português da Fotografia, 2002); Arlindo Machado, A ilusão especular (São Paulo, Ed. Brasilense, 1984); ArteFoto, Catálogo, Ligia Canongia (org.), VV.AA. (Río de Janeiro CCBB, 2002); Fotografia, n. 27, VV.AA. (Rio de Janeiro, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1998). Como bibliografia literária, devem-se considerar as contribuições específicas de Paul Valéry, Variedades (São Paulo, Ed. Iluminuras, 1999); Octavio Paz, El arco y la lira, (México, Ed. FCE, 1998); Eduardo Milán, Resistir (insistencias sobre el presente poético) (México D.F., Ed. FCE, 2004); Alberto Pimenta, O silêncio dos poetas (Lisboa, A Regra do Jogo Edições, 1978); Pere Ballart, El contorno del poema, (Barcelona, Ed. El Acantilado, Quaderns Crema, 2005); Jean Cohen, Estrutura da linguagem poética (São Paulo, Ed. Cultrix, 1968); Antonio Risério, ADOLFO MONTEJO NAVAS é poeta, artista plástico, crítico e curador de arte. Autor de “Pedras pensadas”, “Na linha do horizonte: conjuros” e “Da hipocondria”, entre outros.


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POESIA CONCRETA:

60 ANOS AUGUSTO DE CAMPOS E A CONCRETUDE DA INVENÇÃO Franklin Valverde Um poeta estar em atividade literária há quase sete décadas é um fato para ser registrado. Poucos conseguem atingir essa marca em plena produção, criando novos poemas e editando livros. E quando esse poeta é Augusto de Campos, o fato merece mais do que um simples registro, deve ser comemorado por todos aqueles que amam e praticam a poesia. Parte dessa comemoração, aproveitando a efeméride dos 60 anos da Poesia Concreta, aconteceu recentemente no Sesc Pompeia, em São Paulo, com a megaexposição Rever, um evento que nos possibilitou apreciar não só grande parte de sua produção poética, como também bibliográfica, além de contar com exibição de vídeos e objetos construídos a partir de seus poemas. Augusto de Campos pertence àquela categoria maior de poetas que Ezra Pound chamou de “Inventores”, em seu “ABC da Literatura” (Cultrix), na qual estão os artistas que “descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”. Ter sido um dos criadores da Poesia Concreta garante esse status sem contestações. A proposta poética concretista era extremamente inovadora, pois simplesmente rompia com o verso, algo considerado herético para os cânones poéticos dos anos 50, ainda presos ao chamado “neo-parnasianismo” da geração de 1945. Também incorporava ao poema o espaço em branco da página, fazen-

do dele um dos elementos fundamentais na construção de sentido. Buscava-se na raiz da palavra o combustível para mover o motor do poema. É a essência “verbivocovisual” sintetizando esse ideário criativo, mostrando outras possibilidades de se fazer uma nova poesia. Muitos consideram o concretismo uma das últimas manifestações artísticas das vanguardas surgidas no início do século XX e que chegou – até com certo atraso – à década de cinquenta. Se considerarmos o momento em que surgiu, constataremos que não se tratou de um movimento tardio, mas sim fruto do ambiente cultural pelo qual passava o Brasil e a própria cidade de São Paulo. Foi naquele período que tivemos a implantação da televisão no País, a consolidação das artes plásticas com o surgimento de espaços como o Masp (Museu de Arte de São Paulo), o MAM (Museu de Arte Moderna) e da Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Na arte da representação, além do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e do Teatro de Arena tivemos também os anos de ouro da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Tudo isso colocou São Paulo em outro patamar cultural, que possibilitou que a produção artística feita aqui fosse inovadora e de excelência. Além disso, do ponto de vista político, após o suicídio de Getúlio Vargas, vivíamos em pleno clima desenvolvimentista, insuflado pelo projeto do Juscelino


15 Kubitschek de Oliveira. Embalado pelo slogan “50 anos em 5”, o presidente propunha desenvolver o Brasil, colocando-o meio século à frente de seu tempo, durante o período de seu mandato presidencial, culminando com a construção de Brasília, a nova capital do País. Naquela época, um evento marcou o percurso poético de Augusto de Campos, da sua geração de poetas, assim como das seguintes: a Exposição Nacional de Arte Concreta. Realizada em dezembro de 1956, em São Paulo, e em fevereiro de 1957, no Rio de Janeiro, pode ser considerada como a certidão de nascimento do movimento concreto na poesia. Dela participaram, além de Augusto de Campos, os poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Wlademir Dias-Pino e Ronaldo Azeredo. Gullar, logo depois, rompeu com o concretismo e, junto com os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica, fundou o neoconcretismo. Segundo seus integrantes, o movimento dissidente buscava uma poesia mais atuante e com coloração política mais explícita. Anos mais tarde, foi a vez de Dias-Pino radicalizar a proposta inicial do concretismo, lançando o poema-processo, proposta poética que trabalhava a palavra em uma revolução gráfica. Já Ronaldo Azeredo, que depois se tornou cunhado de Augusto, manteve-se fiel aos princípios do concretismo, sendo dele um dos poemas ícones do movimento, o já clássico “Velocidade”. Antecedentes poéticos não faltaram para inspirar o grupo. Se alimentavam das aventuras modernistas do nosso Oswald de Andrade, das inovações experimentais de Pound, cummings, Joyce e Mallarmé, e até da capacidade ímpar de síntese de João Cabral de Melo Neto. Também merece registro o diálogo realizado com o poeta suíço-boliviano Eugen Gomringer, autor de “Konstellationen” (Constelações, 1953), obra que trafegava por semelhantes caminhos seguidos pelo grupo brasileiro. A parceria formada por Augusto de Campos com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, foi fundamental para a criação e a consolidação da poesia concreta. Os três, mais que amigos de toda a vida, foram parceiros em inúmeras atividades

poéticas e editoriais, como a formação do grupo Noigandres, que resultou em revista homônima que circulou de 1952 até 1962. No ano de encerramento dessa revista, nasce a “Invenção”, outra publicação do trio que aglutinava poetas que enveredaram pelo concretismo ou que aderiram a essa nova expressão poética, mesmo tendo já uma vasta obra versificada, como foi o caso de Edgard Braga. “Invenção”, que circulou até 1967, além de publicar poemas concretos, também era um espaço privilegiado para discussões estéticas e teóricas a respeito do fazer poético e da poesia. Entre os poetas que passaram por suas páginas, além do trio e de Braga, devemos registrar os nomes de José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo, Cassiano Ricardo, Mário Chamie, Pedro Xisto, Luiz Ângelo Pinto e Manuel Bandeira. Augusto de Campos sempre foi dono de um grande poder criativo. Isso pode ser comprovado desde sua estreia com livro “O rei menos o reino” (1951), no qual é possível encontrar elementos de um certo trabalho ousado com a linguagem, até “Outro”, sua mais recente obra, lançada no ano passado pela Perspectiva, em que o trabalho com a visualidade tem uma presença marcante. A noite de autógrafos desse título, realizada na Cada das Rosas, reuniu centenas de pessoas que ficaram horas na fila para terem o seu exemplar autografado pelo poeta, fato raro em se tratando de um livro de poesia. Antes de “Outro”, a obra poética de Campos está reunida, fundamentalmente, nos volumes “Viva Vaia (194979)”, “Despoesia” (1994) e “Não” (2003). Em todos encontramos a mesma criatividade inventiva do poeta que deu o pontapé inicial no concretismo e o cuidado estético que confere a seus poemas uma beleza plástica inconfundível. Muito desse poder de criação não ficou restrito às páginas dos livros. Merece registro os livros-objeto “Poemóbiles” (1974) e “Caixa Preta” (1975), realizados em parceria com artista plástico e designer Julio Plaza, espanhol radicado no Brasil. Além dessas obras, Augusto de Campos também realizou, em outubro de 1990, poemas em holografia (“Bomba” e “Risco”) que fizeram parte da exposição “Poesia Entre”, exibida na galeria Gabinete de Arte Raquel


16 Arnaud. Também fizeram parte da exposição cinco poemas-objeto em placas de acrílico e pranchas do álbum “Expoemas” (1985). Registre-se também o CD “Poesia é risco” (1995) com música de Cid Campos; os “Clip-Poemas” (1997), dezesseis poemas digitais que participaram na mostra “Arte Suporte Computador”, na Casa das Rosas. Atualmente, desenvolve animações computadorizadas explorando todas as possibilidades “verbivocovisuais” de seus poemas. No campo da pesquisa sobre a poesia e a criação poética, Augusto de Campos tem grandes contribuições. Foi um dos responsáveis pela revalorização da obra do modernista Oswald de Andrade e pela redescoberta de autores como o baiano Pedro Kilkerry e o maranhense Sousândrade, este último, em um trabalho em parceria com seu irmão Haroldo. Esses poetas, antes do labor dos Campos, estavam marginalizados e relegados ao esquecimento. É também dele um importante estudo dedicado à vida e obra de Patrícia Galvão – considerada a musa do modernismo brasileiro – que resultou no volume “Pagu: vida e obra” (Cia. Das Letras). Nesse livro, resgata o papel da escritora, jornalista, agitadora cultural e militante política, na primeira metade do século XX. Outro aspecto importante a ser destacado no percurso de Augusto de Campos é o seu lado de tradutor. Trouxe ao português – ou melhor, transcriou como o seu irmão Haroldo preferia – os versos de importantes poetas como Arnaut Daniel de Riberac e outros trovadores provençais, Dante Alighieri, Guido Cavalcanti, Lord Byron, John Keats, Emily Dickinson, Lewis Carroll, Stéphane Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, e.e. cummings, Gertrude Stein, Rainer Maria Rilke, Vladimir Maiakóvski e outros poetas russos. Ainda na área da tradução Campos tem a obra “Quase Borges” (2013), livro que reúne vinte transpoemas de autoria de Jorge Luis Borges – entre eles o “Poema de los dones” – e uma entrevista realizada, em 1984, na casa do escritor argentino em Buenos Aires, com um alto nível de erudição. Augusto de Campos tem outras produções como ensaísta. É o caso do seu “Balanço da Bossa e outras bossas” (1974) que apresenta um estudo sobre

a bossa nova, gênero musical que inovou a música popular no Brasil e se expandiu pelo mundo, além de outros textos sobre a música popular brasileira. Em “Poesia Antipoesia Antropofagia & Cia” (2015, ampliada) encontramos ensaios e críticas sobre a obra de Guimarães Rosa, Oswald de Andrade, Mário Faustino, João Cabral de Melo Neto, Wlademir Dias-Pino e até as polêmicas com Ferreira Gullar, demonstrando os diferentes rumos seguidos pelo concretismo e o neoconcretismo, nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado. Em sua bibliografia ainda temos “Verso Reverso Controverso” (1979), no qual há traduções e introduções às obras de vários escritores; “O anticrítico” (1986); “Linguaviagem” (1987) e “À margem da margem” (1989). A importância do poeta ultrapassa as fronteiras brasileiras. Prova disso foi ter recebido o Prêmio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda 2015, concedido pelo Conselho Nacional da Cultura e das Artes do Chile. Augusto de Campos foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber esse reconhecimento, que lhe foi entregue pela própria presidente do Chile, Michelle Bachelet, no Palácio de la Moneda, sede do governo. A contribuição de Augusto de Campos para a poesia e a cultura brasileira é de um significado impar, não só pelo volume de sua produção e pela sua qualidade, mas pelas possibilidades artísticas que a sua obra suscita, apontando, constantemente, novos caminhos a serem trilhados ou explorados por todos aqueles que vivem a poesia. Comemoremos.

FRANKLIN VALVERDE é poeta, jornalista e professor universitário. Bacharel em Comunicação Social pela PUC-SP, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela USP e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.


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ESCRITA CRIATIVA “EL ENCUENTRO CON LA PROPIA VOZ EN EL TEXTO” 2

“El oficio de la palabra más allá de la pequeña miseria y la pequeña ternura de designar esto o aquello es un acto de amor: crear presencia.” Roberto Juarróz

Me interesa compartir con ustedes algunas cuestiones que hacen a mi mirada sobre la voz en el texto. ¿Desde dónde hablo? Y cuando digo desde dónde hablo, no estoy pretendiendo esbozar un determinado marco teórico. Intento hablar desde mi singularidad. Desde una singularidad que se nutre de lecturas, no para reproducirlas sino para poder seguir pensando, que se nutre de las experiencias que vivo con otros, y que intenta encontrar ciertos silencios en este mundanal ruido. Hace unos días leía una entrevista al filósofo Peter Pal Pelbart, nacido en Hungría que vive hace muchos años en esta ciudad y trabaja en la Pontifícia Universidad Católica de São Paulo (PUC-SP) 2

Decía: “El silencio no consiste necesariamente en oírnos a nosotros mismos. El silencio es la condición de poder oír a los demás, de oír otras voces de la historia, de las muchas tribus que nos rodean. Creo que hoy en día hay un exceso de gregarismo. La voluntad de estar juntos todo el tiempo, con todos a la vez, no permite oír nada en absoluto. La soledad no refiere a la idea romántica que tenemos de oír nuestra voz interna; más bien se trata de una soledad poblada. La soledad puede ser atravesada por muchas voces. Ellas tratan de producir otro ritmo, otra respiración, otra empatía, otros silencios, de modo que algo pueda hacer sentido de nuevo.” ¿Podremos a través de la escritura encontrar otra respiración, otros silencios? Hoy quiero compartir con ustedes, los efectos de algunos encuentros que tuvieron como finalidad promover y habilitar que la escritura cobre vida. A sentir, cada uno de los que participamos en ellos, que escribir es posible y que es posible encontrar nuestros modos de hablar, de estar presentes en lo que decimos.

En este escrito se pondrá el foco en el taller realizado en la Maestría de Educación en la Universidad de Málaga en febrero de 2014. Dicho

taller, también se dictó en la Escuela de Invierno del Doctorado en Educación en la Universidad de Barcelona, a maestrandos en Educación en la Universidad de Valencia, en la maestría de la Universidad en Red de Puebla, México, en el Congreso de Filosofía de la Educación de la Universidad de Río de Janeiro y en FLACSO, Argentina.


19 Me pregunto hace tiempo, quizá porque provengo del ámbito educativo y trato en cada acción que realizo ir a contrapelo de lo formateado, de los modelos, de lo escolar que impregna categorías, lenguajes, cánones, por qué necesitamos acompañar a la palabra escritura del adjetivo creativo. Me pregunto cómo salir del pensamiento binario que dilematiza, divide por ejemplo la escritura académica de la que no lo es, separa mundos, necesita imperiosamente diferenciarse. Hoy voy a compartir con ustedes la experiencia de un taller que denominé “El encuentro con la propia voz en el texto”, que coordiné en varias universidades en España, México y Brasil y que actualmente despliego a partir de encuentros quincenales en mi país con un grupo donde participan psicológos, publicistas y directivos de escuelas. Comienzo mi relato… Febrero de 2014. En un aula de la Universidad de Málaga, totalmente desconocida para mí3, con más de treinta personas, nos reunimos a lo largo de cuatro horas para compartir un taller que denominé: “El encuentro con la propia voz en el texto”. La magia, como un halo poroso y lleno de vida nos cubrió. La música, las voces de escritores, nos dieron una mano para que saquemos el velo. Para que nos encontremos con nuestras palabras. ¿Cómo hacer para generar grietas, agujeros, por donde filtrar-nos, por donde podamos estar presentes? ¿Cómo hacer para que las palabras ajenas, los textos armados y llenos no nos sometan? Las exigencias del mundo académico, o las propias de diversos ámbitos profesionales, muchas veces nos alejan de nuestra propia singularidad. Nos alienan detrás de frases hechas, clichés, que reemplazan los vacíos, los silencios abrumadores pero necesarios para poder decir. “(…) la urgencia es desordenar, poner en apuros las ideas preconcebidas. (…) En re3

lación a las ideas tan asociadas, tan instaladas, que por eso mismo son muy definidas. Es decir que ya no se mueven: ellas reemplazaron la búsqueda del pensamiento por la conservación de sus poderes.” 4 Sabemos que escribir no es fácil. ¿Cómo encontrar una relación más amigable con la propia escritura? ¿Cómo reconocer en ella, su poder de decir, de expresar sentimientos y emociones, de promover pensamientos? Todos pueden escribir, pero para que emerja una escritura propia, se requiere trabajo. Escritura y reescritura para pulir, a la manera de una escultura, la “obra” que se desea realizar. Reescribir el texto para ir aproximándonos a la forma que le corresponde. La escritura tiene su espacio propio y es habitándolo, como podremos encontrarnos con nuestra voz. Se trata de disponernos a “escuchar el mundo” para poder oír esa voz que sólo podrá emerger por fuera de modelos y estereotipos, una voz que muchas veces aparece enmascarada, silenciada, paralizada. El maestro de Simón Bolivar, Simón Rodríguez, ya le advertía a su alumno: “no te confundas con el ruido del mundo”. El proceso de escritura puede constituirse en una experiencia a diferencia de la mera trascripción, en una traza que trabaja sobre las emociones y produce pensamiento. Concebida de este modo, la escritura se convierte en un proceso de des- alienación. La “buena educación”, pareciera que quiere señalarnos un camino a seguir. Sin embargo, crear una escritura donde no nos perdamos, donde nuestra subjetividad se despliegue, implica muchas veces ir a tientas. No a ciegas, pero sí, de manera incierta, explorando, sumergiéndonos en los pliegues de las palabras, agujereando el discurso. “A fuerza de gritar, de saltar, de andar por ahí, llego hasta el sentido” nos dice la escritora Marina Tsevietáia y luego agrega: “Escribo no porque sepa sino

Cabe aclarar que esta ponencia se encuentra narrada en primera persona (coordinadora del Taller, Laura Duschatzky) y entre sus líneas,

aparecen los distintos escritos de Sandra Aparicio González, participante de la Universidad de Málaga, a quien le agradezco su generosidad. 4

Meschonnic Henri: Ética y Política del Traducir. Leviatán, Argentina, 2009

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Marina Tsvietáieva en Rilke, Pasternak, Tsvetaieva Correspondence à trois. É 1926, Gallimard 1983..

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http://www.librosyliteratura.es/cartas-del-verano-de-1926.html#sthash.aGIEvZ9z.dpuf


20 para saber” Quizá, escribir, requiera entonces, una gran valentía. Jugar un riesgo y jugarnos. Recorrer zonas grises y desconocidas.

Entre bambalinas ¿Quieres hacer un taller para la Escuela de Doctorado? - me preguntó un profesor de la Universidad de Barcelona con quien iba a realizar una pasantía en el invierno boreal de 2012. A pesar de que el pedido significaba un importante desafío, le contesté afirmativamente. “Queremos que el taller tenga que ver con la escritura de textos. Sería interesante que compartieras con nosotros tu proceso de escritura del artículo Nadie permanece igual, que relata la experiencia de la enseñanza del castellano a inmigrantes en Barcelona”- me aclaró. No sabía aún cómo lo daría pero no dudé en denominarlo: “El encuentro con la propia voz en el texto”. Sí, se trataba de bucear en mi propia voz para poder transmitir el modo en que había registrado la experiencia. Cómo decir, cómo combinar las palabras, cómo darles ritmo, tonos, intensidades son cuestiones que van de la mano del propio contenido de lo que se dice. Como una pieza musical, nos enlaza o nos deja completamente afuera. Una pregunta me rondaba casi de manera obsesiva: ¿Cómo estar presente en el acto de escribir? Me nutrí de algunas voces de escritores, importantes para mí, que me hablaran de su propia escritura. Leí y leí. Recordé que un filósofo, en una conferencia sobre el misterio de la voz hablada en una escuela de locutores, decía que a pesar de que todos tengamos el mismo aparato fonador, cuerdas vocales, laringe, diafragma, etc., no hay dos voces iguales. Estudio canto hace muchos años. Después de vocalizar, un día escucho decir a mi profesora: “ahí está tu voz.” Pareciera que para que la propia voz surja se requiere trabajo. “La boca, la lengua, las cuerdas vocales, los dientes, ¿cómo esta sencilla colección puede producir una variedad tan vasta de sonidos

específicos, complejos y distintivos que ninguna máquina acústica puede emular?” ¿Cómo pensar el surgimiento de la propia voz en la escritura? La espontaneidad no es un valor a la hora de escribir. Aferrarse a una frase o una palabra simplemente porque ha salido así del alma es por lo menos un riesgo: el alma, a veces, nos dicta obviedades. En Filosofía de la composición, Edgar Alan Poe cuenta que, durante la escritura de su poema El cuervo, decidió que necesitaba un animal parlante para que repitiera un leitmotiv al final de cada estrofa. Y, naturalmente, el primer animal que se le cruzó fue el loro. A veces, conviene sacrificar al loronos dice el escritor. La propia voz surge cuando surge durante el propio proceso de escribir. No se trata de una insistencia sino por el contrario de un soltar, de un dejar, para que entre las palabras cuidadosamente seleccionadas, encontremos nuestra presencia. Reflexioné sobre cómo había abordado el registro de la experiencia de enseñanza a inmigrantes en Barcelona. Antes de escribir, me nutrí de dicha experiencia, me dejé tocar por ella. Miré y miré. Escuché y escuché. Tenía pocas premisas al iniciar dicho proceso. Sabía que no podía ser una voyerista si quería que mi texto hablara. Algo me tenía que pasar a mí para poder escribir con palabras encarnadas. Si leo con placer esta frase, esta historia o esta palabra es porque han sido escritas en el placer (…) y el placer surge cuando me enriquezco, cuando me entrelazo con los otros y la propia experiencia, cuando escribo atravesada por ella. Escribir se convierte entonces en un trabajo artesanal. Un trabajo que implica también retirar escombros, modelos que achican y direccionan una escritura alienada. Necesité encontrar aire alrededor, no para empezar “la” escritura sino “mi” escritura. Nutrirme de voces, tamizarlas para componer un texto polifónico. Dicha experiencia fue sin duda el motor de la escritura. Pero para empezar a escribir, tenía que tomar cierta distancia y entrar en otro mundo, en el de la escritura.

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Dólar, Mladen Una voz y nada más. Bordes Manantial. Argentina, 2007.

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Barthes, Roland: El placer del texto y Lección Inaugural. Siglo Veintiuno editores Argentina, 2003.


21 Sandra me escribe hoy desde Málaga cuando conversamos sobre estos temas. A los que escriben la vida les traspasa. Hay personas a los que la vida simplemente les pasa. No es ni mejor ni peor, quizás tampoco una elección vital, es un “así tiene que ser”, no esperan grandes cosas y no ambicionan trascender. Sin embargo el que escribe, busca inevitablemente perdurar en el tiempo. A éstos la vida les traspasa, les atraviesa. Adoptar la metafísica del tubo, es encarnar un túnel por el que pasan a diario miles de coches a gran velocidad, sin apenas dejar mella en el hormigón, ver la vida pasar como un espectador. La vida, simplemente sucede mientras te sientas a observar (me encontraba sentada en mi sillita de mimbre mientras me robaban la vida). Cuando la vida te traspasa, dejas de ser túnel y eliges cruzar la estación y montar en un tren cuya siguiente parada desconoces, eliges ser el protagonista que traza la travesía. El camino del encuentro con el otro, requiere de una parada obligatoria con uno mismo. Para encontrar el punto convergente entre el que quiere encontrar y el que busca ser encontrado, se necesita estar en primera persona - pienso en el momento del encuentro con Laura, en el propio taller-: encontr-ARTE; proceso de retiro de contaminación interior para poder crear algo. Para ello se requiere de un encuentro de instantes, de almas que se hallan en primera persona, de voluntad para dejarse ver. Proceso de escucha, bajar el volumen de la vida, para oír la voz interior. Ahora bien, cómo comunicar estas cuestiones a los participantes del taller. ¿Cómo encontrar un hilo en el discurso que mostrara el movimiento de mi pensamiento? Postales del Taller En este apartado daré cuenta, junto a las palabras escritas por Sandra a lo largo del transcurso del taller, de ciertos momentos del mismo. De cierto clima generado que permitió disfrutar de la creación. Entre las paredes de un aula universitaria, nuestros 9

cuerpos pudieron moverse al compás de una música, al compás de textos de otros, al compás de nuestra propia melodía desplegada lentamente. Experimentamos tan solo y tanto, instantes donde pudimos saborear algunos indicios de nuestra propia voz. Escribimos. Como dice el escritor David Grossman, “éste es el gran misterio, la gran alquimia de nuestras acciones: en cierto sentido, en cuanto aferramos la lapicera o tecleamos en la computadora, dejamos de ser víctimas indefensas de aquello que nos ha sometido y humillado antes de que empezáramos a escribir (…) Escribimos. El mundo no se cierra sobre nosotros. Qué suerte tenemos. El mundo no se hace cada vez más estrecho.” 9 Se trataba entonces, de generar un ámbito donde pudieran vivenciar el acto de escribir. Escribir no como mera transcripción. Producir alguna traza. Hacer que vuelva el cuerpo en la escritura a través de lo musical, de la presencia de cada uno como sujeto. “No defino a la ética como una responsabilidad social, sino como la búsqueda de un sujeto que se esfuerza por constituirse como sujeto por su actividad (…). Y en este sentido, como ser de lenguaje, este sujeto es inseparablemente ético y poético. La poética es también una ética, ya que un poema es un acto ético, porque transforma al sujeto, aquel que escribe y aquel que lee. (…) La ética, es lo que hace con uno, y con los otros. Es un actuar, es hacer valor. Y el valor no puede ser más que el sujeto, lo que inmediatamente no puede tener más que un sentido doble, hacer de uno mismo un sujeto, hacer que los otros sean sujetos, reconocer a los otros como sujetos. Y sólo hay sujeto si el sujeto es el valor de la vida. Haciendo que aparezcan en el individuo todos los sujetos que lleva él (…) Si la ética es lo que hace sujeto (…) cada individuo es una colección de sujetos. Es lo que decía Montaigne: “Todo hombre lleva en sí mismo la forma entera, de la humana condición.”10 La coherencia mínima de un texto no proviene del discurso sino de la voz. Los rasgos de una voz de-

Grossman, David La palabra contra los depredadores” Discurso pronunciado en el Congreso del pen Club, Nueva York, 2007.

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Meschonnic, Henri: Op Cit.


22 penden de la sintaxis en sentido amplio, es decir, del ritmo. Henri Meschonnic se refiere al ritmo como la organización del movimiento de la palabra. La voz da lugar al texto como tal y le imprime su propio rostro, su singularidad. No hay modelos. Como una voz sonora, una voz escrita se modula solamente en una variedad irreductible de tonos, giros, formas, velocidades. La voz no precede al texto, no existe con anterioridad sino que emerge en el propio tejido que se arma a partir de las múltiples relaciones entre las palabras. “Habitamos en forma constante un universo de voces, somos bombardeados de continuo por voces, tenemos que abrirnos cada día a través de una jungla de voces, y precisamos de toda clase de machetes y brújulas para no perdernos. Están las voces de los otros, las voces de la música, las voces de los medios, nuestra propia voz entremezclada con el montón. Todas estas voces gritan, susurran, lloran, acarician, amenazan, imploran, seducen, ordenan, ruegan, rezan, hipnotizan, confiesan, aterrorizan, declaran…” ¿Cómo ayudar desde la propuesta del taller a que cada uno encuentre su propia brújula, a que cada uno pueda entre las múltiples voces, habitar su propio silencio para que por fin tenga algo para decir? Sin duda, debía pensar múltiples instancias de escritura. Cada una de ellas, fue continuada con un espacio de lectura, donde quien lo deseara podía leer lo escrito. Me importa resaltar algunas características de los momentos de lectura. Acostumbrados a acompañar la letra escrita con ciertas aclaraciones orales, construimos juntos maneras de “acallar” esos preámbulos que les quitaban “espesura” a la escritura. A manera de juego, hacíamos retumbar nuestros pies en el suelo y producir sonidos más fuertes que esas palabras que se colaban y entorpecían. Escuchar los textos de otros, producía efectos de contagio. Emoción, risas, satisfacción. Palabras que nos envolvían y nos cobijaban. Todos presentes en torno a escribir y escucharnos. 12

Dólar, Mladen: Op. Cit.

Primera postal Al iniciar, me importó ofrecer dos estímulos para luego dar lugar al silencio. Dejar, a manera de una caja de resonancias, que las palabras de un texto y la música hicieran lo suyo. Fueron las palabras de Derridá, preguntándose por su propia voz, por un lado y la canción “Una palabra” del cubano Carlos Varela por el otro, las que nos acompañaron en el primer momento. “El canto trae enérgicamente la voz al primer plano, en forma deliberada, a expensas del significado. El canto se toma en serio la distracción de la voz, y le gana la partida al significante, invierte la jerarquía, permitiendo que la voz lleve la delantera, que la voz sea la portadora de aquello que las palabras no logran expresar. Expresión versus significado, expresión más allá del significado, expresión que es más que el significado, y aún así, expresión que no funciona sino en tensión con el significado. La voz aparece como el excedente del significado.” La propuesta era escuchar y luego dejar que los ecos de estos estímulos se relacionaran con las palabras de cada uno, asociándolos con el nombre del taller: “El encuentro con la propia voz en el texto”. Algunos fragmentos: De Jacques Derrida “(…) Durante mi adolescencia (que duró mucho tiempo, hasta los 32 años) empecé a sentir pasión por la escritura, sin escribir; tenía una sensación de vacío: sé que es necesario que escriba, sé que quiero escribir, que tengo cosas qué escribir, pero en el fondo, nada tengo qué decir que no se parezca a algo que ya ha sido dicho. Recuerdo que cuando tenía quince, dieciséis años creía que era proteiforme (palabra que descubrí con Gide y que me gustaba mucho). Podía adquirir cualquier forma, escribir en cualquier tono a sabiendas de que nunca sería realmente el mío; hacía lo que se esperaba de mí o me reflejaba en el espejo que el otro me tendía, y me


23 decía “no puedo escribir nada, porque puedo escribir cualquier cosa”. Así se profundizaba ese vacío que creía reconocer en Artaud. Es como si me dijera: en el fondo no soy nadie, puedo ser quien sea, puedo adoptar cualquier postura, ¿cuál es mi camino, entonces, cuál es mi voz? (…) “13 Una estrofa de la canción: Una palabra” de Carlos Varela Una palabra no dice nada y al mismo tiempo lo esconde todo igual que el viento esconde el agua como las flores que esconden lodo.

Escrito de Sandra luego de escuchar los dos estímulos Mi voz lleva días escondida de mis ganas. Tiembla agachada y frágil temiendo la fecha fijada por la pluma. La presión de mi búsqueda la mata, yo siento que me abandona, ella lo sabe. Iniciamos nuestro juego de escondite, cuando casi voy a descubrirla, vuelve a desvanecerse. Se esconde tras folios en blanco, en sus bordes, en sus manchas. En mis preocupaciones, en mi cajón de los trapos sucios, no disfruta de la opereta diaria, pero no sale de su cobijo, las dos lo sufrimos. Quizás deba dejarla libre, quizás en mis ganas reside su reja, quizás no sea nada, quizás es nada lo que tenga… Segunda Postal La segunda propuesta de escritura fue bucear en la memoria y recordar alguna escena escolar que ya pasado cierto tiempo, perdure en sus memorias. Escrito de Sandra Aún puedo sentir el rimbombante latido de mi co-

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Tercera Postal Tenía plena conciencia que estaba frente a alumnos de una maestría universitaria. ¿Podía aportarles algo para que piensen sobre sus propias escrituras? Frecuentemente, impelidos por normas externas, nuestras escrituras “borran” las otras, las más vitales, las que nos calan. Pero decidimos dejarlas de lado porque no responden a lo pedido. Inclusive, a veces, desconocemos su existencia, quedan recubiertas de varias capas. “Aquí toda la tentativa, su sentido y su placer, consiste en decapar estas capas para volver a encontrar el texto. Se limpian bien las pinturas antiguas para volver a encontrar la vivacidad de los colores.” 14 Con la intención de que pudieran pensar en los textos “académicos” que escriben a diario y relacionarlos con su propia voz, compartí con ellos un fragmento del libro “El Palacio de la Luna” de Paul Auster. Dicho fragmento pone de relieve la experiencia interna que tuvo que vivir un lazarillo, que acompañaba a un hombre paralítico y ciego, para responder a su demanda: “Ayúdame a ver”. ¿Cómo transformó ese pedido externo en algo propio para

Derrida Jacques: Las voces de Artaud, en Entrevista con Èvelyne Grossman, Magazine littéraire núm. 434, 2004, traducción de Dulce María

López Vega. Edición digital de Derrida en castellano. 14

razón y mi bajada descoordinada de las escaleras, solo la barandilla me salvaba de la caída segura. Los rayos de sol se imponían en la puerta de salida de la escuela y solo me permitían ver su silueta. Con mi banda sonora de “tras tras” por los escalones llegué hasta él. Me miró casi con indiferencia y yo asumí mis miedos y me armé de ganas. Con voz temblorosa y tono casi en “off” exhalé mi pregunta; – Profesor, ¿No le caigo bien? La silueta se hizo hombre, la autoridad tapaba el sol, una sonrisa alivió mi temor y clavándome una mirada me contestó. – Sandra, no corras, te vas a cansar de ser mayor.

Meschonnic, Henri: Op Cit.


24 poder satisfacerlo? ¿Qué proceso experimentamos al escribir si queremos estar presentes en nuestros textos? ¿Cómo hacemos para que convivan las exigencias externas y obligatorias con ciertos intersticios donde nuestra voz esté presente? Algunos retazos del Fragmentos del texto de Paul Auster “Para poder hacer lo que Effing me pedía, tuve que aprender a separarme de él. Lo esencial era no sentirse agobiado por sus órdenes, sino transformarlas en algo que yo hacía por gusto. (...) En lugar de hacerlo simplemente para cumplir con una obligación, empecé a considerarlo como un ejercicio espiritual, un método para acostumbrarme a mirar al mundo como si lo descubriera por primera vez. (…) Me costó semanas de duro trabajo simplificar mis frases, aprender a distinguir lo superfluo de lo esencial. Descubrí que cuanto más aire dejara alrededor de una cosa, mejores eran los resultados, porque eso le permitía a Effing hacer el trabajo fundamental: construir una imagen sobre la base de unas cuantas sugerencias, sentir que su mente viajaba hacia las cosas que yo le describía.”15 Escrito de Sandra Tras la lectura del texto de Paul Auster: miedo Alejarse para poder ver, de todo, incluso de uno mismo. ¿Será por esto que mis propias palabras se hallan escondidas? Hasta ahora siempre he tenido que escribir para las exigencias de otro, para una materia, un profesor/a determinado, una actividad concreta. Siempre bajo requerimientos claros y prefijados, es normal entonces que las palabras se nos pierdan cuando no se nos exige algo determinado: En este momento la “exigencia externa” es: ¡Escriban lo que les suscita este texto! (me refiero al texto de Paul Auster) A esta premisa lo que le sucede es una gran sen-

sación de pavor que viene unida a un gran sudor en las manos y una tensión que inmoviliza, ya que nos hallamos perdidos y solos ante el desafío de un folio en blanco que no nos pide algo concreto. ¿Será que mis palabras, esas que pertenecen a mi voz, son unas rebeldes? No responden ante la autoridad y las exigencias y por eso les cuesta tanto rebelarse, empujando a la salida a las “otras palabras” aprendidas culturalmente que no son más que las respuestas que todo el mundo quiere oír. ¿Cómo correr el velo de la ignorancia para poder ver y vernos en lo escrito? Se me hace muy complicado, quizás a escribir se aprenda escribiendo y por ello tengo que seguir enfrentándome a mis miedos, aprendiendo a convivir en la relación incómoda con la palabra. Mimarnos y dejar que los mensajes atraviesen por nuestras vidas y podamos llegar a una relación de cordial respeto, dónde yo soy más yo (libre de exigencias académicas, de protocolos sociales y de expectativas) y ellas (las palabras) sean más ellas para poder cobrar sentido y vida propia en mis escritos. Cuarta Postal Compartí con los participantes la reflexión sobre el proceso de construcción del texto que elaboré y que registra la experiencia de enseñanza del castellano a inmigrantes en Barcelona. No pretendía constituirse en modelo alguno sino sólo en socializar un modo de trabajo. Retrospectivamente, pude identificar distintos momentos y a través de palabras de escritores fui armando un power que diera cuenta de dichas instancias. Algunas diapositivas: Primer momento: Me nutro de la experiencia a narrar y de la experiencia de la lectura Por ser producto de tu historia y de tu experiencia, tu mirada es única. Esa exclusividad y esa auten-

15 Auster, Paul: Fragmento del: El Palacio de la Luna. Compactos, Anagrama, Barcelona, 1996.


25 ticidad es la que te guía durante la escritura, es la que da tono a tu propia voz. (Michèle Petit) Segundo momento: Antes de escribir no escribo Escribir esta bien de no ser porque a veces no escribes, y eso te llena de remordimientos. Yo empiezo a escribir a las seis de la mañana, al menos es lo que he hecho creer a todo el mundo, incluso a mí mismo. Pero a las seis de la mañana estoy en la cama, despierto, con la conciencia intranquila, jurándome que en un cuarto de hora me levanto. Y a las siete sigo en la misma posición. Y a las ocho. Algunos días no me pongo delante del ordenador hasta las nueve o diez. Quiere decir que he estado tres o cuatro horas no escribiendo. Y no hay nada que canse tanto como no escribir. […] A veces te parece que el orden del universo depende de que escribas. Y seguramente, depende .(Juan José Millás en Anticuentos) Tercer momento: Escribir Que la línea no mate la entrelínea. (Clarice Lispector) Quería ser músico. La literatura debe tener ritmo. (José Luis Sanpedro) Escribo para reconquistar los matices. (David Grossman) Toda verdadera palabra tiene algo oculto. (Michèle Petit) Cuarto momento: Leer es reescribir Supongamos la obra escrita: con ella nace el escritor. (Raymundo Mier) La lectura puede, mediante un mecanismo parecido [a la escritura], hacernos un poco más aptos para enunciar nuestras propias palabras, nuestro propio texto, volvernos más autores de nuestra propia vida. (Raymundo Mier) Quinta Postal: Finalizando el taller, me importó que los participantes releyeran sus escritos elaborados durante las cuatro horas. A partir de dicha lectura, les pedí que

eligieran alguno de ellos, o bien lo reescribieran o escribieran otro con el objeto de registrar algunas resonancias de lo vivido. Ecos que quedaran retumbando. Efectos. Posteriormente, caminaron con su escrito y al golpe de una palmada, susurraban a un compañero dichas resonancias. Al golpe de otra palmada, susurraban a otro y así, las palabras fueron circulando. Todos a la vez, dejando escuchar una música. ¡Qué pertinente preguntarnos como lo hace Barthes en el Susurro del lenguaje: “¿Así que bastaría con que habláramos todos a la vez para dejar susurrar a la lengua, de esa rara manera, impregnada de goce (…)? Por supuesto que no, ni hablar: a la escena sonora le faltaría una erótica (en el más amplio sentido del término), el impulso, o el descubrimiento, o el simple acompañamiento de una emoción (…)” Y esa escena, susurrando de a dos treinta personas, sin duda, estaba Escrito de Sandra al terminar el taller Al taller, a los instantes compartidos… Hay instantes en nuestras vidas, que viran de forma brusca el timón de nuestros barcos, para que juntos atraquemos en los mismos puertos. Instantes que emanan una luz propia y que extienden las extremidades de nuestras almas para disolvernos en un abrazo volátil. Una energía que suscita un cambio radical, una fuerza que provoca un movimiento brusco; un movimiento de propulsión. Es la fuerza de impeler, y su consecuencia inmediata es el choque abrupto de nuestras vidas. Y digo abrupto, porque, aunque hayamos sido torneados en distintas formas y sustancias, tras la energía potente del instante, nos fundimos en un mismo estado; líquido y apacible. Eso que algunos denominan amistad, eso que otros llaman amor. De todo ese gran tropel de gente, esa muchedumbre que se mueve en desorden ruidoso, fueron unos pequeños instantes los que presentaron nuestras almas, para finalmente formar parte de ese páramo; ese terreno yermo que son las vidas a solas. Y nos sentimos pletóricos, borrachos de desenfreno hasta que ésta se acaba.


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Olá, Professora Laura Duschatzky,

Me pasé la vida escribiendo: planificaciones, notas a padres o docentes, discursos, cartas, resúmenes, diarios íntimos o de viajes, recetas de cocina. Pero ahora surgía la posibilidad de participar de un taller de escritura que pensé, me ayudaría a buscar las mejores palabras, las más adecuadas, las que no escondan la esencia de mi experiencia de trabajo escolar que desde hacia tiempo quería contar. Y comenzamos. Escuchamos fados para escribir, leimos a Lispector para escribir, danzar con Pina Bauch para escribir. Escribir, reescribir, corregir; trabajar con el texto hasta “secarlo” . Escribir a partir de uno pero para dejar de ser uno. Entonces descubro que la escritura me ayuda a pensar, a procesar las emociones. Mis textos a veces toman un camino propio como si fuese dictado. Es encontrarse con las palabras, elegirlas, mezclarlas y volver sobre ellas para contar lo que se sabe o siente. El espacio del taller nos lleva a jugar con las palabras, danzarlas, dibujarlas ¿saborearlas? Como sucede con la mayoría de las actividades humanas que se aprenden haciendo, todos los lunes tenemos un momento para compartir lo escrito, escuchar los textos de otros: su ritmo y sonoridad; encontrar lo que el texto pide y trabajar en la escritura para seguir escribiendo.

Peço desculpas por escrever em português, mas não saberia como fazê-lo em espanhol. Estou mandando esta mensagem para agradecer pela sua oficina, ministrada no congresso de educação que aconteceu na UERJ em 2014. Apenas agora faria sentido escrever, pois teria que produzir textos como resultado da maravilhosa atividade que tivemos com você.

Pecaría de ingenua si pretendiera que estas pocas horas de Taller cambien una historia. Quizá lo que busco es generar un impacto y como una botella arrojada al mar, que alguien pueda retomar la posta, multiplicar los efectos y sobre todo, profundizarlos. Como la enseñanza, constituirse en un convite, una invitación para quien quiera tomarla, para quien quiera degustarla y saborearla.

Hace unos días, le pedí a una de las participantes del taller que coordino durante el año en mi país que escribiera sobre su experiencia. Lo denominó: Marta escribiendo y dice asi:

Nos une en estos encuentros el placer por el lenguaje como poema. En palabras de Meschonnic, el poema es la transformación de una forma de vida por una forma de lenguaje y la transformación de una forma de lenguaje por una forma de vida, am-

Cuando la energía del instante desaparece por el rigor de la vida, todo se suspende; lo moral, lo físico. Todo queda en el silencio del marasmo. Lo vivido se impregna en la piel como una marca de por vida. Siempre podremos observarla y traer con nosotros esos instantes; un olor, un libro, una palabra, un sentimiento… Durante días nos sentiremos heridos por el escozor de la marca, la confusión de vernos perdidos, de no encontrar nuestro sitio lejos ya de éste, nuestro puerto. Y así una vez más y de forma mágica, resurge como ave fénix la energía y la potencia del “instante”, que sin brújula y con actitud caprichosa nos lleva a la deriva; a su deriva. Siempre en busca de nuevas almas, siempre con hambre de nuevas marcas. Tengan los ojos cerrados y el alma abierta para que yo, desde la humildad, me quede sujeta a vuestra piel, formando parte de esas vuestras marcas. Reflexiones finales Resonancias de los encuentros Hace un año, encontré en mi bandeja de entrada un texto acompañado por una foto de un participante del encuentro que realicé hace dos años en el Congreso de Filosofía de la Educación en Río de Janeiro:

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Brook, Peter: Hilos de tiempo. Siruela. España, 2003.


27 bas inseparablemente, o incluso una invención de vida en y por una invención de lenguaje, o incluso un máximo de intensidad de lenguaje. Vida en el sentido de una vida humana. Nos une en dichos espacios, la escritura como un acto de desprendimiento. Retomando al director de teatro Peter Brook, un acto de desprendimiento, implica un acto de libertad. Dice dicho director: “El desprendimiento es el único momento de libertad. Entonces, el fin vuelve a ser comienzo y la vida tiene la última palabra. En una aldea africana, cuando un narrador llega al final de su cuento, apoya la palma de la mano en el suelo y dice: “Pongo mi historia aquí.” Y agrega: “Para que alguien pueda tomarla algún otro día.” Pongo mi historia aquí.

Bibliografía - Alferi, Pierre: Buscar una frase. Amorrortu, 2006. - Barthes, Roland: El grano de la voz. Siglo Veintiuno editores Argentina, 2005. - Barthes, Roland: El susurro del lenguaje. Paidós, España, 1987. - Barthes, Roland: El placer del texto y Lección Inaugural. Siglo Veintiuno editores Argentina, 2003. - Brook, Peter: Hilos de tiempo. Siruela. España. 2003. - Derridà Jacques: Las voces de Artaud, en Entrevista con Èvelyne Grossman, Magazine littéraire núm. 434, 2004, traducción de Dulce María López Vega. Edición digital de Derrida en castellano. - Dólar, Mladen Una voz y nada más. Bordes Manantial. Argentina, 2007. - Grossman, David La palabra contra los depredadores” Discurso pronunciado en el Congreso del pen Club, Nueva York, 2007. - Meschonnic Henri: Ética y Política del Traducir. Leviatán, Argentina, 2009. - Tavares Gonzalo: Breves notas sobre las conexiones. Editorial Letronómada, Buenos Aires, 2010.

LAURA DUSCHATZKY é mestre em educação na Universidade Nacional de Entre Rios, Argentina, e bacharel em Ciências e professora de Educação da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Assesora diferentes instituições na cidade de Buenos Aires e ministra cursos de capacitação de docentes, presencial e à distância, em várias províncias da Argentina. Autora de Una cita con los maestros, entre outros trabalhos.


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ARTIGO

ESCRITURDIDURA: A LINHA RESISTENTE Irana Gaia

A comparação entre o processo da escrita e o da tecelagem é antiga, delineada por mitos que evocam figuras arquetípicas femininas e que configuram narrativas culturais tramadas em nosso inconsciente, realinhavadas por muitas transformações simbólicas através dos tempos. Essa analogia entre texto e tecido vem do entrelaçamento dos pontos, dos fios que formam a trama. Estes fios, sejam eles feitos com agulhas ou com palavras, são signos que se misturam e constituem a trama têxtil/textual, urdidura de enredos. Texto, etimologicamente, vem do latim tecere, que significa ‘tecer’. O texto seria, portanto, o ‘material tecido’ e, deveras, o artesanato verbal tem muito da tecelagem. Afinal, nada tão próximo da composição de um texto que a composição de uma tapeçaria. Nas palavras de Roland Barthes, Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora,

no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido - nessa textura - o sujeito desfaz-se, como uma aranha que dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (Hypos é o tecido e a teia de aranha). (In: O Prazer do Texto. Lisboa: Edições 70, 1974) Ambos são linguagens que se constroem tal como a teia da aranha, armação de fios que se prendem uns aos outros formando uma trama resistente, apesar da aparência frágil que pode ter - arquitextura do texto/tecido. Partindo dessa característica, é importante notar que o ato de tecer nunca foi uma habilidade puramente técnica, é uma ação que, tanto no campo das ideias quanto da tecelagem, carrega marcas identitárias e articula símbolos, visto que aquele que entrelaça as linhas, mesmo quando opta por arremates provisórios, coloca parte de si na constituição do artefato final.


29 Enquanto a escrita foi, por muito tempo, dominada por homens, o bordado e a tecelagem sempre estiveram fortemente atrelados ao universo feminino. Essas formas de artesanato têxtil, a despeito de terem sido consideradas atividades menores ou meramente decorativas, mantiveram como uma de suas principais características carregar, em si, a voz de muitas mulheres, artífices que, utilizando linhas, agulhas e teares, conseguiram dar materialidade às suas memórias e narrativas. A partir do diálogo com a tradição, o tecido se adelgaça para a implementação do novo, mutação que se esconde na repetição. As vozes se misturam para evidenciar o caráter inegavelmente coletivo dessa ação, bem como sua potencialidade enquanto espaço de criação narrativa. Se hoje observamos o fortalecimento das vozes femininas, temos que ter em mente que nem sempre essa voz foi dada às mulheres. Enquanto homens escreviam os primeiros romances e narravam suas grandes aventuras, a sociedade impôs à mulher a ocupação com o espaço privado, deixando as funções da casa em suas mãos numa tentativa de, com isso, silenciar suas vozes. Não conseguiram. Se a via da escrita não era acessível às mulheres, então outras formas de linguagem precisavam ser criadas e, de fato, elas encontraram caminhos alternativos para fortalecer a construção de seus saberes e subjetividades. As práticas consideradas femininas nem sempre foram feministas, mas sempre possuíram o potencial latente de questionar e reinventar os lugares de poder. Ao dominar a arte da linha e da agulha, as mulheres encontraram no tecido uma interessante superfície para alinhavar suas pluridentidades, fortalecendo-se através do estabelecimento de uma outra forma discursiva. A metalinguagem presente no processo de tecer e destecer, nesse movimento contínuo de construção e desconstrução, é marcada por um caráter transformador, além de desvelar que o ato de tecer, assim como o de escrever, constitui-se como processo de produção da subjetividade. Muitas são as personagens femininas que encontraram na tecelagem e no bordado um espaço propício para narrar suas

histórias, frequentemente, em um gesto de afirmação da identidade, reconhecimento do seu poder de ação e constituição de uma memória coletiva. Marcada por figuras arquetípicas femininas, a tecelagem identifica na mulher a imagem da tecelã da existência, tecedora do destino de cada um. Seja com as Moiras da tradição grega, com a Penélope de Odisseu, com as teias de Aracne, Ariadne - que não nos deixa perder o fio da meada, ou, ainda, com as bordadeiras contemporâneas, que reivindicam um novo lugar de fala e poder para as mulheres, essas manufaturas têxteis sempre tiveram um grande potencial transgressor e revelador. O bordado, como sobreposição agregadora de sentido ao tecido, ocupa um lugar entre a escrita e a oralidade e, ao longo da história, tornou-se um ato feminino de resistência. Um belo exemplo dessa potencialidade são as arpilleras, técnica têxtil chilena, de origem popular, que serviu para que muitas mulheres denunciassem a ditadura de Pinochet em meados dos anos 70 e que, na definição de Violeta Parra, trata-se de “uma linguagem para poder transmitir histórias, sonhos e conceitos”, “são como canções que se pintam”. Essa mesma técnica foi adotada em outros lugares, como ocorreu aqui no Brasil com o MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens, grupo que usa essa mesma técnica como forma de geração de renda e de denúncia das violações sofridas por mulheres, por comunidades inteiras atingidas pela construção de barragens no Brasil. É importante atentar que a tecelagem e o bordado não funcionam exatamente como a literatura. Nestes casos, temos uma linguagem indireta, que pode apresentar o recorte de uma cena, uma mensagem, uma crítica social, denúncia ou, ainda, uma artimanha. Uma figura exemplar disso é Filomela, que, apesar da tentativa de silenciamento quando teve sua língua cortada para que não pudesse denunciar um estupro, encontrou no bordado uma forma de reaver sua voz e denunciar Tereu, rei da Trácia. Dessa maneira, percebemos que não só a linguagem falada ou escrita comunica. Escrever é tecer palavras de modo a formar uma rede em torno das


30 ideias, colocando-as todas numa mesma trama. Da mesma maneira criam-se o tecido e o bordado. Expressão e ação estão aqui entrelaçados e é importante não perder o fio da meada que evidencia a pertinência desse enlace, que nos escancara o quanto a narrativa está muito além da folha de papel. Ela também acontece nas tramas de algodão, com linhas presas firmemente umas às outras, através de um labor manual que explicita, por meio de muitas leituras possíveis, os meios de produção e as diferentes formas de poder. É no avesso que encontramos os indícios do trabalho e é também no avesso que essas intersecções irmanam-se, evidenciado tudo que exige daqueles que se aventuram a fazer alinhavos nessa trama infinita, que também se desfaz e reconstrói na medida que é interpretada por aqueles que dedicam-se a decifrar suas escriturdiduras. Décio Pignatari, na concisão de sua trama poética, arremata essa questão com os seguintes versos:

JANEIRO/FEVEREIRO Calendário Philips 1980 Nem só a cav idade da boca Nem só a língua Nem só os dentes e os lábios fazem a língua Ouça as mãos tecendo a língua e sua linguagem É a língua têxtil O texto que sai das mãos sem palavras


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Philipp Veit, Athena with Penelope weaving, 1833-1836.

IRANA GAIA é bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo, com habilitação em Português e Alemão. Trabalha como assistente no Centro de Referência Haroldo de Campos, da Casa das Rosas, ministra cursos e palestras sobre literatura fantástica e bordado. É bordadeira desde a infância.


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LITERATURA LATINO-AMERICANA

UMA EXPERIÊNCIA DE LEITURA: “PARADISO”, DE LEZAMA LIMA

José Lezama Lima, poeta cubano que nasce em 1910 e morre em 1977, sempre em Cuba, guarda em seus textos um tesouro a que poucos tem tido acesso. É quase redundante falar em textos, poemas, novelas, ensaios e tesouro: todo texto guarda uma chave para o conhecimento da própria vida. É na tentativa de despertar essa vontade de abrir esse tesouro guardado na caixa de pandora, no mal libertador, e libertar a parola, o feitiço poético e seu êxtase imbuído de uma concepção barroca do mundo, que me proponho, de forma muito singela, a lembrar, na summa de sua obra, o romance-poema Paradiso, que neste ano completa 50 anos de publicação. Para nosso deleite, há duas traduções em nossa língua - privilégio de poucos países - publicadas em 2014. Faço questão de citar que ambas - a de Josely Vianna Baptista, da Estação Liberdade, e a de Olga Savary, da Martins Fontes - foram, em minha leitura, deliciosas. A densidade escritural de Lezama permite o estranhamento de quantas traduções forem necessárias para nos aproximarmos de uma fagulha de entendimento do que seria Paradiso, um caminho para a formação poética de seu protagonista José Cemí.

Foram essas traduções que me impulsionaram a buscar em Paradiso um refúgio, uma gruta para penetrar em minhas preocupações, uma aproximação do diabólico e um fazer sentido às minhas buscas escalafandrônicas por esses dias que têm sido muito duros com os progressos. Foi em Lezama que descobri que a poesia pode nos salvar da crueldade, da fome: a poesia nos dá dignidade, nos alimenta - ainda que dela, sempre haverá desejo de seu banquete. E esse banquete lezamiano que é Paradiso, destacado no filme Fresa y chocolate (Tomas Alea, 1994), é pura poesia. Capaz de verter em quase afogamentos escritores como Cortázar, Llosa, Severo Sarduy, José Donoso, Octávio Paz, também Haroldo de Campos e tantos outros que almejam essa travessia oceânica da literatura mundial. Lezama instala-se como um tijolo angular da construção literária, bebe de todas as fontes em sua viagem imóvel, é capaz de descrever a obra de Aleijadinho com o teor imaginativo de quem nunca saiu da terra natal, seguindo quase a risca o ditado de Lao Tsé que diz Sin salir de la puerta/ se conoce el mundo/ sin mirar por la ventana/ se ve el camino del cielo// cuando más lejos se va,/ menos se aprende// Así el sabio/ no


33 da un paso y llega,/ no mira y conoce,/ no actúa y cumple. Assim é Lezama, um poeta que, por definição, é desbravador do desconhecido, das gretas da noite, cheirador do pó dos livros, fumador de tabaco, gordo, de fala asmática, de mãe benevolente, apaixonado pelos erotismos secretos dos corpos humanos, cultivador da androgenia. Agitador cultural na velha Cuba, dono do Palacete na rua Trocadero número 162, perto de inúmeros lupanares, feitor de escolas, dador de cursos órficos, délficos, tecedor do rio Nilo, conhecedor das nuances da lua, comedor da boa mesa criolla, filho da classe da independência cubana, aparentado pela poética de José Martí, admirador de Julian del Casal, primeiro poeta de Cuba. Foi também editor da Orígines e deu conferências que se transformaram em livros, como, por exemplo, La expressión americana, ensaística de nossa identidade, de nossa contínua contra-conquista. Voraz conhecedor de Gongora e do antigo Egito, Lezama é um metaforizador do instante, construtor de imagens do perpétuo porvir americano, isto é, latino-americano, imagem que nos sente sem que compreendemos de todo. Foi o poeta de Paradiso, o conferencista de La expressión Americana, que mesclou todas as referências e se igualou a Jaymes Joyce, Proust ou Guimarães. Conhece o poder de sua palavra, de sua feitiçaria hanabera. Quando o poeta, há 50 anos, publicou Paradiso, pela Ediciones Union,um escândalo se instaurou devido à sequência deliciosa de acontecimentos libidinosos do capítulo 8 em que o autor fornece uma verdadeira graduação dos prazeres e faz com que o membro de Farraluque, principal aventureiro do capítulo, abraçasse por completo as fronteiras da volúpia em conjunto com a elaborada linguagem do barroco. É possível imaginar que, se Lezama fosse mais lido, haveriam aqueles que se revoltariam ainda hoje? Creio que, de forma muito irônica, no seio conservador do Brasil, o livro seria queimado, mas sabemos que o que fica e nos rege é sempre o bem da cultura - o

melhor fica para a posteridade, inclusive quando é pouco lembrado. São nessas voltas, idas e vindas sobre temas sensíveis, tais como a homofobia e o machismo institucionalizados do regime de Fidel, que Lezama constrói uma poética da resistência a partir da cultura, do hermetismo e também do isolamento a que, de certa forma, estava submetido em Havana, porém trocava cartas com os maiores ao redor do mundo. Na sua Havana esteve legado a um pequeno cargo, subordinado a outro grande escritor Alejo Carpentier. Escrevo sobre a experiência da leitura de Paradiso e o que faço aqui não é novidade. Muitos outros escritores desenvolveram a mesma espécie de doença ou delírio quando citaram Lezama Lima. Sua tinta tem o poder de fisgar alguns de seus leitores, de nos retirar de um aquário e nos transladar a um rio imenso de vida, de volúpia, cuja água não é transparente, mas sim composta de densas letras, palavras e signos. Esse rio deságua no mar da poesia e o peixe fisgado nada tanto em água doce como em salgada - entramos num mar solitário de novidades e também de perplexidades. Ler Lezama foi um modo, ou melhor, um processo para uma observação do mundo mais atenta. A sutileza do barroco consiste em nos maravilhar. Assim, nos acostumamos e aceitamos que nem tudo será compreendido. Porém, em cada uma dessas não-compreensões haverá uma quina de sabedoria capaz de espelhar um caminho possível para a salvação, que nesse caso é ser englobado pela perdição das letras. Tudo parece ser cheio de novidades: as esquinas são sendas disformes e coalhadas pelo tempo e o coalhar fermenta um licor que beberemos quando tivermos coragem. Penso em Lezama como um Don Quijote que escolheu não sair em busca de aventuras; todas elas eram vividas dentro dele, no íntimo da penumbra da noite, no quarto com a fumaça de seu cigar e seu arsenal de fumigações para combater sua asma brônquica. Foi por Lezama Lima que cheguei a outros pens-


34 amentos, sem o qual creio que não teria chegado. Lezama é um caminho, como naquele provérbio presente no I ching, apontamos a lua, mas muitos só veem o dedo apontador, jamais o objeto apontado. É tentando encontrar o que aponta Lezama que cheguei a Maria Zambrano, a Severo Sarduy, de alguma maneira, pude melhor compreender minhas próprias leituras de Proust, também a função e formação de um escritor que escolhe seu próprio caminho, mesmo que seja uma Ilha, mas a sua Ilha. O trabalho da escritura frente ao mundo, esse bosque imenso de atributos tão variáveis e contraditórios, é, e não pode deixar de ser, uma tentativa. Como humanos somos fragilizados frente aos mistérios que nos rondam e o que vai além desse mistério é tão somente representação. Somos atores interpretando muito bem os personagens cujos nomes recebemos ao nascermos. Fomos registrados com esse nome, acatamos todas ou quase todas as regras nos nomes e, na chegada, invenção, descoberta ou encobrimento da América aceitamos a nós como nomeados: Brasil - Colônia do Império Português, mas nunca completamente, nunca sem entornar ao vinho esses nomes. Esse nós, Estados latino-americanos, fragmentos de uma única e imensa nação, esse nosso paradeiro irreprimível, colorido, cheio de cantos, orações, deuses da natureza, pedras esculpidas formando uma arquitetura indígena, ocas, línguas e povos, peles que transitam matizes cromáticas, de todas as cores, esses ritos e mitos, lendas, histórias e esconjuros são uma identidade cujo barroco em cada milímetro está presente. Desde o banco de madeira entalhada do Senado Federal Brasileiro às pedras irregulares que dançam e cantal, tal qual Itaipu, aos ídolos e cantores da terra. Essa complexidade é precisa em Paradiso, no romance veremos a construção de um mundo a partir da formação poética de um jovem de seus 5 até 20 e poucos anos. A vida em seu entorno, como numa crônica de época, as descobertas do sexo, de seu corpo, das leituras, as conversas com os amigos, o nascimento da amizade e eros. Ler Paradiso nos faz refletir como a literatura nos transmite um conhecimento de mundo que, por exemplo, a ciência política

ou a sociologia apenas tentar transmitir, para alguns a literatura é o pão, a água e a própria vida, o mundo e a criação do próprio mundo. Esse carácter hiperbólico do conhecimento literário é encontrado em cada salto de linha do desafio que é Paradiso, tanto é que ainda estou me recuperando do meu afogamento, sei que haverá sequelas e o mais difícil nisso é estar encantado com a beleza dos signos e da cultura numa mundo cada vez mais hostil aos sentires íntimos. Sou daqueles que se sentem, com a literatura, mais perto do real, da imaculada, impura e compreensão do indizível, nesses momentos só a imaginação, as cores, a psicodelia, o canto de todos os cantos, aqueles que brotam no âmago e são guturais, a dança descarpada, os neologismos, a busca perpétua pelo dizer que definitivamente não se pode dizer, em Paradiso há disso, segredos de seus personagens são revelados, dos mais levianos aos mais lascivos. Não darei exemplos - se os desse me complicaria numa caixa chinesa e perderia o pouco foco que tenho. Essa prosa poderia se alongar por muitas páginas, mas me parece que há um chamado - buscar alguma luz nas páginas de Paradiso. Assim vou, assim também convido, como tantos outros convidaram a partilhar do pão lezamiano, esse pão acabrunhado pela inquieta vontade de conhecer o mundo pela poesia, pela narrativa infinita que todos nós carregamos em nossos poros, em sermos todos poetas na vida e também seres poetizáveis.

BRUNO ELIEZER MELO MARTINS é bacharel em Letras - Artes e Mediação Cultural pela UNILA. Poeta, escritor e tradutor.


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CRÍTICA

RARO FRÊMITO, POESIA DE MAURA VOLTARELLI Carlos Eduardo Marcos Bonfá


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Atualmente, poesia sem um diálogo francamente aberto com a(s) tradição(ões) dificilmente se sustentará como (boa) poesia. E com a expressão “francamente aberto” não quero dizer que o diálogo precisa ser explícito como citações textuais ou referências diretas, mas precisa ter “consciência” (poética) de que existe uma tradição (aberta) com a qual é preciso lidar. A poesia de Maura Voltarelli é “consciente” da importância desse diálogo, equilibrando as referências mais diretas e as mais indiretas, reatualizando a tradição com seus elementos próprios de singularidade. Tal consciência pode ser poeticamente sintetizada na seguinte estrofe do poema “Drapé Tombé”: Sutis são os ardis do passado a insistir em ser presente. Este ser persistente que volta, essa memória sempre intermitente., primeiro poema encontrado em sua obra Nymphé e outros Poemas (Editora Medita, 2014, 80 p.). Essa obra, assim posto, não encara o passado como arquivo de escritório, mas como uma instância sempre revitalizada, agregando um sentido ao contemporâneo deslocado do conceito pejorativo de anacronismo – deslocamento realizado mais atualmente por Giorgio Agamben (1942 - ) e, anteriormente, já por Charles Baudelaire (1821- 1867) em relação à ideia de modernidade.

O sentido do contemporâneo em diálogo com o passado é, em Maura Voltarelli, uma estratégia de convivência crítica com uma espécie de déficit da significação simbólica da existência (deuses vilipendiados é uma metáfora da poeta) que a obra parece querer “denunciar”, como se aquela macrocefalia simbólica com a qual Alcir Pécora acusa o mundo contemporâneo (em entrevistas e artigos como “O Inconfessável. Escrever não é Preciso”) fosse exatamente a causa da apatia de efeito e, assim, da possibilidade rara e rala dessa significação: a “banalização” ou expansão quase absoluta do simbólico (haja vista a articulação egonarrativa das redes sociais, por exemplo) desembocou em sua apatia ou em seu déficit de densidade de efeito como dilema do contemporâneo, nutrido a partir de uma espécie de paradoxo. Essa possível condição contemporânea é, como parece na obra de Maura Voltarelli, “decadente” (tanto lixo), isto é, entulhada de “restos” dispersos que não conduzem a uma significação substancial do ser humano e de seu estar no mundo, mas é mergulhando nela que é possível (ao menos para quem puder, isto é, para quem realmente buscar) insistir na imagem sobrevivente, uma outra voz (utilizando uma expressão de Octavio Paz) capaz de ressignificar o mundo através de uma conspiração poética para reconfigurar uma relação mais simbolicamente densa e autêntica com o imaginário (imagens) contemporâneo. Na poesia de Maura Voltarelli, a figura-cerne de


37 força reconfiguradora é a da ninfa (relacionada com o próprio título da obra), uma figura por si já possuidora de um percurso histórico de renascimento e decadência, uma figura ou imagem sobrevivente, um fantasma de memória sempre intermitente, fascinante, inquietante e muitas vezes carregado de erotismo. No poema propriamente intitulado “Nymphé”, há desde o início abertura a uma intertextualidade importante em relação ao percurso histórico-literário de tal figura: a intertextualidade com a passante fatal de clave baudelairiana-benjaminiana que, juntamente com a epígrafe de Vladimir Nabokov (da obra Lolita) no início da obra, vinculam a ninfa de Maura Voltarelli a uma aura moderno-contemporânea de erotismo. Paradoxalmente a “aura” própria da desauratização – preces de nada que oramos para as imagens contemporâneas, que nos surgem embaçadas. Eis as três primeiras estrofes do poema supracitado: Essa brisa imaginária nela a vibrar a destacar do restante suas vestes seus olhares de um fascinar jamais esquecido ou mesmo vencido. Desejosa de turvar naquele efêmero instante em que passa deixando um vento seco para trás. Eis que surge de um tempo outro distante e próximo a buscar aquele que a receba que lhe faça viver por inteira. No poema “Corpórea”, a ninfa encarna uma mulher em estado de metamorfose, fantasmagorizando a própria imagem especular após perceber o próprio corpo presentificado, porém hesitante no complexo jogo da disposição espaço-temporal, em tensão, em latência de trânsito, Vênus na água do espelho, que em poemas seguintes renascerá do mar menstrual, fazendo o trânsito das imagens nínficas criar uma vertigem entre um “ela(s)” metamórfica(s) e

um “eu” empírico mascarado (M. de Maura como K. de Kafka), realizando uma passagem entre o imaginário e a interferência do (no) real, poeticamente transfigurado (poexistência é um conceito poético da autora, extraído do título de um dos poemas). Transcrevo abaixo o poema “Corpórea”: Ela descobria seu corpo sentada diante do espelho. Pelas mãos arrastadas via escorrer o tempo em marcas invisíveis acumuladas. Procurava aquele sinal hesitante, algum resto de fratura de membro. Aproximava os olhares para ver melhor, imitando gestos nos lugares de antes e talvez o fossem amanhã. Para sentir os tantos dos seus amores ela encontrava o cheiro daqueles lugares, daqueles olhares que preferia nem encontrar. E tampava os olhos com uma mecha de cabelo, o cabelo agora colorido por várias cores. Sem querer ela queria voltar, nem que fosse por um instante. E abria cada vez mais o peito, as pernas esticadas para lá. Como uma mulher cortada ao meio, ela ainda procurava no seu um outro olhar. E embaçava o espelho, dançando sem sair do lugar. A partir desse momento, os próximos poemas seguirão o rastro dessa vertigem, perfazendo um trajeto de situações ora mais concreto-cotidianas e sentimentais/emocionais (desviando-se do paradigma “cabralo-cerebrino” que se pretende mais “ortodoxo” que existe em grande parte do cenário da poesia brasileira contemporânea, porém se desviando sem perder de vista o cuidado com a “construção” das imagens) ora mais abstratas e simbólicas, tencionando criar vias de comunicação entre elas que possa sustentar toda a cadeia de relações do último poema, intitulado “A Dança”, no qual o percurso imagético nínfico assume, no fim, uma pose dúbia, apolínea e báquico-salomaica ao mesmo tempo, da


38 presentificação no instante da outra voz que liga o “eu”, o outro do “eu”, o outro e o outro do outro (no caso, o devir-mulher como reunião de forças, direcionadas para a ressignificação do mundo?) em um só raro frêmito revelador, também, do percurso histórico de renascimento e decadência da figura-cerne de força reconfiguradora dessa obra: [...] por um instante dança para a vida por outro corre para a morte e começa o nascimento da sua tragédia. Como eterno retorno, como estrutura circular, esse nascimento trágico retoma o primeiro poema, isto é, o início da obra.

CARLOS EDUARDO MARCOS BONFÁ é pós-doutorando em Estudos Literários pela UNESP e colaborador da revista “Mallarmargens”.


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CRÍTICA LITERÁRIA

AROMA AMARÍSSIMO Silvana Pierro O livro de Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho amargo, irresistivelmente nos remete ao clichê “Nos pequenos frascos, os melhores perfumes”. Mas essa obra está longe de clichês, mesmo que Bartolomeu tenha usado elementos muito familiares que povoam nosso imaginário coletivo para nos lançar fragmentos autobiográficos. O autor, por meio de um narrador menino, alterna memórias da mãe que morreu com as da madrasta que tomou seu lugar. E há personagem mais popular do que uma madrasta? Os contos tradicionais trazem um sem-número delas. “A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos.” (p. 9) Eis o vermelho amargo do título. Em vez da vermelha maçã, um tomate maduro, mas igualmente nocivo. “Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro, como se degolasse cada um de nós.” (p. 9) A mãe, ao contrário, “com muito afago, fatiava o tomate em cruz (...). Cortados em cruzes eles se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa. E barqueiros eram as sementes, vestidas de resina de limo e brilho. Pousado sobre a língua, o pequeno barco suscitava um gosto de palavra por dizer-se” (p. 14-15). É assim, por meio da linguagem, que o escritor opõe a fartura do amor maternal à mesquinharia do ciúme da esposa do pai com sua fatia de tomate tão transparente que

se podia vislumbrar o branco do arroz abaixo dela. A cor vermelha está também na moldura do espelho (espelho, espelho meu) e na sombrinha da vizinha, mas amargo só o tomate da mulher do pai. “Havia na cidade a madrasta, a faca, o tomate e o fantasma. A mãe morta (...) ressurgia encarnada em nós, sua prolongada herança. Impossível para a madrasta assassinar o fantasma, que inaugurava seu ciúme, sem passar por nós, engolidores do seu ódio.” (p. 15-16) Bartolomeu ressignifica os lugares-comuns, renova o conto de fadas. É pela esmerada escolha de palavras que seu personagem não é mais uma madrasta antagonista de princesa. Não há final feliz. Um a um, os filhos, que faziam o fantasma não morrer, vão deixando o caminho livre para a substituta reinar absoluta em seu castelo decadente, ao lado de seu rei ébrio. E o menino que narra também parte para outro castelo, para o mundo, mas se salva pelo amor aos livros, às palavras e às lembranças. Este pequeno livro é sim como o frasquinho que carrega o perfume mais sofisticado. Vale por suas belíssimas borrifadas linguísticas que este curto texto tentou dar degustação.

SILVANA PIERRO é jornalista e escritora, escreveu este texto na oficina de crítica literária e resenha na Casa das Rosas.


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OFICINA

CRÍTICA LITERÁRIA “COMO CONVERSAR COM UM FASCISTA”

Alexandre Caetano É possível afirmar que nesta obra a professora de filosofia usa seu potencial didático para dialogar com aqueles que não são seus alunos. Com uma linguagem clara Tiburi aborda temas correntes sob a ótica da filosofia, porém não utiliza estratagemas sofisticados para a produção de uma obra hermética.

que costumam ter pouco ou nenhum contato com a percepção crítica da filosofia. Ao que parece, o ódio em nossa sociedade está capilarizado, servindo de estrutura para o pensamento fascista de forma semelhante, e relacionada, às estruturas de poder descritas por Foucaut.

A ironia não se restringe ao título. Mencionando, sem citar nomes, políticos e jornalistas contemporâneos, conhecidos pelas falas agressivas, o fascista do livro não é aquele adepto do movimento italiano da década de 1930, mas o cidadão de hoje, que extravasa seu ódio às diferenças através de palavras ou até mesmo agressões.

Talvez a forma como a autora descreve o amor como antagonismo a este ódio incomode aqueles que busquem uma análise filosófica mais aprofundada, entretanto cabe ressaltar que enquanto o ódio é uniforme, a ideia de amor é múltipla, servindo tanto para uma análise simplista aos que estão mais habituados com a filosofia, quanto para uma interpretação eficiente aos olhares leigos.

Pouco a pouco a autora mostra alguns fatos evidentes e outros que, de tão naturalizados, acabam passando despercebidos diante dos olhos daqueles

ALEXANDRE CAETANO é sociólgo e blogueiro, escreveu este texto para a oficina de crítica literária e resenha da Casa das Rosas.


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CRÍTICA LITERÁRIA

A AUTOBIOGRAFIA DE TODOS OS HEBREUS, INCLUSO EU Marcio Branquinho por Gertrude Stein Marcio Branquinho tem um fraco por objetos quebráveis, indefeso diante da loucura, tornou-se um especialista em grandes conflitos, onde as guerras estão nele mesmo. Antes de resolver escrever este livro “A autobiografia de todos os Hebreus, incluso Eu”, na casa dos seus vinte e cinco anos, muitas vezes me dizia, que sentava com mulheres sobretudo: neuróticas, suicidas, clementes, aventureiras, membros itinerários de sua família. Ele as acompanhava, acompanhava, sempre com olhares rápidos e esquivos feito um bicho do mato, porém sempre dizia: “escutar e nada falar é cortesia dos reis, pois todo o resto é difícil”. Um dia o retruquei: “vejo que não gosta de romances com finais felizes?” Branquinho não me olhou e bradou: “a realidade devia ser proibida, pois não se trata de qualquer tipo de sentimento. Enfim, não estou nem um pouco a fim de um exame de filosofia hoje, e foi embora”. Sobre a poética, as vírgulas são desnecessárias, pois a história da humanidade é uma literatura sem interrupções, não livrando o leitor da ansiedade,

impedindo-o assim de respirar. Assim, também, me tornei cúmplice da narração e o final da prosa vai ser decidido por quem ficar vivo. Cenários europeus, condomínios fechados, praias idílicas, ausência de consciência social para os que quiserem, romances água-com-açúcar num mercado literário e frenético de antologia de ausências. Não devemos confundir com criação literária, e quando o mesmo fala dos fluxos das redes na história de todos os hebreus de Caim a Perseu, tudo sai escuro e opaco. Cada página é como uma pintura com várias camadas de tintas. Não sei se tudo o que conta é verdade ou mentira, mas se procuras romances cor de rosa, aqui fica uma dica: Fuja, pois já me tornei prisioneira!

MARCIO BRANQUINHO é artista plástico e escritor, aluno do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe) e da Cooperativa de Invenção. Este texto foi redigido em oficina de crítica literária e resenha na Casa das Rosas.


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CRÍTICA LITERÁRIA

“UM, DOIS E JÁ” Felipe Lários A jovem escritora e roteirista uruguaia Inés Bortagaray faz sua estreia em terras brasileiras com o romance “Um dois e já” (Cosac Naify, 2014) e capta a atenção do leitor logo nas primeiras frases. A narrativa é curta, tem cerca de 90 páginas ou o tempo de uma viagem de carro, e é feita por uma menina que viaja com seus pais e seus três irmãos para a praia. O imediatismo infantil é estilo marcante do texto desde o título, podendo ser percebido ao longo de toda a narrativa. Os períodos curtos e a fluida troca de assuntos denotam a perspectiva de uma criança e é através desta perspectiva que o leitor toma conhecimento dos fatos e do estado de ânimo das personagens. O livro, contudo, nada tem de pueril. Estamos em plena ditadura militar no Uruguai e o clima no carro é tenso. E não só pela disputa entre os quatro irmãos pelos lugares da janela, mas sobretudo pela voz do locutor do rádio que é “nervosa” e “faz estremecer” e que fala “como se todas as coisas fossem derradeiras, como que anunciando um estado

de permanente alerta”. Não sabemos quais são as noticias trazidas pelo locutor do rádio, mas as constantes trocas de olhares dos pais e o estado de espírito que toma conta da narradora-personagem nos faz crer que os tempos não são bons. O grande mérito de Bortagaray é conciliar o clima pesado, que nunca deixa de estar presente, com a leveza que a infância e uma viagem de férias sugerem. A parada para o xixi, o vômito no banco do carro, a empanada compartilhada, tudo isso está presente. Entretanto, estes itens vêm acompanhados das incertezas que os períodos políticos conturbados e a infância têm com relação ao que os espera ao final da viagem. Em certo momento a narradora confessa: “não consigo imaginar nada sobre o futuro”. E a pergunta que fica é: Quem de nós consegue? FELIPE LÁRIOS é escritor e aluno do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe). Este texto resultou de uma oficina de crítica e resenha na Casa das Rosas.


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OFICINA POEMA

CLARA SZIFER O Poeta mergulha no poço das palavras para emergir de si e buscar o Outro palavra lavra apalavra o poeta garimpa esculpe e garante que sofreu

CLARA SZNIFER é poeta e este texto foi cirado a partir do workshop realizado pelo Centro de Apoio ao Escritor na Oficina Cultural Pagú, em Santos.


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OFICINA POEMA

EUNICE TOMÉ

Sabes que dor é essa? Sentir que na cela de uma cadeia Sem poesia e imaginação, Alguém clama por um fio de luz, Num sábado distante. Agora sabes, delirante.

EUNICE TOMÉ é poeta e produziu este texto a partir do workshop realizado pelo Centro de Apoio ao Escritor na Oficina Cultural Pagú, em Santos.


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OFICINA POEMA

NARA IACHAN

ser tão ser

pente

assim ser

ser afim

fume per

per feito pra

mim

NARA IACHAN é economista por formação, empreendedora por profissão e escritora por karma. Este poema foi escrita em oficina de criação na Casa das Rosas.


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