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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Geraldo Alckmin | Governador Marcelo Mattos Araujo | Secretário de Estado da Cultura Renata Vieira da Motta | Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico
POIESIS – INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Corrêa | Diretor Administrativo Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo Dirceu Rodrigues | Imprensa Angela Kina | Design CASA DAS ROSAS – ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA Frederico Barbosa | Diretor Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenadora Administrativa Márcia Kina | Supervisora Administrativa Fabiano da Anunciação | Assistente Administrativo Neide Silva | Copeira Daniel Moreira | Supervisor Cultural Thaís Feitosa | Técnica Cultural Débora Nazari | Comunicação Annelise Csapo / Luis Felipe Lucena / Kryslei Cipriano Goes | Educativo Waltemir Dantas / Jackson Oliveira / Beto Boing | Produção Marcelo Macedo | Zelador CENTRO DE REFERÊNCIA HAROLDO DE CAMPOS Simone Homem de Mello | Coordenadora Rahile Escaleira | Bibliotecária Mariana Manfredini | Assistente de Organização e Pesquisa Leonice Alves | Assistente de Biblioteca CENTRO DE APOIO AO ESCRITOR Reynaldo Damazio | Coordenador Maria José Coelho | Assistente Mayne Benedetto | Assistente de Biblioteca
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GRAFIAS – revista do centro de apoio ao escritor Diretor: Frederico Barbosa Editor: Reynaldo Damazio Assistentes: Maria José Coelho / Mayne Benedetto Produção: Carmem Beatriz Henrique de Paula Design: Angela Kina / Assistência de Design: Flávio Cescato Revisão: Centro de Apoio ao Escritor Imprensa: Dirceu Rodrigues / Débora Nazari ANO I – N° 1 – Dezembro de 2013
sumário 9
discurso em frankfurt 2013 luiz ruffato
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joão alexandre e a América Latina franklin valverde
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escritores que estudam ricardo lísias
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a duras penas tarso de melo
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conceição evaristo – escrevendo a vivência simone caputo gomes e cláudia maria fernandes corrêa
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uma maneira de lidar com a linguagem heitor ferraz
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poesia guilherme gontijo flores
editorial A proposta da revista eletrônica GRAFIAS é criar um espaço para a reflexão sobre o ofício do escritor, seu papel na sociedade, o processo criativo, as relações com o mercado e os leitores, enfim, os principais desafios como artista e profissional. Essas são algumas das questões que o Centro de Apoio ao Escritor (CAE), da Casa das Rosas, enfrenta diariamente em oficinas, palestras, cursos, fóruns, grupos de leitura e estudos, recitais e no contato direto ou virtual com o público. A meta do CAE é atuar na formação tanto de leitores como de escritores, democraticamente, acreditando que a literatura pode e deve ser também um bem de primeira necessidade. GRAFIAS não é uma revista acadêmica, mas pretende ser um veículo dinâmico e provocador de debate, criatividade, crítica e transformação. Neste primeiro número, temos a colaboração de poetas, escritores e professores que são também parceiros do CAE e da Casa das Rosas e que expõem aqui um pouco de sua inquietação com as palavras e sua luta por interferir na realidade.
reynaldo damazio
DISCURSO EM
FRANKFURT 2013
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luiz ruffato O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir –, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, jornalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania – moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade –, a maior parte dos brasileiros
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sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não-pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém... Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – o semelhante torna-se o inimigo. A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos. Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e
adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução. O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.
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A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior. Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas tratase do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
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Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis. Nós somos um país paradoxal. Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão-de-obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos... Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida? Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.
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Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles eram muitos cavalos (2001, Prêmio APCA e Prêmio Machado de Assis), De mim já nem se lembra (2006), Estive em Lisboa e lembrei de você (2009) e do projeto Inferno Provisório, composto por cinco volumes: Mamma, son tanto felice (2005, Prêmio APCA), O mundo inimigo (2005, Prêmio APCA), Vista parcial da noite (2006, Prêmio Jabuti), O livro das impossibilidades (2008) e Domingos sem Deus (2011, Prêmio Casa de las Américas). Seus livros estão publicados na Alemanha, França, Itália, Portugal, Argentina, Colômbia, México e Cuba.
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA E A
AMÉRICA LATINA franklin valverde
João Alexandre Barbosa (1937-2006) foi um dos grandes intelectuais brasileiros do século XX. Nascido em Pernambuco, migrou para São Paulo nos anos sessenta - após ser perseguido pelo regime militar. Tornou-se professor na Universidade de São Paulo (USP), onde chegou a professor titular do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Seu trabalho ensaístico, desenvolvido concomitantemente à docência, esbanjava erudição e precisão crítica. Entre seus estudos destacamos aqueles feitos sobre a obra de Augusto Meyer (1902-1970), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Murilo Mendes (1901-1975). Na USP também foi diretor da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), pró-reitor de Cultura e Extensão e diretor da Edusp, a editora da universidade, que sob a sua gestão se modernizou e se tornou um exemplo a ser seguido pelas editoras universitárias. Depois de aposentado na universidade, colaborou na revista Cult escrevendo para as colunas “Entre Livros” e “Biblioteca Imaginária”, e no jornal Gazeta Mercantil, comandando a seção “Letras Arquivadas”. No final dos anos oitenta João Alexandre Barbosa deu uma entrevista para a seção “Momento Literário” do Radio Hispanidad, programa de música latina e informações culturais, apresentado na Brasil 2000 FM pelo poeta e jornalista Franklin Valverde. Reproduzimos aqui a entrevista como uma homenagem ao professor João Alexandre Barbosa.
Franklin Valverde: Como o senhor vê a Literatura Comparada na América Latina? João Alexandre Barbosa: O estudo da Literatura Comparada na América Latina é quase que o destino natural dos estudos literários latinoamericanos. Dada a nossa formação, o estatuto colonial que nós tivemos e continuamos tendo, por razões sócios políticas, é evidente que o estudo da literatura latino-americana não pode ser feito sem referência à literatura de países matrizes. A influência francesa foi muito grande durante um
certo período. Nesse sentido, os historiadores, os estudiosos da literatura latino-americana, desde o fim do século XIX, insistem, insistiram e vêm insistindo, nessa necessidade de transformar, na verdade, o estudo de História Literária em estudo de Literatura Comparada. Os grandes autores de História Literária latino-americana (basta pensar o caso de um Alfonso Reyes, por exemplo, no México) são todos ou foram todos estudiosos também de outras literaturas. O resultado disso é que o estudo da História Literária na América Latina, seja ela estudo da história brasileira, seja
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estudo da literatura hispano-americana, é sempre acompanhado de autores que se preocupam de forma muito mais ampla com tópicos, temas e motivos que emigraram de literaturas matrizes e que foram adaptadas ao solo latino-americano. Um exemplo muito interessante a esse respeito está na Formação da literatura brasileira, de Antônio Cândido, quando afirma, para mim de forma realmente bastante interessante, que o estudo da literatura brasileira tem que ser obrigatoriamente o estudo da literatura comparada. É impossível estudar literatura brasileira, digamos do século XVII, sem pensar em todo contexto europeu do qual essa literatura faz parte. Na verdade, tratávamos de dar um cunho brasileiro, um cunho latino-americano a temas e motivos europeus. A técnica, as formas, os processos literários eram processos europeus. Processos de literaturas cultas que aqui servem para transmissão de temas nativos, temas nacionais. Eu creio que o estudo, um dos ramos, um dos caminhos mais férteis do estudo da literatura comparada hoje na América Latina será, sem dúvida, esse campo latino-americano.
Depois do boom do romance hispano-americano, o Brasil tomou consciência de que tem que participar dessa reflexão conjunta sobre a América Latina.
Franklin Valverde: Como andam as relações entre a literatura brasileira e a literatura hispano-americana? João Alexandre Barbosa: Isso faz parte do folclore dos estudos latino-americanos. Quer dizer, na verdade, o brasileiro não se sente latino-americano, só a partir de um determinado momento, muito recente, é que o Brasil começou a tomar consciência de que faz parte da América Latina. O Brasil sempre se pensou de um lado Brasil e do outro lado os países hispano-americanos, que eram chamados latino-americanos, como se nós não fossemos latino-americanos. Isso, em grande parte, vem a meu ver porque nós fomos um império, aparentemente pacífico durante muito tempo, e as repúblicas hispano-americanas, não. Diferiam de nós, inclusive, pela forma de governo. No Brasil houve casos em que estudiosos, desde o século passado [séc. XIX], se preocuparam muito com a América Latina, com a América Hispânica e mesmo com o conceito da América Latina. Um grande exemplo disso é o Silvio Romero, que tem um livro chamado América Latina. Outro exemplo é o José Veríssimo, que escreveu constantemente sobre a América Latina. Eu mesmo reuni uns ensaios do Zé Veríssimo sobre a América Latina, num volume que a Brasiliense publicou, que se chama exatamente: Cultura, literatura e política na América Latina. Depois do boom do romance hispano-americano, o Brasil tomou consciência de que tem que participar dessa reflexão conjunta sobre a América Latina. No final, eu creio que a razão é muito mais política, social e econômica. No dia em que nós tivermos uma consciência política mais acentuada, mais intensa, nós teremos, certamente, a consciência de que existe uma literatura latino-americana bastante intensa e que vai dar muito o que falar ainda no continente europeu e norte-americano.
ESCRITORES QUE ESTUDAM ricardo lísias Nos últimos anos as oficinas literárias proliferaram no Brasil. Com modelos e durações diferentes, funcionam às vezes atreladas a uma instituição, outras se apóiam apenas no nome do escritor ministrante, algumas vinculam-se a publicações e editoras e todas, guardadas as proporções, costumam fazer sucesso de público. Os motivos dessa popularidade são inúmeros, indo da recente e ainda incompleta profissionalização do trabalho de escritor no Brasil à dimensão de espetáculo que a literatura assumiu entre nós, passando pela mera necessidade de expressão artística inerente ao ser humano.
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Por uma questão de qualidade de vida, acho que todo mundo deveria praticar algum tipo de arte e na medida do possível e do interesse, aprofundarse. Só por isso acho fundamental a existência das oficinas literárias. No entanto, ainda existe no Brasil um preconceito no que toca à formação do escritor. Resumindo um lugar comum, muita gente acredita que não se pode ensinar o “talento” necessário para a criação literária. Pretendo aqui compreender porque uma afirmação como essa é tão comum. Ela é reveladora de uma visão de literatura que insistimos em manter, ainda que a prática estética das últimas décadas sugira o contrário. Talvez seja importante esclarecer o preconceito que identifiquei no fragmento anterior, para não ser etéreo demais: são as universidades brasileiras que em geral recusam os cursos de criação literária. Ainda que as oficinas e mesmo iniciativas mais complexas e amplas como o CLIPE, proliferem, não há um curso de graduação que privilegie a criação e forme escritores, como é possível encontrar nas grandes universidades de muitos países, os Estados Unidos na dianteira.
“Além disso, o escritor também é visto, ainda, como um ser especial, que não precisa de técnica (e muito menos de ideologia) e se manifesta a partir de uma espécie de instinto.”
Há, no mínimo, algo muito mal explicado nessa recusa acadêmica. Mesmo a Unicamp, que ousou ao criar o curso de “Estudos literários”, não foi além para oferecer disciplinas de criação no currículo. No entanto, se alguém quiser estudar composição musical, há um vestibular específico e se cumprir todas as obrigações no final do curso obterá o diploma de compositor. O trabalho de conclusão de curso dos alunos de cinema da USP é muitas vezes a criação de um curta-metragem. Artistas plásticos se formam na universidade fazendo de vez em quando uma exposição de suas esculturas. Já fui a duas. Por que, então, a literatura é a única prática artística que não aceita algo semelhante nas cadeiras universitárias. Sou formado em Letras pela Unicamp e fiz mestrado e doutorado na área de literatura brasileira. Para a minha atividade de escritor, a faculdade foi bastante importante. Durante a graduação, as disciplinas de linguística me traziam à consciência o funcionamento da linguagem, preocupação que me aflige até hoje. Quanto à literatura, não preciso dizer como foi importante frequentar aos 20 anos uma disciplina que se aprofundava no clássico de G. Flaubert, Madame Bovary, e no dia seguinte discutir o alcance da obra de Jorge Luis Borges. Passei quatro anos lendo livros excelentes. Na faculdade, convivi com críticos de várias tendências, testemunhei brigas divertidíssimas e acabei saindo com bastante gosto por teoria e filosofia contemporâneas. Para um artista, acho tão importante ler F. Kafka e M. Proust quanto T. Adorno e W. Benjamin. Preocupo-me com as consequências estéticas e ideológicas do que escrevo.
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Ainda assim, incomodo-me ao observar que literatura não está, no interior da estrutura acadêmica brasileira, no mesmo espaço que as outras artes. Um estudante de artes plásticas está perto de outro de artes cênicas e ambos podem atravessar o corredor para assistir a uma disciplina do curso de cinema. James Joyce e Samuel Beckett são tão artistas quanto I. Bergman e A. Giacometti. Como todas as outras artes, a literatura utiliza recursos técnicos para manipular a matéria que o autor julga relevante. Alguns teóricos dirão outra coisa: será a forma (ou seja, a organização dos recursos...) que irá criar a matéria. Na verdade as duas aproximações são muito similares e o que resta delas é a percepção de que para criar uma obra de ficção, um poema ou uma peça de teatro é preciso dominar recursos. Algumas dessas ferramentas são técnicas: tipos de narrador, maneira de construir um diálogo, formas de caracterizar a personagem, como os gêneros são construídos para depois perder a especificidade, o andamento de uma trama, a ausência delas e assim por diante. Para discuti-los é preciso lançar mão de experiências anteriores, observar os grandes acertos da história literária, contrastar exemplos e propor exercícios. Há algo assim, com as devidas diferenças, nas faculdades de arquitetura. Um bom romance ou um conjunto de poemas relevantes não é apenas técnica. Eles também criam discursos que acabam fortes o suficiente para intervir tanto no próprio cânone literário quanto, com maior ou menor intensidade, no contexto social. O autor precisará então saber
aliar sua técnica às questões que lhe pareçam importantes. Para isso, precisa conhecer bem não apenas as grandes obras que lhe precedem como os contextos que a cercam. Não é apenas arquitetura: agora estamos falando também de urbanismo. Pode-se ensinar aos estudantes de criação literária, portanto, recursos, tradições, opções e possibilidades. Só o talento para ser escritor não é transmissível. De fato, não mesmo: e nem o talento para ser maestro, médico, engenheiro ou físico. Ainda assim, nos últimos casos, os interessados podem procurar os cursos de regência, medicina, engenharia e física. Não se ensina o talento para nada. Repito a inquietação: por que então apenas a literatura acaba sendo impedida de, amplamente, ver seus cursos superiores de criação literária abertos? Em primeiro lugar no Brasil a literatura não é predominantemente observada como um gênero artístico. Na maior parte das vezes ela é tomada como um documento que, à vista do leitor especializado ou do comum, reproduz a realidade. É a tradição realista que faz a literatura ficar bem longe das faculdades de artes. Além disso, o escritor também é visto, ainda, como um ser especial, que não precisa de técnica (e muito menos de ideologia) e se manifesta a partir de uma espécie de instinto. Então, a apenas alguns seria dado o direito de criar. Os outros devem apenas consumir, jamais fabricar. É uma visão elitista e romântica. De um jeito ou de outro, estamos algumas gerações atrasados...
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Ricardo Lísias é escritor, autor dos romances Os mandarins, Céu dos suicidas e Divórcio, entre outros.
A DURAS
PENAS tarso de melo
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Escrevo pouco. Digo: escrevo poucos poemas. De modo lento, entrecortado, mas ainda assim intenso, espero. Recolho num caderno algumas palavras, alguns versos, até que eles mesmos decidam se juntar num poema, algo assim. Longos processos de composição, durante o qual como mal, durmo mal, leio mal, mal ouço o que falam comigo. Esqueço quase tudo o que não anoto. Me perco em ruas que conheço bem, invisto pesado na distração. Podia ser como naquele “Poema do jornal”, do Drummond: “O fato ainda não acabou de acontecer/ e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em notícia”. Eu diria: “em poema”. Mas não é. Aqui, “a doce música mecânica” quase não visita. Está muito mais para aquilo que ele diz num outro poema de Alguma poesia: “Gastei uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever./ No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo./ Ele está cá dentro/ e não quer sair”. Drummond tem dessas coisas: no primeiro poema, “a pena escreve”. No outro, “a pena não quer escrever”, mas “a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira”. Inunda mesmo, não apenas a poesia do momento, mas o tormento do poema que não se deixa flagrar. Inunda. Sufoca. Afoga. E nada do verso ganhar forma, da palavra convencer, do ritmo achar seu prumo. Sei que há poetas mais desenvoltos: os livros muitos e longos que lançam não deixam dúvidas. Poetas que mandam na pena. Poetas que não apenas ouvem “a multidão, o coro do universo,/ o trote das estrelas/ já nos subúrbios da caneta” (Murilo Mendes), mas que sabem bem lidar com isso. Que não emudecem diante da “aproximação do terror”, nem se deixam sufocar pela página em branco, pela tela cobrando palavras, versos, qualquer coisa. Invejo-os. Ainda mais quando percebo estar diante de algo que, em suas mãos, sei, daria causa a versos e mais versos: o amor, a morte, a vida fazendo ou perdendo sentido. Dói ver um bom motivo escorrendo entre os dedos da memória, morrendo esquecido num canto da caderneta, fugindo por entre as listas de tarefas e os tantos projetos inacabados. Dói, mas não vira poema. Estranhamente, no entanto, não é apesar desses tormentos que, de vez em quando, surge algo a que você ou, com sorte, algum leitor pode chamar de poema. É por causa deles. Quando comparo os poemas “prontos” – e ainda mais os livros – com os caderninhos (impuras recolhas de possíveis versos, excertos de todo tipo de leitura, indicações de livros, filmes etc.) que me acompanharam no período em que os escrevi, constato que os poemas resultam, quase necessariamente, dessa mescla do que li e do que pretendo ler, do que escrevi e do que deixei de escrever, do que vivi e do que não poderei viver. Os poemas nadam aí. Constatá-lo já é um avanço, mas não garante que o poema seguinte se entregará mais fácil.
Tarso de Melo (1976) é advogado, professor universitário e, até quando menos parece, está tentando escrever poemas. Seu livro mais recente é Caderno inquieto (Dobra, 2012).
CONCEIÇÃO
EVARISTO ESCREVENDO A VIVÊNCIA
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simone caputo gomes cláudia maria fernandes corrêa
Conceição Evaristo, mineira de Belo Horizonte, publicou primeiramente seus poemas e contos no periódico Quilombhoje, importante meio de veiculação da produção literária afrodescendente. “Vozes-Mulheres” foi seu primeiro poema publicado em 1990 na edição de número 13. De lá para cá, Conceição Evaristo publicou dois romances Ponciá Vicêncio (2003) − já traduzido pra o inglês − e Becos da Memória (2006), além de uma coletânea, Poemas da Recordação e outros Movimentos (2008) e ainda um livro de contos, Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011). A importância de sua obra se reflete pelo número sempre crescente de trabalhos, realizados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, sobre sua escrita literária. A escrita de Conceição Evaristo, que ela denomina “escre(vivência)”, trata de narrar as experiências de vida não apenas suas, mas aquelas que ela ouviu ao longo de sua vida que,somadas, formam o enredo de suas histórias, aproximando o leitor de um universo permeado pela desigualdade social e que, por vezes, é escondido, por “visíveis e invisíveis grades” da desigualdade social.
Cláudia Fernandes Corrêa: Você é uma escritora de prestígio tanto no Brasil quanto no exterior. Acredita que isso assinala uma maior abertura para as escritoras afrodescendentes? Conceição Evaristo: É preciso, antes de tudo, relativizar e muito esse “prestígio”. Sem dúvida alguma, tenho tido certa visibilidade, mas é mínima em relação às outras escritoras brasileiras. Pesquisadores de algumas áreas específicas conhecem a minha escrita. A visibilidade que tenho hoje está restrita a um círculo particular de pesquisadores. São os que, corajosamente, lançam o olhar para escritores/as não inclusos(as) no cânone: investigadores de literaturas africanas de língua portuguesa, de textos literários produzidos por escritores/as afro-brasileiros/as, de literatura afro-americana, assim como do Caribe, estudiosas/ os de literatura, gênero e etnia, e participantes dos movimentos sociais negros e de mulheres. É a partir do interesse dessas pessoas por minha escrita que meus trabalhos começam a alcançar um leque maior de leitores e de crítica. Entretanto, o caminho a percorrer ainda é longo. Mas reconheço que está havendo uma maior abertura para as escritoras afrodescendentes.
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“Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo”
Simone Caputo Gomes: Como vê esse crescente interesse pelos seus trabalhos, um grande número de teses e dissertações versando sobre suas obras? Conceição Evaristo: Acredito que a pesquisa no campo da literatura esteja buscando novas vozes, textos que se diferenciam no corpus da literatura brasileira, por uma autoria que surge afirmando o seu pertencimento racial, de gênero e de classe social, mas que busca ultrapassar essas condições, enfocando o drama humano das personagens. Acho que muito dos textos que crio trazem essa faceta. Por exemplo, Ponciá Vicêncio padece de uma dor que dói em qualquer pessoa, a dor de todo ser humano: a solidão. Ana Davenga e Davenga, personagens de um conto homônimo, trazem uma carência que não pode ser explicada somente pelo fato de serem pessoas pobres, faveladas etc. Maria e seu ex-companheiro, um marginal; Maria-Nova, Bondade, Ditinha, Tio Totó, uma gama de personagens que aparecem nos contos e nos romances de minha autoria, para além da pobreza, encarnam o inexplicável, a perplexidade da vida. Creio também que o teor das histórias contadas, assim como o esforço, o trabalho que procuro fazer com a linguagem, tudo tem seduzido os leitores.
Cláudia Fernandes Corrêa: Como vê o crescente interesse pelos estudos tanto da África quanto da história/produção dos africanos e afrodescendentes? Acredita que pode ser uma forma de “redenção” pela escravização? “Redenção”, não. Há situações que não se redimem. E temos também de entender que qualquer atitude de reparação, seja ela no campo político, social ou cultural, não acontece por boa vontade daquele que já está acomodado em suas vantagens. Vou repetir uma fala que aparece em Becos da Memória, não me recordo bem, mas acho que é de Negro Alírio. É mais ou menos assim: “quem arreda a pedra é aquele que sufocado está.” O que quero dizer é que existe muito de nossos esforços em afirmar a existência de uma literatura afro-brasileira, assim como a luta dos escritores africanos para escrever, publicar, veicular e fazer valer os seus textos tem sido intensa para muitos, ainda hoje. A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no ensino fundamental e médio oficial abriu espaços de visibilidade para aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afrobrasileira, gerando uma busca de material que trate do assunto. E o mercado editorial (por interesse econômico, primeiramente), vem investindo na publicação de obras que tratam do tema. Nesse sentido, aproveitando o momento, quero enfatizar que a Lei Federal nº 10 639, que foi ampliada ao instituir o ensino das culturas indígenas, não nasceu de cima para baixo, como muitas pessoas pensam. As cotas também não. Para quem desconhece as demandas dos negros brasileiros ao longo da história, talvez fosse bom buscar conhecer algumas das reivindicações colocadas pelo Teatro Experimental do Negro, em 1945, sob a direção de Abdias Nascimento.
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Simone Caputo Gomes: Como o fato de sua obra Ponciá Vicêncio ter se tornado leitura obrigatória para o vestibular impacta sua concepção sobre a responsabilidade do escritor? Conceição Evaristo: Não sei. Acho que eu nunca concebi previamente uma responsabilidade para o escritor, pois ele sozinho nada pode. O escritor fechado em sua escrita, com suas palavras, com a sua literatura, seus livros, mas retirado do mundo, nada pode, repito. Acho que o escritor pode tanto quanto o médico, o professor, o geógrafo, o cantor, o historiador, se estiver inserido em uma luta maior, naquela do grupo, ou melhor, naquelas dos grupos aos quais ele pertence. Entretanto, reconheço o poder da literatura em provocar emoções, em mexer com os sentimentos das pessoas. Por isso, Maria-Nova, em Becos da Memória, ao ouvir, ler e viver tantas histórias, experimenta diversos sentimentos e faz as suas descobertas: “A vida não podia gastar-se em miséria e na miséria. Pensou, buscou lá dentro o que poderia fazer. [...] O pensamento veio rápido, claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever”. Em outro momento, já no final da narrativa, podese ler a seguinte afirmativa: “Um dia, e agora, ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, [...] o que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo”. Enquanto a personagem Maria-Nova faz aquelas afirmativas, eu repito algumas falas minhas sobre o (meu) ato de escrever: “Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança. Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo”.
E ainda digo que a “escrevivência” das mulheres negras não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. O fato de Ponciá Vicêncio ter se tornado leitura obrigatória para o vestibular não modificou a minha postura como escritora, mas me deu a certificação de algo que afirmei antes, em torno da personagem principal. A solidão de Ponciá comove o leitor. Foram momentos emocionantes, quando vestibulandos de colégios particulares e de escolas públicas, relataram-me as emoções provocadas pela leitura do livro. Eu apenas dizia para eles o meu único desejo. Esperava que eles não parassem na emoção do momento, mas que buscassem transformar aqueles sentimentos em atos concretos de responsabilidades para com o outro, em qualquer cargo, em qualquer profissão que desempenhassem no futuro. Um aluno de um dos melhores colégios de Belo Horizonte fez a seguinte confidência ao professor, depois de ter lido o livro: ele nunca havia percebido a longa distância que separava o quarto dele, localizado na área nobre da casa, do quarto da empregada, na área de serviço. A descoberta dos alunos pobres foi outra, com certeza. E tantos me vieram dizer que relembraram as histórias contadas por suas mães, suas tias, suas avós... A esses, eu nem precisava dizer nada; eles, esperançosos, estavam buscando outra vida.
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Cláudia Fernandes Corrêa: As suas narrativas são permeadas por elementos de tradições africanas. Como você os situa nas suas obras? Conceição Evaristo: Prazerosamente, retomo os vestígios de tudo o que ouvi na minha infância. Histórias originárias das culturas africanas, notadamente do tronco bantu. Repito que não nasci rodeada de livros, e sim de palavras. Como ouvi histórias... Hoje aproveito esses elementos de forma consciente, principalmente na linguagem. Fico atenta às expressões usadas por minha mãe e por outras pessoas da família. Mãe Joana ainda tem o hábito de explicar quase tudo por histórias e ditados. Pedagogia da oralidade. Todo meu clã familiar continua em Minas. O linguajar mineiro, marcado por uma série de palavras bantu, continua vivo em meus ouvidos. Uma das experiências mais marcante de minha infância, e da qual me apropriei na construção do romance Ponciá Vicêncio, foi a imagem do arco-íris e o risco que a cobra celeste significava para as crianças. Cresci ouvindo dizer que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Minhas irmãs e eu guardamos esse receio durante toda a nossa meninice. Recentemente, descobri que meus irmãos, mais novos do que nós, viveram esse imaginário também. Se passassem debaixo da cobra celeste virariam meninas. O texto abre e fecha com a imagem de arco-íris no céu. Uns sete anos depois de escrito, um dia, num final de tarde, vi um arco-íris enfeitando o céu. A memória da infância voltou e veio acompanhada da imagem de Oxumaré, o orixá representado pela serpente do arco-íris, divindade nagô, que é macho e fêmea ao mesmo tempo. Jamais o arco colorido me pareceu tão belo. Naquele momento, olhando o céu, eu desvendava o fundamento de um imaginário vivido durante toda a minha infância. Um imaginário
Tenho tanta certeza do protagonismo das mulheres negras como matriz de vida, em todos os sentidos, que, apesar do sofrimento e da morte que rondam e assolam muitas das personagens criadas por mim, há aquelas que vivem. que havia sido construído a partir de traços, de vestígios de elementos de uma cultura africana que minha mãe nos transmitiu naturalmente. Minha família vem de uma visível tradição católica. Foi preciso que eu descobrisse o candomblé, no Rio de Janeiro, para apreender os sentidos de uma narrativa mítica que os meus conservavam mesmo de forma cortada, mutilada, sob as dobras de outra tradição religiosa, a católica. Fui tomada por uma enorme comoção. Perdemos a origem do mito, mas algo forte da tradição negro-africana subsistia em nós. Ponciá Vicêncio já estava pronto. Busquei o texto e vi que era possível ampliar a representação do mito. E foi só recorrer ao Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes. Lá, encontrei o termo Angorô, nomeação de uma entidade pertencente aos terreiros de linhagem bantu e que correspondente a Oxumarê, nos terreiros de origem nagô. E a palavra arco-íris aparece substituída pelo termo bantu no final do romance.
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A minha “escrevivência” nasce e se faz do que somos, do que as mulheres negras são. E então tenho elementos fecundantes para servir de estofo para a minha ficção. As minhas mulheres negras são outras. Cláudia Fernandes Corrêa: Sabemos que a literatura brasileira, em geral, apresenta as personagens femininas negras como servis, sensuais e “perigosas”. Como é para você compor as personagens femininas negras protagonistas das suas próprias histórias num país cujos valores simbólicos masculinos ainda são dominantes e em que, a exemplo dos partidos políticos, as mulheres precisam de cotas para ter sua participação efetivada na política? Conceição Evaristo: É simples. Quando estou escrevendo, não penso nessas dificuldades. Sei que elas existem, mas não crio um discurso a partir desses dados. Tenho tanta certeza do protagonismo das mulheres negras como matriz de vida, em todos os sentidos, que, apesar do sofrimento e da morte que rondam e assolam muitas das personagens criadas por mim, há aquelas que vivem. A saga de Maria Vicêncio e
de Ponciá Vicêncio é de dor, morte e vida. A de Natalina também. Há uma recuperação da vida, apesar do estupro. Querência, a neta de Duzu, como esperança, é uma personagem similar a Maria-Nova. Vó Rita, Maria Velha, Mãe Joana e mesmo Ditinha são mulheres que eternamente se recompõem. As protagonistas de “Beijos na Face”, no silêncio, buscam sobrepujar a violência do cotidiano. A narradora de “Olhos d’água”, como a mãe, tem os olhos contaminados pelas águas de Mamãe Oxum. Ali, as três mulheres − a narradora, a mãe dela e a filha, elo, cadeia transmissão de fortaleza e sabedoria − repetem o sentido de herança matrilinear, como no poema “Vozes Mulheres”. Em “Ayoluwa, a alegria do nosso povoado”, a mulher é a redentora, não pela morte, não pela cruz, mas pelo nascimento, pela vida. A minha “escrevivência” nasce e se faz do que somos, do que as mulheres negras são. E então tenho elementos fecundantes para servir de estofo para a minha ficção. As minhas mulheres negras são outras.
Claudia Fernandes Corrêa é doutoranda da Universidade de São Paulo Simone Caputo Gomes é professora de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo.
UMA MANEIRA DE LIDAR COM A
LINGUAGEM heitor ferraz
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Não saberia dizer o que faz ou não um escritor melhor. Não conheço receitas prontas. Cada um procura e investiga a sua. Se folhearmos coletâneas de cartas, biografias, autobiografias, textos pessoais de escritores, todos apresentaram a sua receita, seja em 10 mandamentos – os 10 itens do bom escritor –, seja em frases soltas, ou no miolo da própria obra literária. Enfim, cada escritor descobre a sua maneira de lidar com a sua matéria e transformá-la em arte. E aqui me lembro de algumas situações curiosas. Uma delas ocorreu agora, durante a Feira Internacional do Livro, em Frankfurt, onde, durante uma semana, autores brasileiros fizeram leituras públicas de trechos de suas obras. Não consegui ver todas as mesas, mas apenas algumas. E também assisti a um curioso espetáculo de Felipe Hirsch, que inclusive entrou em cartaz aqui em São Paulo, em novembro: “Puzzle”. Nesse espetáculo, há pouco elemento dramático no palco. O centro da peça é a leitura de textos, ou trechos de obras literárias. Não sei se o resultado é surpreendente, como muitos disseram. Perdi a primeira apresentação, que dizem que foi a melhor. As outras que vi eram meio cansativas. Mas nessas leituras todas, fui notando em alguns autores que admiro certa fragilidade no texto. Não estou aqui me colocando como um crítico acima de qualquer suspeita, ou arrogante, como muitos que topamos nos jornais e revistas. Mas apenas como ouvinte e leitor, ou seja, alguém que gosta de e se interessa por literatura. Fui percebendo que muitos autores escrevem já pensando em duas coisas: na possível tradução de sua obra para o estrangeiro,
e com isso abandonam todo e qualquer exercício criativo, qualquer ousadia maior com a linguagem, mantendo a escrita numa espécie de descrição de cenas, e o livro caminha cena a cena; e esses mesmos autores, ou outros, já pensam no possível roteiro cinematográfico que sua obra poderá suscitar, abrindo o leque de comercialização. Não é crime pensar em dinheiro, ainda mais quando a gente tem que sobreviver num mundo besta como o nosso. No entanto, não acho que o trabalho literário tenha que se sujeitar a esses parâmetros, ou seja, aos do mercado internacional e cinematográfico. O problema é quando a forma narrativa do cinema ou da minissérie televisiva, voltada para o mercado, faz com que se imponha – com seu padrão e seus limites – ao objeto literário (sempre com senões importantes: se o autor ou autora usar esses elementos para fazer de dentro deles a crítica desses padrões, o resultado pode ser inovador e muito criativo... já que tudo está aí para ser usado e dar nova significação). Essas leituras me fizeram perceber que muitos autores caíam num descritivismo quase cego. Cheguei a cutucar um colega e dizer, sussurrando: parece um José de Alencar moderno, principalmente na exuberância cansativa de “Til” e outros romances menos impactantes do pai do romance brasileiro. Não vou citar passagens. Mas era aquela descrição pormenorizada da cena, quase à exaustão. Alguém poderia contrapor Proust: mas ali, aquelas frases infindáveis, aquelas descrições, faziam sentido, e estavam ligadas ao tempo da narrativa, e a descoberta do trabalho minucioso com o tempo e a memória, ou como disse Walter Benjamin, “o trabalho de Penélope da reminiscência”.
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Pensando nessas impressões, concluí que faltava a alguns romancistas se ouvir: ouvir sua própria história, depois de escrita. Lembrei-me do que certa vez um amigo me contou sobre o contista mineiro Luis Villela: que ele fazia três tipos de leituras de seus contos, antes de dar o texto por concluído: uma leitura sentado, outra deitado, outra em pé. E em voz alta, ou sussurrando, dependendo da posição. Achei aquilo engraçado. Mas o resultado pode ser surpreendente, para se sentir o ritmo do texto e a relação dele com o que se está contando, com o assunto. Eu mesmo já pratiquei algumas vezes esse exercício, tanto com matérias que escrevi, quanto com poemas. E é impressionante: a gente percebe onde o texto engripa, desanda, ou fica incompreensível. Com reportagens, fiz várias vezes, para meu desprazer, pois percebia a fragilidade, ou onde estava engambelando meu leitor. E é claro que se tiver o olhar, ou audiência, de um outro, melhor ainda: ele nem precisa comentar: um gesto, um olhar, já é suficiente para a gente perceber que vai ter de voltar ao trabalho com o próprio texto... Acho que também já deixei claro que, na literatura, há um trabalho muito importante entre a linguagem e o assunto trabalhado – mesmo quando o assunto é a falta de assunto. Essa relação é a da caixa com o seu conteúdo, ou ainda, a parte de fora com a parte de dentro. E o texto literário só ganha transcendência quando essa relação é tão forte e tão intensa que só vemos a própria narrativa na nossa frente. Talvez seja essa potência que encontramos até hoje na prosa de Machado de Assis, ou na de Guimarães Rosa, para ficar em dois dos nossos grandes, talvez os dois maiores da literatura brasileira. Sobre o assunto, bom, não meto minha colher. Mas hoje vejo que uma parte de nossa literatura
enveredou por certa inventividade meio pronta, um tipo de historinha “prêt-à-porter”. As narrativas delirantes de Bolaño viraram modelo. E toca a escrever como Bolaño. Mas não podemos escrever como Bolaño, pois ele estava escrevendo contra e sobre o tempo dele. Respondendo a uma experiência histórica. A imitação pode ser sempre um primeiro caminho. Mas não deve ser “o” caminho. Muitos pescaram ali uma facilidade qualquer e passaram a aplicá-la, sem perceber a dimensão que havia entre aquela linguagem excessiva e a experiência latino-americana, que certamente há. Não descartaria a leitura e releitura dessa e outras obras, mas sempre tendo em mente que o autor está respondendo a questões históricas profundas. Aqui entro na segunda coisa que queria falar: há dois, três meses, fiz uma entrevista com Antonio Geraldo, autor de “A visita que hoje estamos”. Um escritor que mora em Arceburgo, Minas Gerais. Como já nos conhecíamos de muitos e muitos anos, fizemos faculdade juntos, perguntei a ele, com toda a liberdade, como ele escreveu aquele romance, aquelas histórias todas. Ele tentou me responder. Mas foi quando saímos na rua, para uma voltinha na praça da cidade dele, que a resposta veio. Vimos um velho, de bermuda e camisa. Ele estava com uma mochila. Um dos muitos caipiras de hoje, que certamente trabalham no campo, principalmente na época da colheita, quando a cidade recebe vários desses trabalhadores. E o velho desdentado falava sozinho: “Os óio lindo dela/ vermeio de maconha”. Geraldo me disse: “Está aí a resposta para sua pergunta, escrevo para saber que história existe por trás desse homem, com essa mulher de “olhos lindos, vermelhos de maconha”. Essa frase, que lembra a música caipira, mas tem este outro elemento, a maconha, do mundo urbano. Mas, e
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para contar essa história? Ele teve de procurar uma maneira de lidar com a linguagem. Ele é um homem culto, não um capiau. E passou por aquele processo que Antonio Candido chama de “estilização da linguagem oral” – ele fala disso, com muita clareza, no ensaio “Na noite enxovalhada”, sobre a prosa de João Antônio, em “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Como diz Candido, “trata-se de um narrador culto que usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando sua voz à dos marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa cidade documentariamente real, e que no entanto ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora”. Ele ainda diz o seguinte: “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. Vejo esse mesmo uso eficiente da linguagem na prosa de Antonio Geraldo. Como também a encontro na linguagem despachada e pornográfica de Reinaldo Moraes. Reinaldo é outro problema para o jovem escritor que o lê e fica embasbacado: ele toma aquele narrador como sendo o próprio autor, e sai imitando-o e falando única e exclusivamente de suas próprias vivências. Mas não percebe que Reinaldo usa uma linguagem de classe, de forma irônica e bastante eficaz. Esse mundo pornográfico, para não dizer obsceno, é o nosso. E é de classe. Como disse, tenho para mim que um escritor escreve para encontrar respostas a questões que ele se faz: sobre sua vida, sobre o tempo em que vive, sobre sua experiência no tempo. E ele a transforma. A boa literatura articula todos esses elementos, numa procura e numa unidade.
Heitor Ferraz é jornalista, editor, poeta e professor universitário. Colabora como crítico literário em jornais e revistas. É autor do livro de poemas “Coisas imediatas [1996-2004]” (Editora 7 Letras), entre outros. Trabalhou no Jornal da Tarde, revista Cult, na Edusp, Editora CosacNaify e Códex. Este depoimento foi apresentado no quarto módulo do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe), na Casa das Rosas, em novembro de 2013.
POESIA guilherme gontijo flores
Poema inédito de Guilherme Gontijo Flores, escrito durante sua estadia em São Paulo, de 10 a 15 de dezembro de 2013, como primeiro convidado do projeto Poeta Visitante do Centro de Apoio ao Escritor (CAE), da Casa das Rosas.
Talvez como um salário da loucura ou das tamanhas solidões que calharam de caber nesta noite o sol vem soluçando aos nossos copos ouro no ouro enquanto ainda nos resta dedos braços alçados goela e perdura uma ânsia por nada esta escuma
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pra que lado isso poderia não ser uma talvez pergunta? feito afirmar-se faca cega como quem segue seu destino numa via de mão única como amar seria correr sem descanso todas as linhas de metrô pulando por todo o dia e à noite escondido nalgum vagão fincar-se numa cabine qualquer por anos a fio (quem sabe horas) a metros e metros de uma possível química solar e a pele se descora e se descola aos poucos da sua ossada a coluna arqueando os pés tirados pra balanço os olhos revirados crânio adentro na esperança de encontrá-la eldorado concretada sob os escombros do trianon
Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e professor de língua e literatura latina na UFPR. Autor dos poemas de brasa enganosa (Ed. Patuá). Traduziu Rainer Maria Rilke (As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, Ed. Crisálida, em parceira com Bruno D’Abruzzo) e Robert Burton (A anatomia da melancolia, em 4 vols., Ed. UFPR, recém-premiado pela APCA). Participa ainda do blog coletivo escamandro, sobre poesia, tradução e crítica (www. escamandro.wordpress.com), que terá sua primeira edição impressa como revista também em 2014 (Ed. Patuá).
realização