Revista Grafias 4

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Ano 2 - nยบ4 - 1/2016

grafias


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Geraldo Alckmin | Governador do Estado Marcelo Mattos Araujo | Secretário da Cultura Renata Vieira da Motta | Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico POIESIS – INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Corrêa | Diretor Administrativo Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo Dirceu Rodrigues | Imprensa Angela Kina | Design CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA Frederico Barbosa | Diretor Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenadora Administrativa Márcia Kina | Supervisora Administrativa Fabiano da Anunciação | Assistente Administrativo Neide Silva | Copeira Daniel Moreira | Supervisor Cultural Thaís Feitosa / Mariana Manfredini | Técnica Cultural Débora Nazari | Comunicação Annelise Csapo / Rafael Gattuzo / Luciana Fortes Félix | Educativo Valdecir de Souza / Jackson Oliveira / Alan Zanatta | Produção Francisco Silva | Zelador CENTRO DE REFERÊNCIA HAROLDO DE CAMPOS Julio Mendonça | Coordenador Rahile Escaleira | Bibliotecária Irana Magalhães | Assistente de Organização e Pesquisa Leonice Alves | Assistente de Biblioteca CENTRO DE APOIO AO ESCRITOR Reynaldo Damazio | Coordenador Maria José Coelho | Assistente Dayane Teixeira | Assistente de Biblioteca


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GRAFIAS – revista do centro de apoio ao escritor Diretor: Frederico Barbosa Editor: Reynaldo Damazio Assistentes: Maria José Coelho / Dayane Teixeira Produção: Carmem Beatriz Henrique de Paula Design: Angela Kina / Assistência de Design: Renato Marciano Revisão: Centro de Apoio ao Escritor Imprensa: Gonçalo Junior / Débora Nazari ANO II N° 4 - dezembro de 2015


sumário 7

editorial

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ofício o escritor e a escrita

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oficina escrever – uma arte democrática

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política literária poesia e gestão cultural

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depoimento literatura viva: relatos de uma residência em londres

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artigo o aplicativo dos sonhos

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ensaio das impossibilidades do contemporâneo: algumas escolhas

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resenha ai que fedor de corrupção! ai que vontade de matar!

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cae – breve relato sobre a experiência do centro de apoio ao escritor da casa das rosas



editorial O Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas (CAE) participou do “I Encuentro de Programas de Creación y Escritura Creativa de las Américas”, em Bogotá, Colômbia, onde foi apresentado o breve relato sobre sua criação e experiência pioneira no Brasil, voltado para a formação de escritores. O texto apresentado por mim em uma das meses do simposio fecha esta edição de “Grafias”. Durante uma semana de palestras e debates com escritores argentinos, cubanos, venezuelanos, colombianos, entre outros, foi possível constatar que existem muitos projetos interesantes de ensino de escrita criativa espalhados pela América Latina em universidades, o que ainda é raro ou quase inexistente no Brasil. Nos demais textos presentes na revista – artigos, ensaios, depoimentos, resenha – o leitor encontrará material diverso e instigante sobre o ofício da escrita, dicas e orientações para quem acredita que a literatura é um elemento fundamental na vida e pode até se tornar uma profissão, como no relato do escritor argentino Martín Kohan, ou no amplo programa de financiamentos do governo para bolsas e prêmios literários no México, segundo o poeta Luis Aguilar. Jovens escritores também participam desta edição com suas contribuições para ampliar a discussão e a prática do ensino da escrita literária e a formação de autores. reynaldo damazio


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OFÍCIO

O ESCRITOR

E A ESCRITA martín kohan Quando eu quis ser escritor? Que me lembre, nunca. Em minha infância quis ser muitas coisas, como é comum acontecer. Mas entre as profissões e as vidas que naqueles momentos sonhava para mim (algumas contraditórias: como ladrão e polícia; outras inviáveis, como artilheiro do Boca Juniors), as de ser um escritor, as de me tornar um escritor, não me lembro que estivessem. Ainda hoje fico um tanto perplexo quando alguém declara (estive a ponto de escrever: “confessa”) semelhante vocação. A que se referem exatamente? Em que estão concretamente pensando? Fico intrigado e nem sempre atino com a resposta. Se referem-se a escrever, entendo completamente, porque aconteceu a mim e ainda acontece. Escrever é minha paixão (ou ao menos uma de minhas paixões; que, não obstante, são bem poucas) desde que me ensinaram a fazê-lo (e não me lembro de como era minha vida antes de ter aprendido a ler e a escrever, me imagino desde sempre já escrevendo e lendo). Escrever me entusiasma, me desperta ansie-

dade, se transforma no centro do mundo para mim, muitas vezes quase todas as outras coisas (e não me atrevo a dizer todas) começam a me parecer secundárias por comparação. Escrever me absorve e me traz um tipo de felicidade que não encontro em outro lugar. Eu gosto de escrever literatura. Também gosto de escrever sobre literatura, e por isso sou crítico literário. Também gosto de falar sobre literatura, e por isso sou professor. Também gosto de trocar ideias sobre literatura, e por isso participo de encontros, mesas, colóquios. Mas escrever e ser escritor não necessariamente serão uma mesma coisa, por mais que uma necessite da outra, por mais que uma traga como consequência a outra. O desejo de escrever e o desejo de ser escritor não são o mesmo e não caminham necessariamente juntos. Há os que sentem o desejo de serem escritores. Presumo que fantasiem o afago de ver seu próprio nome impresso na capa de um livro, ou de serem


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fotografados em alguma feira de livros para a penúltima página de algum jornal, ou de participar de alguma dessas noitadas onde conversam com outros escritores com uma bebida na mão, cada um de sua própria obra, cada um de seus próprios êxitos. Há casos em que existe esse desejo, o de ser escritor, mas não o desejo de escrever. Escrever pode ser-lhes até penoso, custoso e aflitivo; a página em branco os angustia, a página cheia os angustia também, se tiverem que corrigi-la. Por que o fazem, então? Fazem porque querem ser “escritores”, e sem esse transe de padecimento, não poderiam chegar a sê-lo. Não concebo que alguém que sofra para escrever se ponha a fazê-lo, apesar de tudo. A vida em geral não nos poupa dos infortúnios, não é necessário juntar-lhe mais um. Escrever, que é minha felicidade, ou uma de minhas maiores felicidades, não é para mim nem mágico nem metafísico nem profundo nem transcendente. É um maravilhoso trabalho manual (porque envolve, entre outras coisas,a delí-

cia física de desenhar as letras, tocar o papel, sentir o cheiro da tinta). E permite um tipo de relação extraordinariamente intensa com as palavras, com sua forma, com sua textura, com sua sonoridade, com suas ressonâncias, com o que são capazes e com o que não são capazes de dizer. A vida cotidiana de um escritor pode ser eventualmente mais anódina do que o comum das vidas cotidianas. Um sujeito só, calado, sentado, quieto, alheio, digitando ou anotando suas coisas. Os mundos que escreve, no entanto, as vidas que escreve, podem ser, em muitos casos, melhores do que todos os mundos, melhores do que todas as vidas. [tradução de Vivian Schlesinger]

Martín Kohan é escritor e argentino, publicou ensaios acadêmicos sobre diversos temas, como Walter Benjamin, Eva Perón e José de San Martín. É autor de dois volumes de contos e de seis romances, como “Duas vezes junho” (2005) e “Ciências morais” (2008).


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OFICINA

ESCREVER UMA ARTE

DEMOCRÁTICA


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alexandre staut Para escrever bem é preciso praticar! É preciso ler bastante e escrever bastante também. Acredito nos gênios da escrita, como o poeta francês Arthur Rimbaud [1854-1891], que, adolescente, escreveu uma obra belíssima. Mas Rimbaud é uma exceção. A maioria dos escritores, lê muito, escreve muito, faz cursos de escrita, lê textos sobre linguagem, conversa com iguais sobre o ofício. É lugar comum o exemplo que vou dar, mas vale bastante para a escrita. Pense num atleta olímpico. Ele só vai conseguir alcançar os seus objetivos depois de muito treino. Bailarinos também. Bailarinos passam sete horas por dia em uma sala de ensaio. Há muito treino para fazer quatro ou cinco piruetas no ar. Os músculos devem estar tonificados. Eles devem ter consciência corporal, as pernas devem estar condicionadas, assim como deve haver equilíbrio e senso de direção, senão poderiam cair do palco, chocarem a uma parece, caírem e quebrarem a perna, a coluna. Para quem quer escrever, sempre falo que é preciso encontrar um momentozinho do dia para treinar a escrita. E também para ler. No meu caso pessoal, gosto de ler à noite, na cama, antes de dormir. Todas as noites, é assim. Criei um ritual para isso. Leio em média de uma a duas horas por dia. São sempre romances e eles são meus companheiros antes que eu embarque na viagem dos sonhos.

O treino da escrita, faço de manhã, logo que acordo. Se estou trabalhando fixo numa empresa, levanto às seis, sete horas e escrevo pelo menos meia hora por dia. Quando estou trabalhando em casa, posso dedicar mais tempo à escrita. Às vezes, consigo escrever uma manhã toda, com intervalos para cafés, para ver a vida acontecer, da janela da sala. Estas não são dicas apenas para quem quer ser escritor. É importante escrever bem, isso todos nós sabemos. É preciso dominar as técnicas de escrita neste mundo contemporâneo em que parte das relações acontece através da escrita, seja pelo Twitter, Facebook, emails. Mas há ainda o vestibular, em que a redação irá ser decisiva para a sua vida de universitário. E há o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Dos 6.193.565 candidatos que fizeram o Enem em 2014, 529.374 participantes tiveram nota zero na redação (8,5%), segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Apenas 250 obtiveram a nota máxima (1.000). Escrever é um ato democrático. Você pode escrever se nascer rei na Europa ou se veio ao mundo no sertão do Nordeste. Pode escrever e se tornar escritor se vir de uma aldeia perdida na Rússia ou se morar num deserto na África. A escrita transcende fronteiras geográficas, de classe, raça, orientação sexual. É uma atividade barata... você precisa apenas de papel e um lápis ou uma caneta... ou um computador, claro. Isso você vai decidir. A escrita também é importante, pois todos, de alguma forma, pensam em escrever a sua própria história, ou a história dos seus familiares, não?


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Dicas práticas Uma das primeiras dicas que dou a você é a seguinte: Escreva sobre assuntos que você conhece, sobre velhas lembranças, sobre seu pai, seus antepassados. Escrever sobre a família pode ser um bom exercício, pois assim você escreve no ritmo da emoção. Escreva apaixonadamente e de forma livre. Não há a necessidade de reportar o real. Na ficção, tudo é possível. É possível falar de uma vizinha que viveu sete vidas ou escrever um texto longo sobre um navio ancorado no espaço. A ficção, por mais fora da realidade que possa parecer, pode fazer com que você entenda mais da sociedade e da alma humana do que lendo um sociólogo, um filósofo. Cito aqui uma carta de Scott Fitzgerald, autor de livros como O grande Gatsby, de 1925, um dos melhores escritores dos Estados Unidos, de todos os tempos, no meu ponto de vista. Ele escreveu assim: “Você tem que vender seu coração, suas reações mais poderosas. E não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá contar no jantar. Isso é especialmente verdadeiro quando você começa a escrever, quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender os outros no papel, quando não tem ainda técnica. Quando, em suma, você tem apenas emoções para vender. O escritor, depois de aprender tudo que podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial, como as reações mais superficiais de três moças comuns, por exemplo, e dar-lhes encanto e graça.

O amador pensa que ele ou ela pode fazer o mesmo. Mas o amador só consegue transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este, de qualquer forma, é o preço da admissão. Alguém disse certa vez: Um escritor que consegue olhar um pouco mais profundamente a sua própria alma e a alma dos outros, encontrando ali, graças a seu talento, coisas que ninguém jamais viu ou ousou dizer, aumenta com isso o âmbito da vida humana. O escritor jovem, quando chega à encruzilhada do que dizer e do que não dizer, no que se refere a caráter e sentimento, é tentado a se deixar levar pelo já conhecido, admirado e aceito correntemente, pois escuta uma voz sussurrando dentro de si mesmo: ninguém se interessaria por este meu sentimento, este ato é sem importância --- portanto deve ser peculiar apenas a mim, não deve ser universal, nem interessante, nem mesmo certo. Aquilo que tentou jogar fora, ou que muito frequentemente jogou mesmo fora, vem a ser o toque de graça que o salvaria. A escritora americana Gertrude Stein tentou exprimir pensamento semelhante ao dizer --- referindo-se mais à vida, do que às letras --- que lutamos contra as nossas qualidades mais excepcionais até cerca dos 40 anos, quando então descobrimos, tarde demais, que elas compunham o nosso verdadeiro ser. Eram a parte mais íntima de nós mesmos, que devíamos ter nutrido e acalentado.’’


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O que vem a sua cabeça quando reflete sobre o trecho? Para mim, a carta fala sobre a paixão ao oficio da escrita e a vida. Recebi este texto de um autor brasileiro, logo após lançar o meu primeiro romance. O trecho me ajudou a focar na minha escrita, no meu desejo de me tornar escritor. Escrever sobre a sua família pode ser um bom exercício, pois assim você trabalha no ritmo da emoção. Que tal descrever os seus avós? Seja detalhista. Fale da pinta no rosto da sua avó e dos abraços do seu avô, tente captar a atmosfera de suas casas e os cheiros quando a sua avó fazia sopa para lhe receber. Eu já escrevi um livro inteiro sobre os meus avós paternos... Jazz band na sala da gente. Da experiência de escrever dos seus avós pode surgir um conto, um romance, um poema. Pegue o texto que começou a escrever e, todas as manhãs, ou todas as noites, trabalhe um pouco no enredo. Confie mais no trabalho duro do que na inspiração. A inspiração só existe quando existe muito trabalho por trás. A criação literária precisa ser desmistificada. O autor não é um ser “inspirado” por musas. É um trabalhador. Ele precisa de disciplina e tempo para escrever. É alguém que precisa ler muito antes de se aventurar a escrever suas próprias coisas. Deve ser um observador do mundo, e saber cultivar a sua imaginação. Não tente ser lógico Outra dica importante é encontrar um lugar em que você se sinta bem e à vontade para escrever. Tem que estar confortável, o lugar deve ter boa luz. Tente ser determinado, mesmo que escreva apenas

dois minutos por dia. Não deixe de abrir o arquivo em que você está trabalhando. Crie uma rotina. Escritores têm rotina, como bailarinos, atletas, trabalhadores braçais. Não pare para reler o que você escreveu anteriormente. Num primeiro momento, não se prenda à ortografia, pontuação, gramática. Não se prenda às margens ou linhas do caderno. Não tente ser lógico. Se surgir uma boa ideia no seu texto, desenvolva-a. É como se você estivesse nadando num mar cheio de peixes enormes. Grude um deles pelo rabo e deixe que ele te leve para conhecer o oceano. Vá sem medo. Não volte atrás do que você acaba de escrever para não deixar o censor interno tomar conta. O censor vai dizer que não há nem nunca houve navio flutuando no céu, que é uma bobagem pensar em grudar no rabo de um peixe enorme e deixar que ele te leve para conhecer o alto-mar. O censor interno reprime, julga. Para o censor, dois e dois são quatro. O censor é polido, medroso, tímido. O meu censor diz que escrever ficção é uma bobagem, que o importante mesmo é ser bom na vida e fazer trabalho voluntário. Tenho uma amiga que, todas as vezes que ela se senta para tentar escrever contos, o seu censor diz: ‘mas para que escrever, tanta gente já escreveu tanto, há tantos livros no mundo...’ O censor de outra amiga dizia que era bobagem ela tentar escrever um romance, pois, se não fosse para escrever como Machado de Assis, era melhor nem


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ao mesmo começar. Ela nunca começou e acabou desistindo do seu sonho de virar escritora. Não espere uma voz dizer dentro de você: “Agora sim. Estou preparado. Descobri a minha voz poética. Estou pronto para escrever.” Não se preocupe em encontrar uma voz poética. Você já tem a sua... mesmo que não perceba isso. O prêmio Nobel francês Patrick Modiano disse, na orelha de um dos seus livros mais bonitos, Pedigrée, que escreveu o relato sobre a vida de seus pais e sua infância como se estivesse escrevendo um currículo. Diz que a ideia era escrever algo totalmente sem estilo. Em alguns pontos da narrativa é possível perceber isso. E nem por isso o livro deixa de ser comovente. Uma dica preciosa que aprendi foi a seguinte: escreve e esqueça o texto por alguns meses dentro de uma gaveta. Depois, pegue o material e leia em voz alta. Se houver verdade, se aquilo te tocar como leitor e escritor, continua a trabalhar na narrativa.

Retrabalhando o texto Escritores escrevem e retrabalham seu material dezenas de vezes. O modernista Mário de Andrade [1893-1945], autor de Macunaíma, por exemplo, chegou a levar mais de 20 anos para escrever um único conto. Há um escritor mineiro de que gosto muito, o Murilo Rubião [1916-1991], que escreveu na vida toda apenas 33 contos. São contos sucintos, em que não há sobras de palavras. Ele escrevia e

retrabalhava o seu material inúmeras vezes. O censor vai vir mais tarde, não na hora da escrita. O censor interno é que vai te dizer se determinado texto ou livro merece ou não ser publicado. De qualquer forma, para os mais imediatistas, há a possibilidade de escrever em blogs, no Twitter e no Facebook. A internet hoje em dia é um ponto de encontro para escritores. As redes sociais se tornaram pracinhas, em que a gente se encontra no meio datarde para um café, para alguma leitura. São lugares em que podemos nos comunicar. E já que se pode comunicar é possível fazer literatura na internet. Quer dizer, usar a rede mundial para escrever literatura. Quantas pessoas você conhece que publicam crônicas, contos, manifestos, poemas no Facebook ou microcontos e haikais no Twitter? Ou até mesmo poemas visuais no Instagram? Poderia dar exemplo de poetas e escritores que conheci pela internet. A web virou uma praça dos tempos modernos. Para tudo, inclusive para a literatura. Exemplo disso é a Flipobre, primeiro festival literário via internet, que surgiu no ano passado como resposta aos escritores que não encontram espaço nos consagrados eventos literários do país. Com transmissão ao vivo pelo YouTube, a primeira edição do evento online reuniu mais de 40 escritores de todo o Brasil. Espero que as dicas tenham sido úteis. Boa leitura e boa escrita.


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Alexandre Staut é jornalista e escritor. Autor dos romances “Jazz band na sala da gente” (2010) e “Um lugar para se perder” (2012).


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POLÍTICA LITERÁRIA

POESIA E GESTÃO

CULTURAL Os tempos modernos – redes sociais incluídas – reclamam dos agentes culturais permanecer de ambos os lados do proceso de realização da arte: tanto na criação como na gestão cultural. Mesmo que alguns não aceitem, temos que reconhecer que neste tempo que nos cabe viver, todos acabamos por promover algum artista, ainda que sejamos nós mesmos; ou procurarmos participar e promover algum tipo de festival ou atividade cultural. Isso não é estranho, mas ao contrario: é necessário e dignifica a difusão da arte. Pensar a burocracia cultural como um ente que baterá em nossa porta para promover nosso trabalho; que desenvolverá algum tipo de festival ou realizará por iniciativa própria algum projeto que favoreça o nascimento, a floração ou difusão da arte, é perda de tempo. As melhores ideias, aqueles de onde brotam os grandes festivais de poesía, por exemplo, nascem quase sem exceção de poetas preocupados com a difusão da mesma.

Assim nasceram, por exemplo, o Festival de Medellín, na Colômbia; o de Granada, na Nicarágua; o de Poetas do Mundo Latino ou Letras em San Luis, no México; e seguirão nascendo todos os grandes eventos difusores de cultura no mundo. Nós somos – ou deveríamos ser – os mais interessados. Aí está a lógica do que defendo, a burocracia cultural, por acaso, se encarregará de formalizar, apoioar, institucionalizar ou financiar o projeto proposto. Nesse sentido é preciso reconhecer e presumir o trabalho que realizam no México algunas instituições culturais. De passagem pelo Brasil como parte do Programa de Residência para Tradutores Estrangeiros da Fundação Biblioteca Nacional, muita gente ficou supresa com a oferta de bolsas e prêmios disponíveis no México. Não é o mundo ideal, mas temos que reconhecer que é o melhor dos mundos possíveis. Existem no México – salvo engano – mais de 20


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prêmios nacionais de poesia, convocados pelos Estados da República, dotados quase com quase dez mil dólares cada um, para premiar livros inéditos de 50 a 70 páginas; e há também os prêmios com maior dotação como Aguascalientes que, além de ser o de maior prestígio do páis, oferece ao ganhador pouco mais 50 mil dólares; ou o ainda recente premio Manuel Acuña, de 100 mil dólares. No âmbito da tradução, por exemplo, o PROTRAD, convocação que acontece duas vezes ao ano na instância do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes – e que inclui editoras e tradutores estrangeiros – oferece financiamento de até 50 mil dólares para publicação de autores mexicanos traduzidos para outras línguas, ou o inverso, em uma coleção ou proposta que pode ir desde um só libro a uma série de cinco. Esta bolsa, certamente, foi obtida em sua mais recente edição por uma editora brasileira: Arte e Letra. Somado a tudo isso, o México oferece bolsas e prêmios de poesia de tamanhos variados para públicos específicos, como o prêmio para poesia em Línguas Indígenas, de quase 10 mil dólares; as bolsas para jovens criadores, que podem receber um valor mensal de aproximadamente 600 dólares por um ano; a do Sistema Nacional de Criadores de Arte, que dá apoio durante três anos com um salário mensal próximo a 3 mil dólares para artistas com uma trajetória considerável; e a bolsa que mais me orgulha e que me dá gosto aportar com meus impostos, a do Sistema Nacional de Criadores Eméritos. Essa bolsa paga uma quantia mensal em torno de 5 mil dólares para artistas consagrados, que dedicaram sua vida à criação artística no Méxio e que

estão numa faixa etária que chamamos de “adultos maiores”. Talvez seja a bolsa mais justa, pois garante o bem-estar de nossos escitores que entregaram suas vidas à literatura e não estão mais em condição de seguir trabalhando, ainda que escrever, o que continuam fazendo até o fim da vida, seja uma forma de trabalho interminável. De onde saíram essas ideias têm estruturado cultural e financeiramente o trabalho de criação no México? Certamente, não do governo. Foi da brilhante mentalidade de um homem que, além do sistema organizado, legou ao país uma grande poesia e uma melhor obra ensaística: Octavio Paz. Para todos esses projetos, desde o início, alguém deve pensar em projetos. Refiro-me a que o artista seja seu próprio gestor cultural, ao mesmo tempo gestor da obra de outros de quem gosta e a quem descobre e promove. O artista moderno convive com as condicionantes que lhe afetam no ínicio desse século caótico; propõe e difunde. Pensar em um criador cuja única e exclusiva missão seja a própria criação, é complicado: haverá posibilidades de descobrimento e difusão; mas estas poderão ampliar-se se o criador atua no entorno; se projeta e realiza. O florescimento, no México e no Brasil, de novas editoras é a prova do que digo. Criação e gestão – autogestão – caminham sem dúvida de mãos dadas. [tradução de Reynaldo Damazio]

Luis Aguilar é poeta e mexicano, autor de “Os olhos já desfeitos” (2011), entre outros. Sua obra foi traduzida para o português, catalão, francês e inglês.


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OFICINA

LITERATURA VIVA:

RELATOS DE UMA RESIDÊNCIA EM LONDRES


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cristina judar Ter cabeça, organização e doses extras de ímpeto criativo pra tocar um novo projeto literário em paralelo a outro, já em andamento no Brasil, era o que eu precisaria, caso desse mesmo certo. Mas tudo parecia ainda distante demais quando, no final de 2014, eu soube da oportunidade: uma única vaga de residência artística na Queen Mary University of London, em um departamento dedicado à literatura e ao registro e divulgação de áudios de poemas, o Archive of The Now, coordenado pela escritora, professora e poeta Andrea Brady. A experiência prometia ser incrível, haveria um tempo razoável – quase dois meses em Londres, de fevereiro a março de 2015 – pra pesquisar, estudar, divagar, perambular por becos enquanto o HD mental reproduzisse letras do Morrissey, fazer com que

botas e casacos amados saíssem do armário e, obviamente, dar origem a um material literário do qual eu me orgulhasse e que, ao mesmo tempo, valesse a pena ser apresentado à instituição como resultado de seus investimentos na conexão / troca cultural entre Brasil e Inglaterra. Tudo isso com a possibilidade de acessar as informações e registros que eu quisesse e com o arsenal tecnológico necessário pra tocar, satisfatoriamente, meu projeto autoral. Depois de tomar o fôlego necessário, resolvi encarar. Afinal, eu precisaria de muita disposição pra passar por três processos seletivos – independentes e ao mesmo tempo interligados, relacionados ao edital Conexão Cultura Brasil: do Ministério da Cultura, do British Council e da própria Queen Mary University of London. Ou seja, se eu fosse reprovada em algum deles e em alguma de suas etapas, não rolaria.


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Pra participar, muito material é exigido: textos, portfólio, currículo, zilhões de relatórios e fichas a serem preenchidas, cronogramas, documentos comprobatórios de prêmios e publicações, certificados de cursos e do teste de conhecimento da língua inglesa, cartas de intenção, diplomas e por aí vai. Sem contar a elaboração e descrição minuciosa do projeto literário que eu me propunha a desenvolver na terra das majestades. Tudo muito prático e objetivo pra alguém que queria cruzar oceanos pra se dedicar à criação literária até certo ponto livre, desregrada e desimpedida, tendo como pano de fundo os já citados becos. Depois de muita elucubração, pensei em um projeto que estaria conectado ao que a universidade e, principalmente, o Archive of The Now, se propõe a fazer, mas de maneira um pouco diferente. Eu não apenas escreveria pra depois gravar as minhas leituras, mas faria o caminho inverso: sairia pelas ruas de Londres gravando depoimentos de pessoas, as respostas pra perguntas inusitadas como, por exemplo, “qual é o som da sua alma?”. A partir dessas respostas e dos insights que elas me trariam, eu criaria textos ficcionais, sempre com base nas reações e registros captados. Foram mais ou menos uns três meses de espera. A cada etapa e relação de finalistas divulgada, era um alívio e uma aflição. Pois, embora o edital ofereça um auxílio financeiro, ele não é suficiente para cobrir todas as despesas, ou seja, era preciso providenciar muita coisa e em tempo recorde, acertar detalhes sobre a hospedagem, deixar tudo certo para o período de ausência no Brasil, além de encarar os descabidos 5 a 1 da libra versus real imperantes no período.

Pouco tempo antes do que seria o início oficial da residência artística, veio o resultado definitivo. Entre os candidatos, eu havia conseguido a maior pontuação e agora precisava correr pra acertar os detalhes que antes eu só havia visto por alto. Fora o fato de ter de postergar a data de apresentação da monografia da pós-graduação (minha orientadora foi compreensiva, maravilha!) e de me desconectar temporariamente da redação do romance “Oito do sete”, então em pleno processo de produção. Com as passagens no bolso e a cabeça em dois mundos, parti pra Londres no dia 9 de fevereiro.


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Cheguei cheia de ideias e, após uma semana de adaptação na cidade gelada, fui recebida (calorosamente!) por Andrea Brady em nossa primeira reunião informal, marcada na British Library. Conversamos sobre nossos trabalhos e planos, ela me falou sobre a importância de estabelecer vínculos culturais com o Brasil e se mostrou interessada na minha criação atual, assim como no trabalho de outros escritores e poetas do nosso país. Contei com detalhes como seria o projeto e tudo o que eu queria desenvolver durante a residência, ela se

mostrou satisfeita e me deu carta branca pra conduzir o trabalho da maneira que eu achasse melhor. Eu não seria “avaliada”, muito menos monitorada. Que ótimo. Disponibilizou um gravador profissional, da universidade, e ficamos de nos falar em alguns dias. Combinamos que, conforme eu produzisse, mandaria pra ela uma versão em inglês e em português de cada texto e, por fim, um arquivo com todas as gravações utilizadas. Um rapaz do Vietnã sentado em um saguão de um edifício perto da Trafalgar Square foi o primeiro a


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falar diante do meu microfone. Com ele, tive aquilo que se chama de “sorte de principiante”, pois foram vários os elementos interessantes que ele me forneceu assim que o gravador foi ligado. Da cor de sua alma, vermelha, ao encontro que ele teria em instantes - com uma garota também vietnamita, que ele conhecia apenas virtualmente - tive um material dos sonhos pra começar a criar. E assim o trabalho prosseguiu, com tudo de melhor e de pior que a abordagem de estranhos na rua, com perguntas nada convencionais e diante de um microfone de dimensões avantajadas podem trazer. Nas minhas peregrinações diárias pelo metrô de Londres, observada pelos olhos de kajal preto e turbantes do bairro árabe-indiano, aos pontos de cultura hipster e grandes centros de consumo, recebi de tudo: respostas monossilábicas, confissões longas e detalhistas, sorrisos mudos e sons onomatopeicos. Isso sem contar as várias negativas de participação em dias que pouco ou nada rendiam. Parecia que as pessoas combinavam previamente quais seriam as reações (muitas vezes, em cadeia) ou que havia alguma lei misteriosa por trás de tudo, comandando seus impulsos. As coisas davam muito certo ou muito errado, era impressionante. Mas o pior mesmo eram as pessoas que respondiam, mas não me estimulavam. Com esses nada pude fazer, não gera-

ram em mim sentimento ou reflexão que desse em texto ou criação. Assim, dei origem a essas cápsulas-textos da cidade de Londres, compostas pela fusão das minhas impressões estrangeiras somadas às impressões dos seus habitantes (igualmente estrangeiras, na maioria dos casos). Os relatos flutuantes, as imagens, confissões, hesitações e delírios registrados foram um forte estímulo para a minha imaginação e criação. Os dias correram, até que considerei suficiente a matéria-prima que eu tinha em mãos e na mente. Ela compôs a cara e o corpo do projeto, que resolvi intitular como “Questions for a Live Writing”. Os textos originários desse trabalho estão disponíveis (os áudios e os escritos) na página http://www. archiveofthenow.org/pages/cristina-veiga-judar-questions-for-a-live-writing/, do Archive of The Now. Embora o projeto tenha relação direta com esse período de residência, tenho vontade de retomá-lo algum dia, talvez criar um livro ou alimentar a página já existente com mais material. Por enquanto, morro de saudades de Londres, arrependida por não ter comprado um par de coturnos lindos em uma lojinha em Camden Town e, principalmente, por não ter gravado a conversa que tive com Connor, um irlandês que falou sobre santos, Joyce e construção civil e me fez beber cerveja quente e choca no meio de um vagão de metrô lotado.


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Cristina Judar é escritora e jornalista, autora de “Vermelho, Vivo”, “Roteiros para uma Vida Curta” e “Oito do Sete”, entre outros.


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ARTIGO

O APLICATIVO DOS SONHOS carlos felipe moisés O que seria de nós sem as centenas, os milhares de prestimosos aplicativos à nossa disposição? A sensação é de que o dia a dia seria o caos. Antigamente, uma voz sábia nos alertava: “Don’t leave home without it”, e graças ao alerta descobrimos, maravilhados, como o dinheiro de plástico é imprescindível. Hoje, essa mesma voz diria: “Nem pense em começar o dia sem eles, os aplicativos”. E ficaríamos sabendo que já não somos sequer capazes de imaginar como foi possível viver, antes disso. Aí estão, para gáudio de todos nós, os aplicativos. A vida para valer, finalmente, começa agora. Você anda meio atrapalhado com extratos bancários e congêneres? Baixe o aplicativo certo e pronto: verificar saldos, pagar contas, transferir um dinheirinho pra cá, outro pra lá – tudo isso, e muito mais, em poucos segundos, ao alcance de dois ou três toques de dedos, nas teclas ou na telinha. É por isso e para isso que vivemos na chamada era “digital”. Mú-

sica, cinema? Não perca tempo saindo por aí à procura do que lhe interessa, sempre trombando com o que não lhe interessa. Baixe o aplicativo adaptado às suas preferências (se preferir, pode chamar de “customizado”) e só ouça ou veja o que de fato vale a pena ser visto ou ouvido. Bateu aquela fome, repentina? Não se desespere com a perspectiva de horas perdidas no trânsito, à procura da cantina, do restaurante ou do barzinho que lhe satisfaça o apetite. Com o aplicativo certo, você receberá em casa, em poucos minutos, a comidinha desejada. E por aí vai. Não tem fim, não é mesmo? Hoje temos aplicativos para tudo. E pare de se preocupar com a impressionante variedade de ofertas: existem aplicativos que o ajudam a procurar os aplicativos de que você precisa. O risco, irrelevante, é você se esquecer do que precisa e achar que só precisa de... aplicativos. O que fazer com eles não pode ficar para depois?


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Sempre haverá uma tarefa ou função às quais o novo aplicativo, como o nome diz, se aplica. Se você ainda não sabe, logo ficará sabendo. O importante é calcular a energia que você poupa, o tempo que ganha – tempo e energia a serem aproveitados, claro, para baixar mais aplicativos. Não hesite, não seja cético: baixe todos. E dê o devido valor à rara sensação de segurança que advém de estar devidamente preparado (você ainda não tem todos os aplicativos do mundo?) para enfrentar toda e qualquer tarefa que apareça pela frente. O que de fato conta não é o que fazer, mas como fazer, com a certeza inabalável de que, seja o que for, você será bem sucedido. A vida para valer... Rimbaud e outros sonharam,

um dia, com a “verdadeira vida”, sonho irrealizável, coisa de poeta. Nós não precisamos nem devemos sonhar, é só desfrutar da verdadeira vida que os aplicativos, em boa hora, nos oferecem. Se você não acabou de nascer (essa é, aliás, a condição ideal: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”, como dizia outro poeta, Alberto Caeiro), e já conta com alguns anos na bagagem, poucos ou muitos, tanto faz, talvez se lembre daquele tempo em que as pessoas se martirizavam, querendo saber quais as suas “reais” (?) necessidades, quais as tarefas ou compromissos que realmente valia a pena assumir. Coisa de um passado longínquo, a ser esquecido. Hoje, você não tem mais necessidades, no plural, tem uma só: acumular aplicativos.


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Desde que ingressamos nessa era bem-aventurada (confesso que não sei quando isso começou, mas tanto faz: hoje sabemos que sempre foi assim), eu não tenho a menor dúvida: aí está, finalmente, a vida para valer, a verdadeira vida. O que se espera é que cada um tire o melhor proveito disso, cada qual à sua medida. Sim, é verdade: os aplicativos se multiplicam, seu número cresce a todo instante. Mas a cada um de nós é não só facultado como obrigatório imprimir às suas escolhas a sua marca pessoal, exclusiva. Ninguém está aqui para aplicar mecanicamente (outra vez, os aplicativos!), a seja lá o que for, a fórmula mágica que os inimigos da liberdade nos tentarem impingir. Cada caso é um caso, e só graças aos milhares de aplicativos à nossa disposição é que essa antiga verdade pode ser efetivamente confirmada. Cada caso é um caso... Pois é, o meu é simples. Dentre as muitas tarefas às quais me dedico, uma há, só uma, que é, para mim, absolutamente vital, imprescindível: analisar e interpretar poemas. É o que tenho feito, a vida toda, sempre com renovado prazer, apesar das crescentes dificuldades. E não abro mão. Por que? Porque, dentre as tarefas que já tentei realizar, essa é a única imune à repetição, à rotina. Assim como cada caso é um caso, cada poema é um poema. Analisar e interpretar um deles não é tarefa que possa ser reduzida a uma fórmula, a uma receita aplicável a qualquer outro. Por essa razão é o que mais gosto de fazer, é o que tenho feito, e continuo a fazer, como se cada vez fosse a primeira vez. E também como se fosse a última. (Você vê alguma incongruência nisso? Se a resposta for afirmativa, então esse tema – o aplicativo dos

sonhos – não é para você.) Se analisar e interpretar um poema pudesse ser convertido em fórmula, nem valeria a pena tentar. Que graça pode ter dedicar-se a esta ou àquela tarefa sabendo de antemão onde se vai chegar? Nenhuma novidade, nenhum desvio, nenhum imprevisto, nenhuma surpresa? Melhor nem chegar perto. Eu disse, mais acima, “receita ou fórmula aplicável a qualquer poema”... Pois é, aí temos, outra vez, os ”aplicativos”. Por isso não me sai da cabeça: um aplicativo para analisar e interpretar poemas. Para mim, é o aplicativo dos sonhos, dos meus sonhos. A primeira vantagem seria desobrigar os poetas, quase sempre constrangidos, de fazerem acompanhar seus poemas da competente declaração de intenções: aqui ou ali eu quis dizer isso, acolá tencionei dizer aquilo, e por aí vai. Só um bom aplicativo seria capaz de demonstrar que declarar ou adivinhar intenções não é analisar nem interpretar, e que, se o caso for “ler um poema”, especular sobre as intenções é um mau começo. A segunda vantagem seria provar que ler um poema não se limita a passar os olhos pelas palavras que o constituem, e, com alguma reverência, concluir: gostei. Ou não gostei. Gostar é só um ponto de partida, aliás imprescindível, mas é necessário que isto se dê antes de ler. Ler é o que acontece, ou não acontece, depois, e consiste em verificar o que foi realmente dito e não que intenções levaram o poeta a escrever. É bem diferente, por exemplo, de distinguir entre mão na bola e bola na mão. Onde mais, além do reino encantado do futebol, na cabeça de árbitros e comentaristas, as intenções contam para alguma coisa?


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Ler um poema é tarefa que exige reflexão apurada, foco, atenção, concentração, conhecimento de causa, senso de objetividade, capacidade de discernir, deduzir, armar raciocínios, desenvolver argumentos plausíveis, aceitar que algo pode ser isto e aquilo, ao mesmo tempo, sem que sejamos obrigados a optar por isto, em detrimento daquilo, ou vice-versa. Se você achar que esses atributos valem para qualquer tarefa, menos para “ler um poema”; se você achar que ler um poema nem tarefa é, não passando de inócuo passatempo, estritamente pessoal, subjetivo, intransferível, que não pode ser traduzido em palavras; então, repito: o meu aplicativo dos sonhos não é o aplicativo dos seus sonhos. Eu alertei: cada caso é um caso. O seu, evidentemente, é outro. Qual é, então, o seu caso? Qual é o seu aplicativo dos sonhos? Claro, entendo perfeitamente: você não tem tempo a perder com isso. Todo o seu tempo há de ser consumido na doce tarefa de colecionar aplicativos, todos os aplicativos do mundo, não é verdade? Então, seja coerente (afinal, nunca se sabe): inclua no seu repertório um aplicativo para analisar e interpretar poemas. De repente aparece um por aí. Um aplicativo? Sim, ou quem sabe um poema. Mas será só o aplicativo dos sonhos, jamais se converterá em realidade. Não porque não haja no mundo inteligência suficiente para se servir da lógica binária, dos algoritmos e dos protocolos, para criar a tão desejada (por mim, claro) ferramenta. Não seria fácil, reconheço, mas nada impossível. Tal aplicativo jamais poderá ser baixado para o seu tablet ou smartphone porque é economicamente inviável. A pergunta que determina a criação de aplicativos

não é “para que serve?” e, sim, “quanto custa?” e, mais ainda, “quanto vale?”. Um aplicativo para analisar e interpretar poemas custaria muito. E não valeria nada. Você não acredita? Continua cético? Então (ficção por ficção, esta seria só mais uma), faça o teste: ofereça, na sua rede social, um fantástico aplicativo para analisar e interpretar poemas, cobre a bagatela de R$ 0,10 (isso mesmo, dez centavos – de real, não de euro ou dólar) pelo uso ilimitado da licença, e prepare-se para o resultado. Quem se interessaria pela esplêndida maravilha? Qual seria a demanda? Por isso é que nenhuma plataforma se interessaria no vultoso investimento necessário à consecução de tão preciosa engenhoca. Então (que remédio?) vou continuar sonhando. Analisar e interpretar poemas? Por enquanto, só à moda antiga, à margem do admirável mundo novo dos aplicativos.

Carlos Felipe Moisés é poeta, ensaísta, tradutor e professor aposentado da Universidade de São Paulo. Autor de “Disjecta membra” e “Poesia não é difícil”, entre outros.


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ENSAIO

ALGUMAS diego vinhas É bastante consolidada (na fronteira de um clichê, talvez) a ideia de que uma época, um recorte temporal, estético, político, dificilmente é de fato compreendida por seus atores imediatos, da mesma forma que não se distingue bem um objeto excessivamente perto dos olhos. A necessidade do distanciamento – ao que em geral se acrescenta o adjetivo histórico – torna tão escorregadio o terreno do “contemporâneo”, onde, no caso da poesia, adensam-se outras questões também como a dificuldade de sua inserção no circuito mercadológico, circunstância que não raro se atribui a um suposto hermetismo de uma parte significativa da produção atual. Por certo o quadro é mais complexo, e permeia o nosso não-projeto de leitura, a aridez da feição utilitarista dos currículos escolares que há muito conhecemos. Mas isso é outra história, e nos interessa,

aqui, uma breve investigação sobre esta condição do contemporâneo, vocábulo que, nas palavras de Giorgio Agamben, revela “aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém de seu tempo”. A colocação do filósofo italiano, todavia, não traz qualquer viés depreciativo (de incivilidade ou algo do gênero) na escuridão, sendo esta antes uma face daquilo inalcançável. Ser contemporâneo, assim, “significa ser capaz de não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”. Nesta definição – que de certa forma contém, mas ultrapassa, o mero fator cronológico – de contemporaneidade, talvez se insira um linha em comum com vários nomes da poesia brasileira hoje. Na obra Monodrama (7 Letras, 2009), o autor carioca Carlito


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DAS POSSIBILIDADES DO CONTEMPORÂNEO:

S ESCOLHAS Azevedo inicia o longo poema “Margens” com o verso epigramático “Nem achar, nem procurar: só perder”. No mesmo livro, em outra peça de fôlego (“O tubo”), a certa altura lê-se que “nenhum poema/ é mais difícil/ do que sua época”. A estranheza da própria vida, assim, contamina e molda a poesia. E a escrita tateia aquilo que já se perdeu, como neste trecho do poema “De uma foto”, do livro “Sob a noite física” (7Letras, 1996): “E é apenas foto, mas permite/ olhar o jarro, e contemplar no jarro// a mão que em certo instante se dispôs/ ao movimento-jarro, e ver na mão// a idéia-jarro acionando um feixe/ que toda coisa unida estilhaça, / separa em mil”. Embora com dicções diversas, outros autores transitam neste mesmo terreno marcado pela instabilidade, em que a escrita, em permanente deslocamento, não se reconhece em uma zona de conforto.

Sobre Renato Mazzini, poeta de Santa Fé do Sul (SP), sobre o qual o também poeta Heitor Ferraz escreveu que “Suas imagens, sempre carregadas, criam uma beleza plástica, ao mesmo tempo em que se lançam para o impasse em conseguir fixar um determinado sentimento que se transforma o tempo inteiro e não se deixa fixar”. Embora tais palavras se refiram ao livro de estreia (“Paisagem com dentes”, Oficina Raquel, 2009), não seria infundado estendê-las também ao recente “Aqui Começa a Antártida”(Patuá, 2015), onde Mazzini expande sua habilidade em engendrar territórios voláteis, como no arranjo bonito e improvável do poema “Clube de desfibrilação”: “(Você vê perder como/ a certa contraposição de/ distâncias/ a fuga no dorso de um inseto/ (asas abandonadas no dia/ seguinte, a garagem um/ campo de guerra amanhecido,/ silencioso)/ alguém tocando um vibrafone/ alguém tocando um bandolim// Você vê


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em perder/ uma pessoa fumando no escuro/ um furo aceso num painel negro/ se perguntando se seria essa/ a mais perfeita antítese de luz”. Eduardo Jorge, autor de “San Pedro” (edição do autor, 2004),“Espaçaria” (2007), “Cadernos do Estudante de Luz”(2008) e “A Casa Elástica (Minisséries” (2015), os três últimos publicados pela Lumme (SP), trabalha uma poesia mutante, que, para usar a expressão blanchotniana, trava uma conversa infinita, promíscua, com o cinema, as artes visuais e a filosofia, da qual os poemas parecem sempre fragmentos de um discurso maior, cujo registro é impossível, cuja própria conclusão é impossível. Podemos citar ainda vários outros nomes que cultivam projetos igualmente instigantes. Carlos Augusto Lima, autor de “Vinte e Sete de Janeiro” (Lumme, 2008) e alguns pequenos livros-objetos-provocações, que desafiam nossa própria tradição livresca e, segundo ele mesmo, são “projetos de ação poética” e “feitos para desaparecer”, trabalha o espaço doméstico, que é feita das coisas da casa e também das lembranças (inventadas ou não), como uma superfície líquida, deformável, embora mantendo um equilíbrio de lirismo e delicadeza, tal como nos versos finais de um poema sem título: “os meninos brincam./ a via-crúcis tem muito de circo,/ de maravilhoso e rancor aos seis anos de idade./ percorro um vento/ o movimento ancestral / dos barcos/ a procissão dispersa/ avalanche de nuvens./ dor é aquilo que não é.”

Um dado de certa ilegibilidade é matéria da poesia de autores tão diversos quanto o consagrado Age de Carvalho e o pernambucano Delmo Montenegro, este com uma poesia de fragmentos altamente condensada. A elipse é cara a ambos, bem como a Annita Costa Malufe e Marília Garcia, que, além do tom escorreito dos textos, por vezes longos, problematizam, cada uma à sua maneira, as armadilhas do subjetivismo e do tom confessional, desmontando-os em uma indeterminação que atinge o tempo, vozes e personagens dos poemas. Do cenário brasileiro de hoje, estas são apenas algumas escolhas, sem qualquer pretensão de um critério de “verdade” para classificar em rankings a qualidade da produção poética. Mas, antes disso, somente apontar trabalhos que parecem sempre desconfiar do real, da rotina, esta ilusão de continuidade. Milan Kundera, nos ensaios de “A Cortina”, pondera em determinado momento que “atrás da fronteira do incontestável (...) estende-se um espaço infinito, o espaço do aproximativo, do inventado, do deformado, do simplificado, do exagerado, do mal-entendido, um espaço infinito de não-verdades que copulam, se multiplicam como rato se se imortalizam.” Na esteira do que Agamben propõe para a definição do contemporâneo, parte da atual poesia brasileira mais interessante aposta neste falta, na impossibilidade, como que insistindo em caminhar em uma superfície cuja característica traduz, de certa forma, a própria experiência do poema: movediça.


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Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó/SC: Argos, 2009. AZEVEDO, Carlito. Monodrama. Rio de Janeiro/RJ: 7 Letras, 2009. Sob a noite física. Rio de Janeiro/RJ: 7 Letras, 1996. FERRAZ, Heitor. Poesia em trânsito. Trópico, maio 2005. KUNDERA, Milan. A cortina. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2006. LIMA, Carlos Augusto de Lima. Vinte e sete de janeiro. São Paulo/SP: Lumme, 2008. MAZZINI, Renato. Aqui começa a Antártida. São Paulo/SP: Patuá, 2015.

Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980. Publicou os livros de poemas “Primeiro as coisas morrem” (2004) e “Nenhum nome onde morar” (2014), ambos pela Editora 7 Letras (RJ).


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RESENHA

AI QUE FEDOR D AI QUE VONTAD gê martins Um ciborgue serial killer que detecta políticos corruptos pelo odor. Esse é o pseudoprotagonista de Distrito Federal (Patuá, 2014, 273 páginas), novo romance de Luiz Bras, alter ego do escritor Nelson de Oliveira. A história se passa num futuro pós-humano ou quase, em que os homens vivem cerca de 150 anos com órgãos artificiais, braços mecânicos e pernas de metal.

O Curupira de Bras encarna no corpo do ciborgue e segue em uma cruzada macunaímica, caçando as vítimas pelo cheiro e dilacerando-as até que o odor insuportável de corrupção pare de exalar. Último de sua espécie, ele quer vingança contra aqueles que destruíram seu mundo, hoje minimizado em um decadente Cerrado. Entre um assassinato e outro, contudo, a mente do hospedeiro se sobrepõe à do Curupira, que vai ganhando pensamentos mais humanos que selvagens. Começa, por exemplo, a querer reconhecimento pela maneira impecável como disseca os corpos e os deixa para ser encontrados pela polícia.

Entretanto, apesar da temática essencialmente futurista, não é um complexo sistema eletrônico que o assassino usa para descobrir seus alvos. Mas sim o olfato de um personagem bastante conhecido do folclore nacional: o Curupira, entidade protetora das matas, comumente representada por um rapaz de cabelo vermelho, com pés virados para trás.

Voz hipnotizante

É esse demônio das florestas que sente literalmente o fedor da imoralidade política nessa “rapsódia pós-futurista”, como a qualifica o próprio autor — a propósito, rapsódias são composições poéticas de versos livres, sem rimas clássicas, forma narrativa utilizada na obra.

Se Luiz Bras teve o arrojo de criar esse inusitado protagonista parte homem, parte máquina, parte curupira, foi ainda mais ousado na construção de uma hipnotizante e fragmentada narrativa em versos livres, com o recurso do narrador em segunda pessoa - isto é, quando o narrador dialoga


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DE CORRUPÇÃO! DE DE MATAR! com a personagem, algumas vezes se assemelhando a um conselheiro íntimo, mas a personagem não interage com ele. Em Distrito Federal, a voz da narração é feminina e tão marcante, que, tal como o Curupira domina o humano, a linguagem doce e irônica da narradora toma a mente de nós, leitores desavisados. É por essa voz que descobrimos também histórias paralelas que ocorrem no Distrito Federal e em todo o país. Como um efeito catártico, surgem novos justiceiros com a velocidade de uma progressão geométrica frenética. Eles buscam homenagear o protagonista, caçando e imitando pobremente o jeito do Curupira de dilacerar órgãos. O grupo se chama Máquina Macunaíma - também título de uma coletânea de contos do autor. Outro relato tocante é o do robô grafiteiro subversivo, que sai do esconderijo à noite para desenhar monstros pela cidade. A temática da obra dele é sempre política.

E como a narradora sabe de todas essas histórias? A minha aposta é que ela seja uma inteligência artificial cheia de questionamentos existenciais, como este que abre o livro: “SERÁ QUE UM DIA, SEM SABER, AMANHECEREI ROCHA? Nuvem? Meu desenvolvimento físico & mental às vezes me preocupa. Tento enxergar os desdobramentos do que faço. Do que sou. Porém logo tudo vai ficando embaçado. O amanhã embaralha o ontem. O ontem embaralha o hoje. Artimanhas do princípio da incerteza, disse o velho professor. Melhor parar de tentar prever o imprevisível.”

Gê Martins é escritora, jornalista e integrante do Palavraria Coletivo Literário.


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CAE

BREVE RELATO SOBRE A EXPERIÊNCIA DO CENTRO DE APOIO AO ESCRITOR DA CASA DAS ROSAS


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reynaldo damazio Inaugurado em outubro de 2012, o Centro de Apoio ao Escritor (CAE) do museu Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, casarão tombado como patrimônio histórico da cidade de São Paulo, tem por objetivo formar e orientar escritores no uso da escrita criativa e nos possíveis caminhos de acesso à carreira e ao mercado literário. Além do apoio aos escritores, o CAE também forma leitores qualificados e mediadores de leitura. Em pouco mais de dois anos de atuação, o CAE já atendeu mais de 20 mil pessoas em sua programação presencial, à distância e em parcerias com instituições culturais. Entre as muitas atividades desenvolvidas pelo CAE, como oficinas de criação (presenciais e online), cursos de pequena e média duração, palestras, debates, fóruns sobre direitos autorais e financiamento de projetos culturais, grupos de leitura e de estudos, revista eletrônica, workshops em cidades do interior do Estado e parcerias com feiras e festivais literários, destacam-se também o Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe) e o SOS Literatura – Pronto Atendimento. O Clipe tem duração de um ano, dividido em oito módulos mensais, cada um ministrado por um professor-escritor diferente, com temática igualmente diversa, em dois encontros semanais. São trinta vagas e os alunos são estimulados a produzir textos criativos ao longo do curso, que são comentados e divulgados ao final do percurso. Duas turmas já se formaram, em 2013 e 2014, com realização de sarau e publicação de livros. Alguns alunos conquistaram prêmios de incentivo para publicação.

O processo de seleção de candidatos ao Clipe realizado em janeiro de 2015 teve 940 inscritos para 30 vagas. A demanda levou a coordenação do CAE a ampliar o número de vagas para 40. Esse curso é hoje reconhecido pelo público ligado à literatura e tem crescente repercussão na imprensa. Sua proposta é oferecer uma formação mais ampla nos gêneros literários, em prosa e poesia, com a prática da leitura e da criação, a partir de autores clássicos e contemporâneos, bem como em linguagens experimentais. Por outro lado, os alunos também trabalham com processos de confecção de livros, fanzines, e-books, questões de mercado literário, jornalismo cultural, crítica e ensaio. Animado com o sucesso dessa iniciativa, o CAE inaugurou no segundo semestre de 2014 uma versão do Clipe para adolescentes, com idades entre 14 e 19 anos, em um modelo reduzido de quatro módulos, com resultados animadores, tanto pelo envolvimento e produção dos jovens, como pela avaliação positiva dos professores, que ficaram encantados com os textos produzidos pelos alunos ao longo do curso. No projeto SOS Literatura – Pronto Atendimento, o CAE reúne profissionais das áreas de literatura (criação), produção editorial e gráfica, direitos autorais, e-books e marketing de escritores e imprensa para atenderem diretamente ao público, durante uma tarde, mediante a inscrição e retirada de senhas. Trata-se de uma iniciativa pioneira em orientação e contato direto entre profissionais do meio literário e candidatos à carreira de escritor, para solucionar dúvidas técnicas ou estéticas. Em 2015 serão realizados quatro edições do SOS Literatura na Casa das Rosas e outras versões reduzidas serão apresentadas em eventos literários em outras cidades, com menos profissionais, mas em áreas estratégicas.


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O atendimento do CAE é permanente no cotidiano do museu Casa das Rosas, em visitas e reuniões no local, ou pelo site, e-mails e redes sociais. Em breve será implantado o atendimento ao público por internet, com transmissões de oficinas, saraus e conversas com escritores, ampliando o alcance e os serviços do CAE para além do espaço físico do museu. Hoje o CAE já disponibiliza em seu site oficinas online gravadas e programas de televisão com entrevistas, resenhas, dicas para escritores e comentários sobre autores clássicos. A Casa das Rosas também apresenta exposições relacionadas com literatura, como a recente dedicada ao poeta Augusto dos Anjos (!884-1914), autor de um único livro de poemas que figura hoje entre os mais editados e de maior circulação na literatura brasileira, a despeito, ou talvez por isto mesmo, de sua linguagem estranha aos padrões da época ao utilizar terminologia científica nos poemas. Além das exposições de maior fôlego, também são realizadas periodicamente pequenas mostras a partir do acerco bibliográfico do poeta Haroldo de Campos (1929-2003), um dos fundadores do importante movimento vanguardista de poesia concreta, no final dos anos 1950.

A atuação do CAE não é isolada e faz parte de um contexto hoje no país de intensa presença de cursos para formação de escritores e de estímulo à escrita criativa, como os do Instituto Vera Cruz, da Academia Internacional de Cinema, da galeria Barco e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre outros. De certo modo, tais iniciativas têm como patrono, ou inspirador, o trabalho do escritor gaúcho Assis Brasil, que realiza há 30 uma oficina literária junto ao programa de pós-graduação de Letras da PUC do Rio Grande do Sul, dedicada exclusivamente ao trabalho com narrativa e que tem revelado autores importantes no cenário da literatura brasileira atual. Segundo Assis Brasil, “não sendo o fim e nem o começo de nada, as oficinas demonstram ser uma passagem, e de reconhecido proveito”. Ao criar o Centro de Apoio do Escritor da Casa das Rosas buscou-se também inspiração na experiência do escritor Mario Bellatin com a Escola Dinâmica de Escritores, no México, que matinha uma grade de cursos original e instigante, com assuntos e professores de várias áreas do conhecimento e não especificamente literários. Ainda que não tenha sido possível, infelizmente, reproduzir um programa se-


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melhante, optou-se pelo espírito inventivo daquele projeto, ou seja, por seu conceito de estimular amplamente os processos de criação artística, que transcendem a simples teoria e a historiografia, mas lança suas raízes no inconsciente, no repertório cultural e na experiência de vida de cada autor. O breve relato aqui pretende não só compartilhar a trajetória recente de uma experiência de ensino da escrita criativa e da formação de escritores, oferecida por uma instituição pública, subsidiada por recursos da Secretaria de Cultura do Estado, através de uma Organização Social (OS), em uma grande metrópole como São Paulo, como ressaltar a existência de uma demanda crescente e consistente por cursos desta natureza, com um vivo interesse pela discussão e prática de recursos técnicos do texto literário, sua avaliação crítica e posterior circulação por diversos meios, impressos ou eletrônicos. Talvez revele ainda que o trabalho com literatura, especialmente na dimensão criativa, ainda pode representar uma opção de inserção social, de intervenção na realidade, de busca por uma realização pessoal intensa e radical, na contramão dos padrões capitalistas de emprego, utilidade e pragmatismo. Não será um paradoxo que no momento de inten-

sificação das desigualdades sociais, de fragilidade social e embates ideológicos a literatura encontre sua função de documento da barbárie, como escreveu Walter Benjamin, para além do entretenimento, ou a despeito dele. O crescimento da prática e da reflexão sobre literatura, democraticamente, pode contribuir para uma maior consciência crítica de autores e leitores, ambos cidadãos do mundo. Nos alunos atendidos regularmente pelo Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas, ou nas consultas à distância, percebe-se claramente a busca de ferramentas e orientações para a profissionalização na carreira de escritor, ao lado de questões relacionadas propriamente à estética e à escrita. O crescente interesse por cursos de escrita criativa no Brasil e sua pluralidade de ofertas parece também contradizer um preconceito arraigado na tradição de nossa literatura, vinculada historicamente às elites, de que a escrita literária é um dom, talento inato, um privilégio, por assim dizer, e que, portanto, não poderia ser ensinada ou aprendida. Ainda existe uma grande resistência nas universidades para inclusão de disciplinas de escrita criativa e oficinas de criação de textos. Em sua quase totali-


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dade, as faculdades de Letras oferecem cursos de história da literatura e teoria literária, para formar professores e pesquisadores acadêmicos, não escritores. Curiosamente, enquanto as turmas das oficinas de criação literária aumentam significativamente, assim como a oferta de cursos e oficinas, os cursos universitários de Letras têm cada vez menos alunos. Iniciativas como as do CAE contribuem para o aperfeiçoamento da escrita e da leitura, para ampliar e aprofundar a discussão crítica da literatura, para a democratização do acesso à cultura e para a difusão da produção literária, sem o compromisso estrito com resultados imediatos, sucesso ou modismos. Em primeiro lugar está a formação de escritores e leituras, a construção de um repertório pessoal a partir da compreensão e da apreensão crítica de grandes autores e da tradição literária, brasileira, latino-americana e internacional. É preciso que o leitor e o candidato a escritor tenham consciência de sua atuação como criadores de novas linguagens ou abordagens do real, assim como de sua atuação no contexto social e literário, levando em conta as dimensões ética e estética da escrita. Não existe autor que não seja antes um grande leitor.

Em um segundo momento, a tarefa do CAE é orientar escritores nos possíveis caminhos de realização e difusão de suas obras, em diálogo com as novas tecnologias e com as condições do mercado editorial, sem cair no paternalismo vicioso e simplificador. Ao contrário, o que se pretende é discutir e colocar em prática os meios alternativos de publicação, propostas de viabilização e circulação de textos, muitas vezes além do convencional. Não é proposta do Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas ensinar a ser escritor, ou distribuir em grande escala diplomas de escritores, mas oferecer recursos de formação, profissionalização e divulgação para aqueles que ousem enfrentar o árdua desafio da escrita criativa, tendo como foco o trabalho com a palavra. A boa literatura sempre escapa das fronteiras pré-estabelecidas, do lugar comum e da banalização, buscando suas trilhas na invenção e na rebeldia, na renovação permanente da linguagem e no desafio ao pensamento, para encontrar leitores cada vez mais exigentes e tão inquietos quanto seus autores de cabeceira. [texto apresentado em Bogotá, no Primeiro Encontro de Programas de Criação e Escrita Criativa das Américas]


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Reynaldo Damazio é editor, crítico literário, poeta e coordenador do Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas formado em Sociologia. Autor de “Horas perplexas” (2008) e “Com os dentes na esquina” (2015), entre outros..


realização


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