2 minute read
Airton Souza - Marabá / PA
amanhã, em silêncio, meu pai saberá plantar auroras na carne de deus
Airton Souza - Marabá / PA
Advertisement
para todos os pais que morreram pensando na necessidade de plantar estrelas meu pai nunca ouviu a palavra auschwitz por isso sustentou a morte da própria mãe em suas unhas sujas de primaveras talvez ele sentisse vontade de limpar todas as lonjuras acinzentadas sobre a carne preta da mãe dele ou desabitar o cheiro dos bárbaros impregnando de outros paraísos abraçados pela voz de deus a quem meu pai nunca compreendeu
feito um calcário aberto de misérias e sem saber soletrar o abismo a mãe de meu pai tinha nos olhos a fome de quem não saberia fabricar uma única noite para os desertos nem consolar qualquer pretérito nas gargantas silenciadas dos inocentes
foi através da carne preta de sua mãe que meu pai semeou o alfabeto das pedras como se aquilo fosse a polissemia dos campanários enquanto isso a mãe dele mirava a dicção triste das papoulas fazendo de si mesma pequenos mocambos que servirão amanhã para comover as estrelas
meu pai nunca ouviu o nome auschwitz porque na boca dele os escombros nomeiam vírgulas em vez de azuis & espalha no meio de sua língua candeeiros acesos e grafados de saudades. atravessado pelos cômodos da casa meu pai guardava o cheiro das guirlandas
para vociferar melancolias contra os ossos quando dezembro não fosse mais quermesses ele, incandescido pelo que há de mais triste no amor, soube purificar ontem, mais que deus, a clarividência das asas em ruínas quando desabitava a ausência das enseadas ou umedecia de contornos destroçados o próprio corpo nu antes da cidade
meu pai, incrustado de neblina, pronunciou uma única vez nuvens na via crucis de seu corpo e depois trouxe nas unhas inconcebíveis vazios capazes de distinguir: o pão, o chão e as estrelas forçado a rezar por necessidade meu pai passou a entender de séculos e ilhas como se em suas asas de silêncios migrassem a fome dos que jamais saberão os sentidos dos epílogos foi na mudez dos peixes que meu pai arrastou cicatrizes e geologicamente passou a ter mais medo de deus que da luz
o que sabia meu pai sobre as guerras mais do que de sua própria fome? de vez em quando emergia de suas mãos a introdução do corpo de sua própria orfandade e aquilo fazia meu pai esquecer a dimensão de não aperfeiçoar o ódio ou amar cada vez mais o cheiro da carne de deus
com o nu das árvores dentro da boca todas as manhãs quando ele falava: amor o cheiro que saia de entre seus dentes era o que de ele nunca seria capaz de escrever o desconsolo das nuvens jamais semearia alfazemas em seu peito para argumentar se amanhã terminaria de compreender a comoção das janelas.