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SÁBADO E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2014 || O NACIONAL
Viúva da principal vítima da ditadura em Passo Fundo fala sobre os horrores enfrentados pelo marido durante regime militar no país
Gerson Lopes/ON A cada final de tarde ela corria até o portão de sua residência e fixava o olhar em direção à Praça do Hospital da Cidade, acompanhada de um aperto no peito que só aliviava quand o conseguia ver a figura do marido retornando do trabalho. Cinquenta anos após o golpe militar que depôs o presidente João Goulart, em 1964, Leda Teresinha de Freitas,75, viúva do advogado e jornalista João Baptista Mello de Freitas, apontado como princ ipal vítima da ditadura em Passo Fundo, falou pela primeira vez para um veículo de imprensa sobre o pesadelo vivido durante os “anos de chumbo”. Leda recebeu a reportagem de O Nacional, no final da tarde de quarta-feira, em seu apartamento, no centro da cidade, acompanhada do filho, o também advogado Adolfo Freit as. Nas últimas cinco décadas foi a segunda vez que ela decidiu quebr ar o silêncio. Na primeira, concedeu uma entrevista para o professor José Ernani de Almeida, mestre em história, publicada em 2005 no livro Denuncismo & Censura nos meios de comunicação de Passo Fundo – 1964/1978. Numa conversa de aproximadamente duas horas, intercaladas por momentos de muita emoção, ela recor dou da infância no município de Estação, dos primeiros flertes com João, a vinda para Passo Fundo, e principalmente, do sofrimento do casal a partir do golpe de 64. Descrito pela esposa como um homem de comportame nto reservado e um talento nato para o jornalismo, João iniciou cedo na militância. Fez parte do Grêmio Estudantil Nossa Senho ra Conceição, entidade ligada à União Estadual e Gaúcha de Estud antes, até chegar ao clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). Uma trajetória devassada pelo Serviço Nacional de Inteligênc ia (SNI), a partir de 1962, quando participou de uma cobertura jornalística sobre o conflito agrário na Fazenda Annoni, em Pontã o. O envolvimento político aliado às funções de redat or-chefe de O Nacional, onde assinava colunas, e o cargo de funcionário da Câmara de Vereadores, despertaram a atenção dos milit ares. “Ele ouvia a voz do Brasil fazendo anotações, depois redig ia os textos a partir das informações. Tinha uma cabeça incrível” conta Leda. Dois meses após o golpe, Freitas sofreu sua primeira prisão, juntamente com toda a bancada de vereadores do Parti do Trabalhista Brasileiro (PTB). O grupo foi levado para Porto Alegr e, permanecendo detido por cerca de uma semana. “Éramos noivos nesta época. Recebia as cartas que ele mandava da prisão demonstrando a preocupação comigo e com a família dele. Aquilo era apenas o começo de um sofrimento que se estendeu por vários anos” recorda
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O NACIONAL || SÁBADO E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2014
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Edição empastelada
Fragmento da única carta que chegou até as mãos de Leda durante o período em que João esteve preso em local desconhecido, em Porto Alegre
O regime se preparava para completar o primeiro aniversário no poder quando o casal Freitas e o jornal O Nacional, sofreram o mais duro revés da ditadura em Passo Fundo. Numa ação arquitetada pelo então comandante do I/20º Regimento de Cavalaria, capitão Grey Belles, a edição do dia 29 de março de 1965, trazendo a manchete ‘Guerrilheiros desbaratados’ foi empastelada por militares e impedida de ser distribuída na manhã seguinte. João, à época com 27 anos, acabou preso e levado para Porto Alegre. “Eu estava grávida de minha primeira filha. Naquela noite, eu e o João, acompanhados de minhas duas irmãs, fomos ver um filme no cine Coral. Ele nos deixou em casa e voltou para o jornal. Lembro que no caminho havia muito panfleto espalhado pelas ruas com conteúdo criticando o primeiro ano do regime. Pelo que sei, o capitão Grey esteve no jornal e levou um exemplar. Depois os militares voltaram e empastelaram a edição. Ainda deixaram um recado para que o João comparecesse ao quartel. Ele foi de sangue doce, sem saber do que se tratava. No outro dia não apareceu mais em casa, entrei em desespero. Não sabia o que fazer.” conta. Autorizada a visitar o marido, ela o encontrou em uma sala, espécie de quarto, com vários livros, quadros na parede e um sofá. “Eu chorava muito abraçada nele. Ficamos cerca de uma hora juntos. Grey dizia que ele era o responsável pelos panfletos espalhados pela cidade” lembra. Dias depois, a situação se agravou ainda mais com a transferência do jornalista para um endereço não informado, em Porto Alegre. “Na quarta-feira, quando o encontrei, ele me disse que iriam libertar duas pessoas. Ficamos esperançosos de que uma delas seria o João, mas não foi nada disso que aconteceu”, afirma. João permaneceu 35 dias detido em um prédio antigo, onde por muito pouco não foi implodido com ele dentro. Leda conta que funcionários chegaram ao local com os equipamentos para a implosão quando um guarda avisou de que havia um homem preso em uma de suas peças. Desse período, a única notícia recebida pela esposa foi uma carta escrita pelo marido e que chegou até suas mãos poucos dias antes de ele ser libertado. “Nesta prisão, ele era obrigado a repartir migalhas de pão com os ratos para não ser atacado. Meus pais vieram de Estação para me buscar. Não fui. Disse que tinha de ficar para ajudar meu marido. As pessoas comentavam nas ruas. ‘Lá vai a mulher do preso’. ‘Será que ele vai voltar’. ‘Será que ela vai continuar casada com ele’. Entendo que era por falta de informação, mas machucava mesmo assim. Foram tempos difíceis” lamenta. Mesmo tendo sido libertado após a pressão política desencadeada pelo diretor de O Nacional, Múcio de Castro, da qual participaram deputados estaduais, o jornalista continuou sendo perseguido pela ditadura. Impedido de trabalhar por determinação dos militares, permaneceu seis meses em casa. A sobrevivência vinha graças ao descumprimento da ordem do exército para que a Câmara de Vereadores, onde era funcionário contratado, não pagasse seus salários. “O curioso é que quem pagava era um militar. Após a prisão ele foi efetivado como funcionário do jornal pelo Múcio” diz a esposa. Freitas ainda retornaria para a prisão em 1966, quando evitou mais uma ação de censura contra o jornal. O fato foi relatado na obra Denuncismo & Censura, do professor José Ernani, a partir de um relato deixado pelo próprio jornalista. No texto, afirma que um oficial da Brigada Militar pediu que lhe entregasse as matérias redigidas antes de serem encaminhadas à impressão. Atendendo ordens do diretor Múcio de Castro, Freitas solicitou um pedido por escrito do oficial. O militar desistiu da ação, mas logo em seguida determinou a prisão do jornalista, que ficou dois dias detido no quartel da Brigada Militar, acusado de manter ligações com um grupo que planejava um ataque terrorista. A vida de Freitas seguiu sendo rastreado pelos militares nos anos seguintes. O controle era tanto, que até mesmo para realizar uma pequena viagem ao município de Estação, onde moravam familiares da esposa, era preciso um salvo-conduto. Ele continuou escrevendo suas colunas, no entanto, elas não eram publicadas.
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FOTOS: REPRODUÇÃO/ARQUIVO HISTÓRICO SÁBADO E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2014 ||SÁBADO O NACIONAL E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2014 || O NACIONAL
Manchete que resultou no empastelamento de O Nacional em 29 de março de 1965
Silêncio sobre os dias na prisão
João retornou de Porto Alegre com a saúde bastante debilitada. Durante os anos de convívio com a esposa e seus três filhos, nunca entrou em detalhes sobre o que realmente aconteceu no período da prisão. A possibilidade de ter sofrido tortura física é uma hipótese muito provável para a família. “A gente tentava abordar o assunto, mas não encontrava ressonância. Ele sempre evitou” revela o filho, Alfredo Freitas. Um comportamento, segundo ele, característico de alguém que passou por algo desta natureza. “Sempre foi um homem muito reservado. Eu o questionei por várias vezes, mas respondia superficialmente e fugia do assunto. Com os amigos era a mesma coisa” diz a esposa.
Guinada política
A biografia de João Freitas ainda reservaria um fato marcante na sua trajetória política. Em 1971, surpreendentemente ele filiou-se à Arena, partido de sustentação do governo e, passou a integrar o governo do prefeito eleito, o tenente-coronel Edu Villa de Azambuja, substituto de Grey Belles no comando do I/20ª RC. “Meu pai era um municipalista. Tomou esta decisão porque tinha vontade de trabalhar pela cidade e recebeu a oportunidade. Se sentiu valorizado e aceitou o desafio” observou o filho, Adolfo Freitas. A figura mais perseguida pelo regime militar em Passo Fundo faleceu aos 54 anos, vítima de câncer. Como homenagem pela trajetória, a rua de acesso à prefeitura leva o seu nome, assim como as salas da procuradoria da Câmara de Vereadores e do Grêmio dos Funcionários Inativos Município de Passo Fundo (Gresim). “João era um idealista. Tenho muito orgulho do que ele fez. Todos nós sofremos, mesmo assim, me sinto privilegiada, porque tem muita gente esperando até hoje a volta de seus familiares para casa. Espero que isto nunca mais aconteça no Brasil” disse Leda, bastante emocionada.
“A lei está abaixo do tacão da minha bota”
Diretor do jornal O Nacional, Múcio de Castro Filho tinha 12 anos à época em que militares invadiram a redação, empastelaram a edição do dia 29 de março, e prenderam João Freitas. Apesar da pouca idade, ele acompanhou o episódio e toda a campanha liderada pelo pai, Múcio de Castro, para a libertação de João Freitas. “Grey era de São Gabriel, inclusive meu pai intercedeu para que ele viesse comandar o exército de Passo Fundo. Chegou como capitão, depois foi promovido a major. Logo após o golpe ele ficou em cima do muro, em seguida, passou perseguir filiados do PTB e opositores do regime militar” revela. Na noite em que a edição foi empastelada, Múcio de Castro Filho conta que Grey esteve no jornal para tratar da publicação de uma nota e saiu levando um exemplar da edição do dia seguinte. Pouco tempo depois, retornou e apreendeu toda a edição. “Assim que meu pai recebeu a informação por telefone, foi armado para o jornal, mas os militares já haviam saído”. A partir da prisão de João, ON passou a denunciar, através de seus editoriais, as ações truculentas e inconstitucionais dos militares. O caso repercutiu em todo o Rio Grande do Sul. Múcio de Castro mobilizou deputados na Assembleia Legislativa. “Meu pai, juntamente com o juiz Eurípedes Fachini e do então prefeito Mário Menegaz, foram até a casa do Grey pedir para que João fosse solto. Na oportunidade, ele disse que a lei estava abaixo do tacão da bota dele. Então, o Múcio respondeu que se ele colocasse os pés no jornal seria recebido à bala. Por conta disso, a empresa sofreu pressões econômicas, não conseguiu modernizar o parque gráfico durante todo o período da ditadura” observa.
Mobilização pela soltura do jornalista João Freitas repercutiu no país