Revista pzz

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POESIA A POética do fundo de gaveta LITERATURA O ROMANCE “VALENTIA” DE DÉBORA GOLDENBERG cinema UM DIA QUALQUER DE LÍBERO LUXARDO POR ADVALDO CASTRO FILOSOFIA EDNA CASTRO E ESTELLA GUIMARÃES reflexões DE BENEDITO NUNES teatro A MATUTAGEM DOS PÁSSAROS JUNINOS POR MARTON MAUÉS música MESTRES CARDOSO E CUPIJÓ POR ELIENTON AMADOR ECONOMIA CRIATIVA PÓLO JOALHEIRO ensaio Fotográfico RENATO CHALU PACHECO

COLEÇÃO

AZULEJOS de belém

a estilista ana miranda desenvolve uma arte conceitual que reinventa a moda ao criar coleções de alta costura INSPIRADAS NOS AZULEJOS PORTUGUESES DO SÉCULO XVIII


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PZZ: Indústria Criativa da Amazônia No Brasil a questão da # CULTURA AMAZÔNICA tem sido objeto-sujeito da Revista PZZ que busca atuar, dialogar e construir o conceito de #REVISTA no campo das #ARTES VISUAIS e INTEGRAR as diversas linguagens artísticas e expressões simbólicas da nossa cultura onde a arte em relação à sociedade, assume um papel fundamental para a compreensão, desenvolvimento econômico, reflexões e transformações sobre a realidade. Parte significativa das próximas páginas, dedicamos ao artigo Benedito Nunes e reflexões sobre a Amazônia desenvolvido pelas professoras Edna Castro e Maria Stella Guimarães, através do resultado de estudo realizado pelo NAEA, no sentido de interpretar a Obra do paraense Benedito Nunes sobre a Amazônia, o Pará e Belém. A interpretação reflexiva do humanista, que retrata nossa região, é importante para a história das ideias e dos aspectos culturais, filosóficos, literários, históricos que devem estar presentes nas representações da região, nos seus projetos de desenvolvimento e na avaliação crítica dos processos sociais. As charges do filósofo desenvolvidas por Ubiratan Porto, João Bosco, Luiz Pinto e Junior Lopes mostram de forma irreverente a imagem do filósofo da Estrella. A relação entre Arte e Sociedade é abordada magistralmente pelo historiador Aldrin Figueiredo através de uma tela histórica do acervo do Museu de Arte de Belém - A Fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará, considerada desde a sua apresentação, há cem anos, a obra-prima de Theodoro Braga (1872-1953). Porém, a história desse objeto de arte, imerso em diferentes memórias, remonta uma longa tradição da pintura histórica no Brasil das últimas décadas do século XIX. Olhando o tema de hoje, o que se nota é uma verdadeira oscilação dos valores da estética [e por que não dizer do próprio ethos da obra] na bolsa das artes públicas e do patrimônio nacional. Que solução encontrar após tantos rompimentos? Uma anti-poesia? Uma nova austeridade? A destruição dos artifícios (o metafórico, os estados elevados, o sujeito poético como emissor do discurso, o mito) numa poesia que se quer tão comunicável como o é a prosa? Uma sintaxe elástica? Uma expressão direta? O grupo de ação poética “Fundo de Gaveta” procurava observar ecleticamente essas tendências e entrou para a história do movimento poético da cidade. O romance “Valentina”, da paulista Deborah Kietzmann Goldemberg foi indicado ao Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Advaldo Neto, em seu artigo traz análise histórica e social sobre a capital paraense através do filme “Um Dia Qualquer” do cineasta pauliistano Líbero Luxardo, que se estabeleceu em Belélm em 1939 com o sonho de realizar cinema na Amazônia. Elielton Amador, jornalista, editor do site Pará Música e mestrando em Comunicação, Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará, fala de dois mestres da cultura. No momento em que se fala em economia criativa, um versão pós-moderna das industrias culturais, é importante lembrar quanto “conteúdo” mestres como Cardoso, Cupijó e tantos outros (alguns ainda vivos) deram para um soft power da cultura popular da Amazônia. Mauro Barbosa é artista visual e começou a realizar seus trabalhos sobre um ótica da degração do meio ambiente relacionado a vida dos ribeirinhos. Começou a retratar e a ter esse olhar amazônico, a partir de elementos do seu cotidiano e de sua vivência no interior do Estado, de onde por muitos anos viveu e se criou na beira do rio. Seu trabalho expressa o ribeirinho, o caboclo e o cotidiano desses personagens, a forma como ele vive, a questão cultural e ambiental. E continuando a abordagem da Economia Criativa no Estado, destacamos as ações do Pólo Joalheiro e do e-commerce Amazônia Criativa. No especial da revista, a estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reiventa a moda, ao desenvolver coleções de Alta Costura inspiradas nos azulejos portugueses do século XVIII e de fibras naturais da amazônia. Fazer uma coleção de moda inspirada no patrimônio histórico da cidade é a maneira da estilista de denunciar a degradação em que se encontra este patrimônio. De forma a contribuição da estilista para a necessária preservação é conceber uma moda que dialoga com as mais variadas manifestações culturais da cidade, como literatura, dança música, teatro e cinema. Vestir-se com a cidade: é a moda como um ato de resistência. Boa Leitura

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Diretoria Executiva Carlos Pará e Fábio Santos Editor Responsável Carlos Pará 2165 - DRT/PA Editor de arte/Projeto Gráfico Rilke Penafort Pinheiro Produção Executiva Vicente Franz Cecim, Pavel Fernandes, Pedro Vinna, Narjara Oliveira, Virginia Cecim. Fotógrafo Bruno Pellerin Computer to Plate Hélio Alcântara Impressão: Gráfica Sagrada Família Distribuição Belém, Pará, Brasil.

A Revista PZZ é uma publicação mensal da Editora Resistência Ltda Cnpj : 10.243.776/0001-96 Issn: 2176-8528 Assessoria Jurídica: Alfredo Nazareth Melo Santana 11341 OAB-PA Contatos (91) 3351-5188 - 9616-4992 - 9616-3400 email revistapzz@gmail.com Twitter @revistapzz Facebook REVISTAPZZ cartas Av. Duque de Caxias, 160 Loja 14 - cep.: 66.093-400 Marco - Belém - Pará - Amazônia - Brasil site revistapzz.com

parceiros


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foto: Bruno Pellerin / ecirene baars - make up

itinerário

literatura 10

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poesia: a poética do Fundo de Gaveta, movimento literário do início da década de 80 em Belém do Pará que agia em prol da liberdade de criação e da renovação poética. lançamento: Debora Kietzmann Goldemberg descreve a resistência ribeirinha na revolução Cabana.

entrevista 22

Tito Barata - Coordenador do Projeto MEMÓRIA do IAP nos fala do atual contexto da instituição.

audiovisual 24

cinema: Um Dia Qualquer (1962), primeiro longametragem integralmente produzido no Pará, pelo cineasta paulista, Líbero Luxardo. Analisado o contexto histórico e aspectos socias dessa obra de cinema, o pesquisador Advaldo Castro Neto.

filosofia 34

A estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reinventa a moda, ao desenvolver coleções de alta costura inspiradas no universo amazônico. Desde quando montou seu primeiro ateliê, sua arte busca sempre enveredar pelo caminho da moda regional que dialoga com as tendências globais. Fazer uma coleção de moda inspirada no patrimônio histórico da cidade é a maneira da estilista de denunciar a degradação em que se encontra este patrimônio. De forma a contribuição da estilista para a necessária preservação é conceber uma moda que dialoga com as mais variadas manifestações culturais da cidade, como literatura, dança música, teatro e cinema. Vestir-se com a cidade: a moda como um ato de resistência. Resistência que é potencializada em uma coleção de roupas com padronagem inspirada nos azulejos e apresentada por um seleto grupo de artistas que representam o efervescente cenário cultural de Belém: Alba Maria, Ana Unger, Cacau Novais, Camila Honda, Diana Flexa, Gigi Furtado, Juliana Sinimbu, Keila Gentil, Nani Tavares, Nanna Reis, Adriano Barroso, Alberto Silva, Cláudio Barros, MG Calibre e Salomão Habib, dirigidos por Cláudio Barros.

biografia: O artigo extraído do Boletim do Museu Emilio Goeldi, Benedito Nunes e reflexões sobre a Amazônia, desenvolvido pelas professoras Edna Castro e Maria Stella Guimarães, do NAEA.

dramaturgia 48

teatro: Pássaros juninos do Pará: a matutagem e suas relações com o cômico popular medieval e renascentista, por Marton Maués.

música 54

Mestres da Cultura: Elielton Amador fala dos Mestres, Cardoso e Cupijó, que deram para um soft power da cultura popular da Amazônia. lançamento: Gláfira Lobo, cantora, produtora e militante, lança seu primeio disco, “Jardin de Flores”.

moda 60

Ana Miranda: A estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reiventa a moda, ao desenvolver coleções de Alta Costura inspiradas nos azulejos portugueses do século XVIII e de fibras naturais da amazônia.

economia 74

criatividade amazônica: A indústria criativa no Polo Joalheiro e a economia criativa na amazônia, desenvolvida a partir de um conceito sustentável, dá uma nova forma ao papel da economia genuína amazônica

ensaio 82

fotografia: Meta Ver-O-Peso, instaura uma temporalidade cíclica, um vai-e-vem infinito, indicando que a obra está sempre em movimento em uma paralelo estático com a poesia.

documentário 89

O Batismo Visual, a imagemn mítica da Obra: A Fundação da cidade Nossa Senhora de Belém do Pará por Theodoro Braga analisada por Aldrin Figueiredo.

artes plásticas 94

Belém Escrita a Fogo - O artista visual Mauro Barbosa escreve a fogo e de multiplas formas a realidade amazônica.

turismo 100

Roteiros Geo-Turísticos: Uma experiência para melor conhecimento e difusão do patrimônio urbano de Belém 6 www.revistapzz.com

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Que pris達o tem a chuva se quando cessa continuamos dentro dela? Poeminha do Ronaldo Franco


literatura

poesia

a poética do fundo dE gaveta texto que apresenta a terceira publicação do grupo de poetas, fundo de gaveta, revela a inovação e a regeneração na poesia em belém na década de 80. por João de Jesus Paes Loureiro

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arquivo vasco cavalcante

E

a poesia - seu principal instrumento de to pela espacialização, construtivismo, comunicação com o universo e os ho- valorização da estrutura do poema, esmens - a serviço daquilo que reinstitui pacialização expressiva, ratificação da sua própria verdade sopalavra, cerebralismo cial em política”. Na verdade, é fato conhecido na composição, idealisMax Bense observa que, mo poético, a volúpia a afirmação de que o mundo no trato diário, os cidada transgressão verbal, dãos interpretam a imu- capitalista, na medida em que a linguagem como leito acolhe a criação poética, é tabilidade da linguagem de prazeres, a exótica da vinculada à imutabilida- hostil à poesia. Então, um dos defloração verbal. de dos costumes. A clas- mecanismos da poesia para não Em muitos casos o pose que não quer mudar, se degradar, seria o hermetismo. ema fecha-se sobre sí não aceita a mudança da Sendo poesia necessária, poderia mesmo, feito concha, linguagem. Assim, acaba sobreviver pela ambiguidade, um cofre que se contém, sendo a linguagem uma pela convivência com a negação, uma fechadura que se espécie re autoridade que fecha. Em outros, abrepela recuperação através do mantém a ordem estabe-se á comunicação mais mito. sta é a terceira publicação do grupo de lecida. A poesia seria o austera até os limites de ação poética “Fundo de Gaveta”. instrumento capaz rs romper com isso. uma poética da prosa. Há casos de uma É o grupo que sem a preocupação teó- Transformar os valores. Daí decorrer, dicção debochadamente ao estilo Paurica, manifesta e preocupa-se, acima de como pensa Adorno, que mesmo que o -Brasil, uma linguagem macunaímica tudo, em ler poesia. Um fazer que revela poema não seja diretamente engajado, é (Pratos Regionais). Há muitos em que a experiência que só a praxis criadora é engajado. predomina o jogo dadaísta de palavra capaz de oferecer. Isso não impede, é cla- Na verdade, é fato conhecido a afirma- puxa palavra, um colar de sons enfiados ro, que se veja essa produção de poesia ção de que o mundo capitalista, na me- pela linha dos versos, pelos linossignos. no contexto geral da produção poética dida em que acolhe a criação poética, Encontramos exemplos de captação de da modernidade. é hostil à poesia. Então, um dos meca- impressões urbanas (1a Carta Crônica) Tem-se discutido a missão social do po- nismos da poesia para não se degradar, em fina ironia. E a aura perdida. Uma eta. Os concretistas viam isso no ato de seria o hermetismo. Sendo poesia neces- atmosfera de “Geléia Geral”, de Torquao poeta impedir a dissolução da lingua- sária, poderia sobreviver pela ambigui- tos, de Caetanos. São frequentes os casos gem. Já por sua vez, Alfredo Bosi con- dade, pela convivência com a negação, em que o poético é revelado os efeitos do sidera a missão social do poeta como a pela recuperação através do mito. significante ou recursos retóricos como de “doador de sentido”. O Surrealismo e o o eco e as assonâncias. O efeito surreal O poeta é o nomeador. Dadaísmo quiseram decorrente de um deslocamento dos Seu espaço é o do de- Que solução encontrar após tantos romper a arte como significados (monumento aos mortos rompimentos? Uma anti-poesia? sejo e o da liberdade, concepção histórica, e feridos / pela rádio atividade sexual / Uma nova austeridade? A destrui- até então mantida. Ten- Erosão exoticancerógena / das ideoloraté onde a condição original de doador de ção dos artifícios (o metafórico, os taram anular o antigo, gias.). Algumas estruturas passam a ser sentirc sobreviva. Sen- estados elevados, o sujeito poético embora não sabendo o próprio significado (“Sombras dessa do o nomeador, fará como emissor do discurso, o mito) ainda o que seria o rua”). A realidade oclusa (“Requiem de seu discurso um numa poesia que se quer tão co- novo. Mas, novo era para 7 quedas”). O poder dramático discurso inaugural. Em municável como o é a prosa? Uma o procedimento. Sua aumentado pela composição indirecta todo caso, podemos sintaxe elástica? Uma expressão arma: a ironia. Que so- do poema. Ele é todo um só bloco melembrar um poeta que lução encontrar após tafórico. O dito pelo não-dito. A dupla direta? 0 grupo de ação poética é também um importantos rompimentos? ausência, pois, no poema que celebra a tante teórico da poesia: “Fundo de Gaveta” procura obser- Uma anti-poesia? Uma ausência de Sete Quedas, o referido está Mário Faustino. Em var ecleticamente essas tendências. nova austeridade? A ausente. Em casos como “o Cine, etc.” um de seus “Diálogos (João de Jesus Paes Loureiro) destruição dos artifí- o poema desdobra-se como metáfora de Oficina”, pela voz de cios (o metafórico, os de um único verso: “ - o carnaval das um de seus personagens diz: “. . . parece- estados elevados, o sujeito poético como imagens - “Esta é a chave que estrutura -me lícita a posição do artista que coloca emissor do discurso, o mito) numa po- o livre, o lógico-ilógico jogo de ritmos e esia que se quer tão comunicável como ideias. São alguns exemplos. São lapidao é a prosa? Uma sintaxe elástica? Uma ções de um poliedro poético. expressão direta? Exemplos de uma atividade poética que, O grupo de ação poética “Fundo de Gasem os nervos expostos de preconceitos Da esquerda para a diveta” procura observar ecleticamente que empedram a visão aberta da criação, reita: Willian Silva, Jorge essas tendências. Há em seu trabalho mostram poetas que têm um olho na paEiró, Vasco Cavalcante, atual, preocupação com a palavra, gos- lavra e o outro na vida. Celso Eluan e Zé Minino www.revistapzz.com 11


poesia Jorge Eiró

Celso Eluan

Elásticos membros blindados bailando plásticos O aço do espinhaço derretido a frio acolhendo-me human atômica ogivagina nuclear À paz mundial finalmente a bandeira branca erguida trémula no mastro do oh!ho megalito meu! A pomba da paz bicando o nervo de granito deste monumento aos mortos e feridos pela radio atividade sexual Erosão eróticancerógena das ideolorgias.

Uma imensa águia Seu nome: esquecimento em vôo delirante circunda feroz o planeta - verme indefeso na caótica dimensão do infinito

Vasco Cavalcante

o CINE

rola o fogo nas paredes que escoram o orgasmo do meu cérebro-pierrot - o carnaval das imagens o VIDEO CASSETE dos homo sapiens no lençol da cama azul-batom ferve a onça e mela a fronha no tinir das portas das meninas. . .

ZOAR DE BUZINAS, RUSH, CAMPAINHAS,

o som das aves agora destorcido reto, duro, matemático rasga a tela na escuridão redonda das cadeiras

o pierrot muda a cena e corta os punhos na geração das formas que jaziam no corredor das avenidas.

Zé Minino O pensar estilhaçou dia (des)igual tal a vez igual lágrima despencou trapézio (desproteção) Tarde-noite estridente cigarra adorável reservados sinos tocam e tocam Ecoam (segredos horários tropicais) Há metamorfose: pássaros-morcegos Quarto-crescente saudade ensolarada restou Vento noturno (vestes frias) foto-elétricas atiram artificiais , raios-de-luz lençóis urbanos 12 www.revistapzz.com

Yrubezerra

entrenoite acasalar sonhos sob lençóis noturnos amargo armar de possuir a casa o planeta placenta azul IRA mira de sangue sons metálicos elementos atómicos acasalar casca e ovo amargo armar de construir CIMENTO & BARRO sexo sarro acasalar naufrágios secretas sereias quatro paredes acasalar pernas umbigos coxas vaginas acasalar orgasmos sob lençóis azedos nuvens manchas

acasalar censuras

Alguns segundos de indecisão e suas garras pousam céleres no hemisfério terceiro mundista O continente sul americano' sangra desesperado ( uma ferida aberta alimenta os micróbios enquanto a cabeça da terra voa longe nas garras seguras da águia )

réquiem para 7 quedas Nesta noite há de pousar um tigre olhos ferinos dentes de carne recente Passará pela cidade desafiando loucos e tolos e nada nada acontecerá exceto uma luz que se extinguirá numa janela para sempre fechada Capa da terceira publicação do grupo de ação poética “ Fundo de Gaveta. Um coletiuvo que sem sem a preocupação teórica manifesta, preocupa-se, acima de tudo, em fazer poesia. Este livro foi lançado na Feira do Livro de 2012.


Yrubezerra

crepúsculo

“Sic itur ad astra”

a loucura sempre naufraga na solidão dos mares e muitas vezes chega às praias num farfalhar de espumas serão os recifes espumas? a linguagem da rocha somente o silêncio ouve e decodifica enfim . . . a morte da noite um homem sem máscaras o mito da morte sem músculos e lágrimas o ressuscitar de um peixe sêmen sem escamas enfim . . . o (in)finito sem princípios nem fim

Zé minino Sombras dessa rua vento lírico folhas, flores, frutos mangueiriços - Tive tempo de vê-los cair. Em breve sombras jaziam outras chegavam invasão. Sombras dessa Av. ar concreto cimentos, tijolos, homens urbânicos - Tive tempo de vê-los subir. Alguns cair... Em breve... Da esquerda para a direita: Willian Silva, Vasco Cavalcante, Jorge Eiró e Celso Eluan

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literatura

a valentia dos

CABANOS

ressoa

Renata Forato

Deborah Kietzmann Goldemberg resgata a resistência cabana em livro que mistura ficção e realidade

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A

memória da Cabanagem paraense ganhou ressonância na escrita da paulista Deborah Kietzmann Goldemberg. O fato é relevante, uma vez que a historiografia nacional insiste em esquecer em detalhes a maior revolução popular contra o império português no país. Mais do que rememorar um evento quase esquecido, “Valentia” (Grua, 2012) traz o fato histórico para a sua contemporaneidade. É verdade que houve uma guerra que aconteceu entre os anos de 1835 e 1840 na província do Grão-Pará e que dessa guerra saíram vitoriosos os colonizadores, custando a vida de quase metade da população da época – talvez 40 mil vidas. Mas que guerra foi essa? Quem eram aquelas pessoas? O que delas sobrou? A lembrança vaga, passada de pais para filhos. É o que nos diz Deborah, que intercala um relato ficcional com depoimentos de descendentes dos cabanos ribeirinhos que habitaram e guerrearam às margens dos rios Tapajós e Arapiuns, na região do município de Santarém, Baixo Amazonas. Ela, que também é antropóloga, participou (com mais uma dúzia de pesquisadores, jornalistas e cineastas paulistas e paraenses) de uma espécie de expedição, a Caravana da Memória Cabana, organizada pelo Frei Florêncio Vaz, ele mesmo antropólogo indígena. Daí nasceu a inspiração para as desventuras de Samaúma, filho de um índio e de uma francesa que viaja pelo Tapajós após a retomada de Belém pelo governo

por Elielton

Amador

em 1836, onde tenta organizar uma resistência. Entre histórias recheadas de sangue e paixão, com toda a visceralidade que todos os relatos guardam daquela guerra, Samaúma vive os dilemas entre a guerra e o amor, entre as suas identidades, entre a prática e o idealismo. Uma escrita direta e vibrante que resgata a fala e a linguagem dos nativos – há um quê da mitologia fantástica no realismo direto de Deborah. Os relatos dos ribeirinhos de hoje recolocam a Cabanagem no plano do real, de onde sobrevém a injustiça que permanece. Talvez um “estrangeiro” devesse ter esse olhar sobre os fatos da nossa história para que possamos, então, resgatá-la e ressignificá-la. Quilombolas, indígenas aculturados em busca de uma nova antiga identidade. Seremos nós? Os “ribeirinhos”, que ninguém sabe exatamente quem são, tornam-se um pouco mais vivos a cada relato. “Muita gente nova chegando para achar a história adormecida! Sejam bem-vindos à nossa senzala. Isso é muito bom, porque nós vamos acabar e a história vai ficar”, diz um dos relatos contemporâneos e anônimos presentes no livro de Deborah.

O romance “Valentina”, da paulista Deborah Kietzmann Goldemberg (foto ao lado) foi indicado ao Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. “Valentia” chega no rastro de outros livros recentes sobre a Cabanagem, escritos por observadores de fora da região, como “A Miserável Revolução das Classes Infâmes” (Ed. Record, 2005), de Décio Freitas, escritor gaú-

cho que faleceu logo após mandar o livro para a prensa. Mostra, apesar da ignorância da historiografia oficial, o crescente interesse pelo tema. O livro reacende esse interesse documental sem perder o valor criativo de uma literatura contemporânea. Não à toa, “Valentia” foi indicado ao prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, concorrendo com outras 22 obras contemporâneas incluindo os últimos livros de Bernardo Kucinski e Nélida Piñon. Em sua narrativa rápida, em primeira pessoa, Deborah mostra as angústias da personagem principal e cria tensões crescentes na trama. A história tem espaço inclusive para um judeu que às margens do rio leva e traz guerrilheiros de ambos os lados sem tomar partido. Mas não há espaço durante muito tempo para ficar em cima do muro em qualquer guerra. Assim como os seus personagens, Deborah sabe disso. Nascida de uma família de formação sincrética, ela se converteu ao judaísmo, religião do pai, aos 23 anos. Hoje, é casada com um ortodoxo russo agnóstico. Essa diversidade a deixa pender, em identificação, de maneira quase apaixonada pelos relatos cabanos. “Foi muito interessante encontrar judeus mundurukus durante a viagem”, contou ela. Deborah confessa na entrevista que se segue pelas próximas páginas que sua vontade é ajudar a difundir a memória da Cabanagem entre a população da Amazônia, pois mesmo entre os habitantes da região há quem ignore o fato. “Gostaria que esse livro fosse lido em rodas de leitura pela Amazônia afora”, diz ela ao final do romance em nota da autora. Confira a seguir trechos da entrevista que Deborah concedeu por e-mail, de São Paulo, onde mora com o marido Nicolau e a pequena Pauline, sua filha de dois anos. www.revistapzz.com 15


Carlos Eduardo de Magalh達es

literatura

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“Caravana da Memória Cabana”, realizada na região dos rios Tapajós e Arapiuns, em Santarém, com pesquisadores, jornalistas paulistas e paraenses. As mulheres, à esqueda, são descendentes de cabanos da região e forneceram relatos orais, para a pesquisa, sobre a guerrilha. Os depoimentos serviram de inspiração para o enredo do livro “Valentina”, da antropóloga Deborah Kietzmann Goldemberg. As fotos da Caravana são dos fotógrafos Karime Rubez e Clodoaldo Correa

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literatura PZZ - Por que você escolheu a Cabanagem como tema para seu livro? Deborah - O livro nasceu de um convite do Frei Florêncio Vaz (de Santarém) para eu embarcar numa caravana fluvial pela região onde houve a resistência ribeirinha da Cabanagem, para colher a memória da história que as mulheres idosas guardavam com elas. Ele conduz um trabalho de valorização cultural na região de longo prazo. Achei interessante entender o que levou aqueles homens e mulheres a se rebelarem de tal forma. É comum dizer que no Brasil o povo é manso, mas naquela instância eles foram valentes. Outro fator de interesse foi de que os índios, negros e mestiços se uniram nesta guerra. Além de haverem líderes brancos, como em outras insurreições, esta realmente popular e mobilizou as massas. PZZ - A impressão que temos aqui, na Amazônia, é de que a Cabanagem é um momento histórico ignorado ou negligenciado pela história oficial do Brasil. Você concorda com essa impressão? O que justifica isso, na sua opinião? Deborah - Sim, é um momento histórico da maior importância, mas pouco conhecido e negligenciado em todo o Brasil. Mesmo em Santarém, poucas pessoas se interessam pelo tema. As razões disso, a meu ver, são que a história é sempre contada pelos vencedores e o fato de que os perdedores que sobreviveram (e seus descendentes) provavelmente quiseram esquecer uma história tão sangrenta e sofrida. Isso acontece com sobreviventes do holocausto, por exemplo. Muitos preferem esquecer. PZZ - Como surgiu a ideia da Caravana da Memória Cabana? Deborah - Tudo começou com o convite do Frei Florêncio Vaz. Eu o conheci numa conferência de antropologia em Porto Seguro. Identificamo-nos imediatamente, eu escrevi uma crônica sobre algo que vivenciamos juntos e ele guardou isso com ele. Quase dois anos depois, confiou a mim a tarefa de colher as histórias da Cabanagem. Convidei vários artistas paulistanos, mobilizando-os com o meu entusiasmo - o cineasta 18 www.revistapzz.com

Cris Burlan, a fotografa Karime Rubez, o jornalista Nicolau Kietzmann, o antropólogo Leandro Mahalem de Lima e, principalmente, a ilustradora de Valentia, Aline Binns. PZZ - Como foi escolhido o roteiro da Caravana que captou os relatos que deram origem ao seu romance? Deborah - O Frei Florêncio organizou um roteiro de visitas em Santarém e nas margens dos rios Arapiuns e Tapajós, com base no conhecimento dele na região. Priorizou os lugares onde havia mais pessoas idosas e interessadas na história da Cabanagem. Íamos parando nas comunidades, sendo recebidos por líderes comunitários e conversando com as pessoas.

“A Cabanagem é um momento histórico da maior importância, mas pouco conhecido e negligenciado em todo o Brasil. Mesmo em Santarém, poucas pessoas se interessam pelo tema.” PZZ - Apesar de ser um evento histórico negligenciado, há uma literatura regional sobre o tema. Você conhece essa literatura? Deborah - Eu conheço os livros de Márcio Souza e Décio Freitas, a dissertação de mestrado de Leandro Mahalem de Lima (que participou da Caravana conosco) e li diversos folhetos que recebemos durante a viagem. Tentei não me influenciar tanto por essa literatura. Utilizei-a (particularmente o trabalho de Leandro) para calcar o romance no tempo histórico correto, incorporar alguns eventos e personagens históricos essenciais. No mais, preferi me deixar influenciar pelas vozes dos comunitários. PZZ - Você acha que poderia definir a Cabanagem? Como você a definiria? Deborah - Não sei se sou qualificada para isso! Concordo com o intelectual Caio Prado Jr. que é a revolução


Ilustração de Aline Binns presente no livro “Valentina” mostra reunião de várias etnias indígenas para preparar a resistência cabana no Tapajos. Deborah - Eu busquei escrever literatura, ir além de escrever um livro sobre a Cabanagem. É um romance de apelo universal, para os que vivem na Amazônia ou no Japão. No entanto, como digo na nota da autora ao final do livro, meu sonho é que ele seja vastamente lido em rodas de leitura na Amazônia. Isto se dá no sentido de gratidão por tudo o que vivi nesta região e porque acredito que isso possa ajudar a esta história ser devidamente valorizada. PZZ - Como foi o processo criativo? Transformar relatos históricos em uma narrativa ficcional?

O livro da escritora Deborah Kietzmann Goldemberg (ao lado) nasceu de um convite do Frei Florêncio Vaz, de Santarém, para ela embarcar numa caravana fluvial pela região onde houve a resistência ribeirinha da Cabanagem, para colher a memória da história que as mulheres idosas guardavam com elas.

popular mais importante do Brasil. Durante a viagem, a impressão que fiquei foi que Cabanagem é o rótulo genérico dado a várias revoluções que aconteceram num período histórico, pequenas e grandes, coordenadas ou não, mas integradas pelo efeito do estouro da “panela de pressão” que foi a tomada de Belém. Aquilo inspirou muitos a agirem contra a opressão que pairava na região. PZZ - A que público seu livro é destinado? Como você acha que seu ele vai contribuir para a formação de jovens principalmente de outras regiões do país que não tem muito acesso a esse conhecimento?

Deborah - O processo criativo aconteceu de duas formas. A história de Samaúma foi totalmente ficcional, inspirada pela sensação que tive na viagem, mas desprendida dos relatos que colhi (apenas mantendo o eixo dos fatos históricos). Os relatos foram anotados num diário de viagens. Alguns tinham muito potencial ficcional e na hora que as pessoas narravam, eu já sabia que iam entrar no livro. Outras não tinham este potencial, mas seu conteúdo era importante para o livro. Essas deram mais trabalho. Tive que trabalhar com elementos destes depoimentos e tecer um enredo ou uma linguagem que viabilizasse a inclusão delas no livro. No final, algumas dessas acabaram sendo as mais divertidas. Um exemplo é a conversa transcrita do Skype. Esta é a mágica de trabalhar no limiar da realidade e literatura. PZZ - Finalmente, quando você pretende vir ao Pará novamente divulgar o teu livro? Deborah - Eu gostaria muito de ir. Idealmente, eu faria um lançamento em Belém, São Luís e Manaus. Quem sabe, a partir de um convite, para garantir que haja um público interessado. Vamos torcer por isso. NA REDE:

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Tito Barata

bruno pellerin

entrevista

A MEM MAPE DASART tito barata, COORDENADOR DO PROJETO MEMÓRIA IAP, concede entrevista especial a pzz Tito Barata desde cedo, teve sólida formação cultural pela leitura dos livros da biblioteca do pai, o professor e poeta Ruy Barata, com quem teve a oportunidade de aprender sobre as coisas da Amazônia. Exerce jornalismo desde a década de 70 na televisão, fazendo, sobretudo, jornalismo político e cultural, tendo atuado como repórter, apresentador e comentarista. Tito, além de jornalista, tem formação em Direito e presta consultoria de comunicação e marketing. Atualmente, dirige a área de literatura e expressão de identidade do Instituto de Artes do Pará e coordena o “Projeto Memória IAP”. PZZ – Atualmente, diriges a área de literatura e expressão de identidade do Instituto de Artes do Pará e coordenas o “Projeto Memória IAP”, nos fale sobre esse projeto. Tito – O projeto “Memória IAP”, do Instituto de Artes do Pará, iniciou no ano passado, e visa, numa primeira fase, estender-se por todo o ano de 2013, no sentido de recuperar, em registros orais e escritos, toda a memória artística paraense dos anos 1950 a 1970. O projeto é grande e exi-

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MÓRIA EO EAMENTO RTES NO PARÁ ge muita dedicação dos profissionais de vários segmentos envolvidos na pesquisa. Nessa primeira fase, vamos focar na música, nas artes cênicas e na literatura.

esmaecida de familiares e amigos dos compositores que já faleceram. Tudo ficará registrado em partituras, que serão publicadas sob o formato de songbooks, com o perfil de cada autor e sua época. Algumas dessas músicas terão registros em CDs.

PZZ – Por que o período escolhido, para iniciar o projeto, foi o dos anos 1950 a 1970? Tito – Nosso objetivo não é lançar livros de história ou fazer pesquisas históricas, mas recolher as memórias de uma época. Escolhemos os anos 50 e 70, porque, dessa época, ainda temos muita gente viva, personagens que já passaram dos 60 anos – e que hoje podem prestar depoimentos esclarecedores sobre uma época fértil da criação artística paraense, quando não havia tantos meios de divulgação como se tem hoje. PZZ – Como é que o projeto está estruturado para acontecer? Tito – Dividimos o projeto em partes. Na música, por exemplo, sob a coordenação do maestro Tinnôko Costa, faremos um inventário da música popular feita no Pará nesse período. São músicas que não tiveram gravações ou qualquer outro tipo de registro. Muitas delas estão apenas na memória dos autores ou na lembrança

PZZ – E na literatura? Tito – Vamos recuperar e publicar,

O projeto “Memória IAP”, do Instituto de Artes do Pará, iniciou no ano passado, e visa, numa primeira fase, estender-se por todo o ano de 2013, no sentido de recuperar, em registros orais e escritos, toda a memória artística paraense dos anos 1950 a 1970.

todo o acervo do suplemento “Arte e Literatura” do extinto jornal “A Folha do Norte”, que era dirigido pelo escritor Haroldo Maranhão. O suplemento contou com a participação da mais brilhante geração de intelectuais paraenses, como o próprio Haroldo, Benedito Nunes, Mário Faustino, Ruy Barata, Max Martins, Paulo Plínio Abreu e Cauby Cruz, que gravitava em torno da figura ímpar do professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes, o Chico Mendes. PZZ – E nas artes cênicas? Tito – É importante preservar a memória do teatro que se fez no Pará, a partir do final dos anos 1950, tendo como figuras de proa as irmãs Angelita Cursino Silva e Maria Sylvia Nunes, esta também responsável pelas artes cênicas na TV Marajoara, então www.revistapzz.com 21


entrevista

Tito Barata

emissora dos Diários Associados, inaugurada no início dos anos 1960. Maria Sylvia, hoje aos 82 anos, gravou um longo depoimento em vídeo, com tecnologia HD, contando, como naquele quadro do “Fantástico”, da TV Globo, “O que vi da vida”, o que viu na vida. Claro que é apenas uma alusão. Seu depoimento é riquíssimo e ficará para as novas gerações totalmente preservado. Gravamos, ainda, com o professor paulista Carlos Eugênio Marcondes de Moura, hoje também aos 82 anos, que participou da criação e formação de atores da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará. PZZ – A professora Maria Sylvia já não merecia um livro com suas memórias? Tito – Claro. Faz parte também do projeto. Ainda neste primeiro semestre lançaremos edital a fim de contratar um ghost writer para escrever as memórias da professora Maria Sylvia. Pelo edital, jornalistas ou escritores poderão apresentar seus projetos para executar a tarefa. O vencedor será escolhido por uma comissão presidida pela própria Maria Sylvia. PZZ – E quais os principais desafios do IAP nesse projeto? Tito – Não só nesse projeto. O IAP, como um todo, tem desafios muito importantes. A missão institucional do IAP é identificar, pesquisar, aperfeiçoar e divulgar a criação artística e cultural do Pará, mas agora com relevância significativa à integração da arte e da cultura como elementos de inclusão social. Iniciamos uma parceria que vem dando muito certo com o Pró-Paz, que é o programa do governo do Estado de articulação, fomento e alinhamento de políticas públicas voltadas para a infância, adolescência e juventude. Temos projetos e resultados significativos em todas as nossas áreas de atuação. PZZ – Mas qual o grande desafio? O grande desafio é chegar a cada um dos municípios do Pará. Tarefa difícil, mas não impossível. Esse não 22 www.revistapzz.com

artística e do prêmio IAP de literatura já conseguiram chegar a cada uma das prefeituras do Estado, parceiras importantes na circulação e divulgação dos bens culturais; e também avançamos com o “Mapa das Artes do Pará”, o MAPA. PZZ – O que é o Mapa das Artes do Pará?

Eu gosto de uma frase do escritor futurista norte americano Alvin Tofler, um senhor de 84 anos e guru da era digital, quando afirma que “o analfabeto de hoje não é mais aquele que não sabe ler e escrever, mas aquele que não tiver a capacidade de aprender, desaprender e reaprender”. É isso que estamos vivenciando nessa transição de início de século. é um problema único do Pará, mas de todos os Estados e Regiões mais afastadas do Sudeste. Não é fácil produzir arte e cultura no Brasil, um terreno onde as disparidades regionais a serem enfrentadas ainda são enormes. Por isso, precisamos desenvolver, com maior rapidez, nossa capacidade de expressão e circulação. No ano passado, já dentro do “Projeto Memória IAP”, lançamos a série “Memórias da Minha Cidade”, que consiste em narrações literárias sobre as cidades do Pará, com base em depoimentos de seus moradores mais antigos. Ao mesmo tempo, nossos editais de bolsas de criação e experimentação

Tito - O MAPA é um dos projetos mais importantes do IAP. Estamos identificando e cadastrando todos os artistas do Pará, a fim de termos informações seguras sobre onde estão e o que fazem. Através de uma metodologia específica, teremos dados importantes para aplicar os recursos públicos com maior segurança e precisão. Veja que quando se planeja investimentos para a educação, saúde, previdência etc., os gestores públicos sabem exatamente os números estatísticos relacionados a pessoas a serem atendidas em cada uma dessas áreas. Essas informações nós ainda não temos na área da cultura. O MAPA vai dizer quantos artistas temos no Pará e suas respectivas áreas de atuação e conhecimento, tudo isso apoiado por um anuário e um grande portal na internet. PZZ – E como você analisa os cenários de investimentos públicos na área cultural? Tito – Os recursos para a cultura estão sempre aquém das suas reais necessidades. O Brasil, historicamente, sempre investiu muito pouco na área cultural. Este ano, a presidente Dilma destinou três bilhões de reais ao Ministério da Cultura, que somados a 2,2 bilhões, que podem ser mobilizados pelas leis de incentivo, a área da cultura terá um investimento público de pouco mais de cinco bilhões de reais, um aumento de 65% em relação a 2012. Pode parecer muito, mas ainda é pouco para atender um país de mais de 500 anos e uma população de 200 milhões de habitantes, principalmente se comparado ao orçamento geral do país que é de 2,15 trilhões. Segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios, os municípios e os Estados, em termos percentuais, investem mais que a União. E muitos municí-


tiva Birô” contemplará, ao final, 12 estados da federação, e consiste em dar suporte técnico e consultoria para a execução de negócios criativos na área cultural. A ideia é dar apoio especializado nas diversas áreas da criação artística. PZZ – Como é fazer parte de uma estrutura de gestão da área cultural, onde há tantos pensamentos e enfoques diferentes para tratar da mesma questão?

A arte se move em ambientes caóticos por natureza. Isso que a faz ficar instigante, sem amarras e emocionante. Veja que a Itália em 100 anos de guerras produziu os grandes gênios da renascença e a Suíça, por outro lado, em 500 anos de paz, só criou o cuco. pios já destinam 1% (um por cento) de seus orçamentos para a cultura. Portanto, em que pese as reclamações de sempre dos gestores e militantes da área, vejo com entusiasmo essa compreensão de que é preciso aumentar os recursos da área cultural no orçamento, principalmente porque é um fator importante de inclusão social. PZZ – O ministério da Cultura está investindo em projetos de economia criativa, o que é esse projeto? Ele vai chegar aqui? Tito - Sim. Inauguraremos, até abril deste ano, em parceria IAP/MinC, o “Birô Pará Criativo”, com investimentos de 1,5 milhão de reais, sendo 1,2 milhão do Minc e contrapartida de 300 mil do Estado. O projeto “Cria-

Tito – Somos um Brasil e um Pará de múltiplas faces, de vozes dissonantes e dissidentes, o que é uma coisa natural e até saudável. Somos diferentes, porque isso faz parte da essência humana. O governador Simão Jatene tem dito – e com muita propriedade – que é preciso respeitar as diferenças em todas as áreas, não só na área cultural, mas o que não devemos e nem podemos tolerar é a desigualdade. Por isso, somos uma equipe que trabalha focada nesse objetivo. PZZ – A música do Pará está na moda e na mídia nacional como a última fronteira descoberta, como você vê essa movimentação? Tito – O Pará e o Brasil são muito grandes. Não somos última fronteira de nada. O grande nó disso é muita gente, principalmente a militância cultural da chamada MPB, não considerar axé, sertanejo, funk, tecnobrega e outros ritmos assemelhados como arte. E, por isso, não conseguem se desvencilhar de uma discussão teórica que não leva a nada. Embora só agora a palavra esteja na moda, o Pará sempre foi um caldeirão cultural. Precisamos encontrar meios de gerar uma economia consistente, que saia do subterrâneo e gere emprego e renda à população. A Bahia movimenta milhões e emprega milhares de pessoas com a indústria do axé. Temos, ainda, que incentivar os nossos empresários da noite para que montem casas mais confortáveis, com acústica de qualidade, cachês decentes para músicos, bom serviço, e que sirvam de palco para os nossos artistas. É preciso criar um mercado interno forte. Aliás, ele já existe, pelo menos em público. O

reconhecimento nacional vem por osmose e com projetos de políticas públicas como o Terruá Pará. PZZ – Você acha que essa enxurrada, como nunca se viu na história, de ritmos, cores e inovações – muitas de gosto duvidoso – são frutos da era digital e da internet? Tito – A arte se move em ambientes caóticos por natureza. Isso que a faz ficar instigante, sem amarras e emocionante. Veja que a Itália em 100 anos de guerras produziu os grandes gênios da renascença e a Suíça, por outro lado, em 500 anos de paz, só criou o cuco. O computador, a era digital e os ambientes cibernéticos são o próprio caos por definição, onde

Não é fácil produzir arte e cultura no Brasil, um terreno onde as disparidades regionais a serem enfrentadas ainda são enormes. Por isso, precisamos desenvolver, com maior rapidez, nossa capacidade de expressão e circulação as informações – falsas e verdadeiras – circulam em velocidades assustadoras. Cada computador e seus acessórios se transformam em instrumentos musicais, pincéis, câmeras, estúdios de gravação, plataformas de arquitetura e repositório de palavras em todas as línguas. Hoje, dos guetos africanos à desenvolvida Suécia, todos podem ter acesso ao computador... E isso mudou a nossa percepção... Eu gosto de uma frase do escritor futurista norte americano Alvin Tofler, um senhor de 84 anos e guru da era digital, quando afirma que “o analfabeto de hoje não é mais aquele que não sabe ler e escrever, mas aquele que não tiver a capacidade de aprender, desaprender e reaprender”. É isso que estamos vivenciando nessa transição de início de século. www.revistapzz.com 23


audiovisual

cinema

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Belém ,1960

Um dia qualquer ARTGO traz ANáLISe histórica e social SOBRE a capital paraense através do FILME “um dia qualquer” DO CINEASTA PAULISTANO LÍBERO LUXARDO, QUE SE ESTABELECEU EM bELÉM EM 1939 por Advaldo

Castro Neto

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cinema

O

cinema como memória de práticas socioculturais, reconta, recupera, revive não só uma tradição cultural e social de uma época, mas dialoga com o público da época e de hoje – tanto os mais novos, que não detêm essa memória visual da época e de certos lugares não mais existentes, quanto os “contemporâneos” ao filme – trazendo à luz da história a própria história. Em “Um dia qualquer”, de Líbero Luxardo, é nítida a imagem representativa dessa história passada que dialoga com a história do presente, concatenando esse presente ao tempo que, de certo modo, serviu de alicerce a ele. Em 1961, enquanto soldados soviéticos construíam o Muro de Berlim, Yuri Gagarin tornara-se o primeiro homem a ir ao espaço, dando início à corrida à lua, anunciada pelo então presidente John F. Kennedy, assassinado dois anos depois; no Brasil, Jânio Quadros assumia e renunciava a presidência e, a 7 de setembro, João Goulart tomava posse como novo presidente. Em meio a esses acontecimentos, Líbero Luxardo (1908 – 1980) filmava “Um dia qualquer” (1962), primeiro longametragem integralmente produzido no Pará. Luxardo, um paulista de Sorocaba (SP), estabeleceu-se em 1939 em Belém do Pará, local que escolheu para realizar o sonho de produzir

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filmes na Amazônia e onde viveu a maior parte de sua vida: permaneceu por estas plagas tropicais por 41 longos anos. Ao desembarcar na cidade trouxe consigo seu filme mais elogiado, “Alma do Brasil” (1932), dirigido em parceria com Alexandre Wulfes, sócio na empresa FAM (Filmes Artísticos Mato-grossenses), produto resultante de sua estada pelo Mato Grosso. Além de “Alma do Brasil”, “Caçando Feras” (1936), uma comédia, trouxe, em seu currículo, o documentário “A luta contra a morte” (1937) e Aruanã (1938), misto de documentário e ficção, eram outras de suas realizações. Em Belém, o “cineasta da Amazônia”, como chegou a ser chamado na capital, antes de produzir o primeiro longametragem da e na região, filmou alguns curtas. Caiu nas graças do líder político local e, por este motivo, foi chamado para produzir documentários de propaganda política do então interventor federal de Belém, Joaquim de Magalhães Cardoso Barata, de quem se tornou amigo e por quem foi levado à carreira política. Líbero realizou, ainda, três longametragens de ficção na região, antes de falecer de um câncer de próstata, em 2 de novembro de 1980. São eles: Marajó barreira do mar (1965), Um diamante e cinco balas (1967) e Brutos inocentes (1974). Tudo nos leva a crer que, em Um dia qualquer, o cineasta pretendeu fazer tão somente uma homenagem à cidade que o acolhera. Filmou uma crônica original de um dia qualquer do cotidiano da cidade, a partir da andança do protagonista da narrativa por uma Belém pacata, mas, nem por isso, menos atraente e convidativa. Assim, nesse dia qualquer, ou melhor, num desses “dias” quaisquer, Carlos, interpretado pelo ator Hélio Castro, após a morte da esposa, an-


O cinema como memória de práticas socioculturais, reconta, recupera, revive não só uma tradição cultural e social de uma época, mas dialoga com o público da época e de hoje

gustiado com a perda de sua amada, passa a caminhar, meio a esmo, por lugares de uma cidade em que tudo remete ao seu amor perdido, levando-o, em flashbacks, à rememoração de encontros e passeios com sua esposa Maria de Belém (a atriz Lenira Guimarães). No passeio do protagonista, cúmplice e seduzido, o espectador também caminha por diferentes locais que são tópicos da sociedade belenense da época. O filme se inicia com o enterro da esposa de Carlos, Maria de Belém, que, ao dar à luz, falece junto com a criança. O cenário, então, é o cemitério da Soledade, localizado na Rua Serzedelo Corrêa, próximo às duas praças que também servem de cenário ao filme: a da República e Batista Campos. Como num círculo vicioso, o local onde o casal se conhecera é, ambém, o mesmo em que se “despendem”. Logo ao entrar no carro à saída do velório, em direção a sua residência, o viúvo relembra o primeiro encontro com a amada,

justamente no cemitério da Soledade. À época, o cemitério ocupava uma quadra toda arborizada, com palmeiras, com as tradicionais mangueiras – que sempre caracterizam Belém – e com árvores nativas. Após o flashback do primeiro encontro, corta-se para o interior do automóvel que o conduz ao seu apartamento, pondo em evidência o percurso pelas tradicionais avenidas Presidente Vargas e Nazaré, no coração de Belém. Em casa, a desolação aumenta ao encontrar na poltrona da sala o material de crochê com o qual a esposa confeccionava roupinhas para a chegada do primeiro filho do casal. Seu olhar minucioso percorre o apartamento: trata-se, no caso, de uma câmera subjetiva que joga com o espectador, fazendo-o ver através dos olhos do ator, que, exteriorizando o seu estado de espírito, nos torna, como espectadores, cúmplices. A câmera age como se fosse os olhos do espectador. Cada integrante do público tem a impressão de que está dentro da cena – e não simplesmente vendo os fatos como um observador oculto. [...] Planos subjetivos, como esses, agregam impacto dramático à narrativa (MASCELLI, 2010, p. 21). E é exatamente esse clímax que se quer com a técnica da câmera subjetiva, afinal, o personagem se encontra absorto, triste e desolado com o falecimento da esposa. Sobre a mesa, um porta retrato com a fotografia da esposa o deixa mais atordoado. Ouve a voz da amada dizendo que nem a morte extinguirá o amor de ambos. Mais uma lembrança lhe vem à memória, agora, o segundo encontro. Nele, ela conta que irá ao Mosqueiro, o pai a espera do outro lado da rua. Por isso, tudo é rápido, a personagem parte tão logo se encontram. O nome da protagonista ainda não é revelado. www.revistapzz.com 27


cinema

O AMOR:VISÃO

A tônica do enredo (como, por extensão, das nossas vidas), sem dúvida, é o amor. Este algo tão abstrato, indescritível e metafísico que inúmeros seres se quedaram e ainda fará tantos outros pensarem, sentirem e se expressarem nas mais diversas linguagens. Platão, em O Banquete, por intermédio do discurso relativo ao amor proferido por Aristófanes, fala de uma natureza primitiva da raça humana em que não havia tão somente dois sexos, mas três; este terceiro seria o andrógeno, formado pelos sexos masculino e feminino. No todo os homens eram redondos, com o dorso e com os flancos como uma bola. Possuíam quatro mãos, igual número de pernas, dois rostos perfeitamente iguais num só pescoço bem torneado, e uma única cabeça com os rostos dispostos em sentido contrário, quatro orelhas, dois órgão genitais e tudo o mais pelo mesmo modo.(PLATÃO, 2001, p. 46) Os movimentos desses seres eram circulares, isto é, andavam em círculos, girando, e, com seus oito membros para a locomoção, eram bem rápidos. E mais, eram fortes e vigorosos. “E por serem dotados de coragem ser par, atacaram os próprios deuses” (Idem. p. 46). A punição dada a essa espécie humana foi dividi-los ao meio. Duplicaram o que era unicidade. De um só ser, foram criados dois. Esse foi o meio eficaz dado por Zeus a este ato insolente: enfraquecer o ser que, após sua divisão, ficou, permanentemente, em busca por essa reordenação de ser incompleto, isto é,buscando a reunificação dos dois seres. Seccionados, desse modo, os corpos, cada metade sentiu saudades da outra, e procurando ambas a sua parte, estendiam reciprocamente os braços, estreitavam-se, no anelo de se fundirem num só corpo, do que resultou morrerem de fome e inanição, pelo fato de nenhuma parte querer fazer nada separada da outra (Ibidem. p. 47). Nesse discurso, vê-se claramente a ideia de alma gêmea relacionada ao amor, que, com suas duas partes separadas, tem ci28 www.revistapzz.com


O PLATONIANA ência de que se completam e, portanto, buscam se encontrar. O amor, segundo tal concepção, seria essa incessante busca pela cara-metade. Segundo Aristófanes (Platão), portanto, o amor pelo outro seria algo inato à natureza humana. É o amor que restabelece essa natureza primitiva do homem em querer relembrar, retornar, querer ser dois seres num só. Somente dessa forma esse homem pode completar sua natureza humana: juntando-se à sua outra metade. de dois passeis a ser um só, para que enquanto viverdes possais estar sempre juntos como se fôsseis apenas um e, depois de mortos, no Hades, não sejais dois, porém um morto apenas, por haveres tido morte comum (Ibidem. p. 49). Isso é, na realidade, o que procuram todos os amantes: viver juntos, voluntariamente enclausurados em si até mesmo após a morte, o amor eterno, que nem a morte separa, ou divide, ou talha, tal qual a voz ouvida por Carlos em sua elucubração à mesa da sala de jantar. Não se trata de uma vivência conjugada nos moldes morais da sociedade terrena, já que ultrapassa a lógica imediata. No discurso de Aristófanes, o amor é a saudade desse todo que um dia foi seccionado em duas partes distintas. Assim,a vida humana tem como objetivo único a busca e o encontro dessas partes divididas. “Nossa espécie só poderá ser feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza.” (Ibidem. p. 50). O amor de Carlos e Maria de Belém busca mostrar a existência de ambos conjugada em um único ser. Foi o encontro casual do cemitério que rearranjou ou uniu as partes de ambos, há tempos seccionadas e que vagavam uma em busca da outra. Somente com o encontro a existência de ambos poderia ter sua completude. Porém, Maria de Belém morre e Carlos, cumprindo sua sina, volta, em um dia qualquer, a vagar em busca de sua metade perdida.

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cinema

OUTROS ASPECTOS A LITERATURA, A CIDADE, AS FESTIVIDADES Outra recorrência intertextual à significância do signo do amor representado em Um dia qualquer é a canção de Paulo André e Ruy Barata, Carta Noturna, que reentoa o caráter dos encontros e despedidas amorosos: Sei, meu amor que o amor é se dar E sei que o partir é a raiz do voltar Volta depressa que a noite se vai Volta nas dobras da estrela que cair Volta no vento, veleiro do mar e mata essa dor que não queres matar (BARATA, Ruy) Se o partir é a raiz do voltar; não é à toa que o filme remete a uma busca incansável e, de antemão, perdida. Não à toa, também, que, no final do filme, ou seja, no final desse dia qualquer na cidade, Carlos é atropelado pelo lotação e fenece por ter, sem a sua amada, a existência seccionada, dividida, compartimentada. A década de 1960 é o momento de eclosão de variados movimentos de contracultura, de emancipação sociocultural, de um grito de liberdade existencial, que trouxe ao debate inúmeras questões relativas ao lugar da mulher na sociedade, à sexualidade, a partir do surgimento de mecanismos contraceptivos. Surgiam os Beatles, o primeiro transplante de coração era realizado. Enfim, passava-se não só por uma efervescência cultural, mas por mudanças de paradigmas tanto científicos quanto sociais. Velhos tabus eram quebrados a custa de muita luta, que não se restringiu ao século XX, pois a data da comemoração do Dia Internacional das Mulheres, remonta ao episódio das 129 operárias mortas em Nova Iorque pela polícia local, como ato de repressão ao movimento grevista feminista, ocorrido no dia 8 de março de 1857. A sequência que mostra a ida do casal protagonista a Mosqueiro, ao contrário do que pensam alguns críticos,

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analistas e acadêmicos – alegando que a cena não tem conexão com o filme ou enredo – é o momento ideal para que se revele outro tipo feminino representado no filme. Tipo feminino contrário ao exteriorizado pela protagonista, esta, caracterizada como moça de família, “feita pra casar”, segundo as anotações feitas para a personagem no próprio roteiro de Líbero para o filme. Tal mulher se enquadra dentro das regras morais estabelecidas pelo pensamento da época: submissão ao marido, prendada, boa dona de casa e educadora dos filhos. Marlene (a atriz Maria de Belém Rossard) representa o tipo feminino liberal, emancipado, principalmente se levarmos em consideração a época em que o filme foi feito. Em “Um dia qualquer”, estes tipos femininos diferenciados não transitam o mesmo espaço e o mesmo tempo. O filme apresenta a mulher modelar, um tanto reprimida, ainda submissa, a familiar dona-de-casa, com uma reputação a zelar, portanto uma mulher que não frequenta “certos” locais, não evidencia comportamentos que desabonem a sua conduta. Ela sempre aparece ao lado do namorado em locais públicos, locais em que não é recomendável, ou aceitável, a ostentação de momentos mais íntimos. Esta outra mulher, a que foge às regras, é retratada em quatro momentos: 1. Na cena de Darlene, personificando uma moça “avançada”, que faz um strip-tease para o companheiro do momento à luz do dia a céu aberto, numa estrada deserta. 2. na cena da zona do meretrício: local em que as mulheres se oferecem, ostensivamente, aos homens que transitam pela área. 3. Na sequência que retrata o terreiro de macumba: a atriz Conceição Rodrigues interpreta uma jovem que recebe uma entidade e, em transe, dança e se despe em público. E ainda, 4. Nas cenas fortes em que uma jovem

gazeta aula acompanhada do irmão. A personagem ingere bebida alcoólica e dança sensualmente em um bar localizado na praça, em plena madrugada. A esta transgressora, que se “insinua”, a cena do estupro funciona como se fosse um“corretivo”. “Um Dia Qualquer” reproduz imagens femininas do modelo instituído numa Belém que, apesar de ter sido sacudida anos antes (década de 19101920) por tipos irreverentes, facilita pensar na exclusão dessas insubmissas. E quando estes tipos aparecem (a jovem striper) são punidos com violência (o estupro praticado contra a jovem que extravasava sua sensualidade num espaço público, na madrugada) (ÁLVARES MIRANDA, 1995, p. 25). Outro aspecto relevante para análise intertextual refere-se à menção dos locais onde transcorre a narrativa: alguns desses locais significativos desapareceram e outros ainda figuram como pontos referenciais da cidade que conhecemos nos dias atuais. Aspectos considerados identitários da cultura amazônica paraense tomam a cena. Assim, vemos a Praça da República e a manifestação do boi-bumbá; o mercado do Ver-O-Peso e a venda das ervas que compõem o tradicional banho de cheiro para os festejos de São João; o círio de Nazaré nas ruas da capital paraense, retratando a fé religiosa do povo se não em contraste, pelo menos fazendo um contraponto com outra manifestação sociocultural: o culto às entidades no terreiro de macumba, com seus batuques característicos. Enfim, percebe-se o sincretismo religioso e cultural da sociedade relacionado à cidade, ao local, ao regional. A força da imagem cinematográfica se revela em outras formas de expressão artística. Como exemplo, lembramo-nos das representações do banho de cheiro na literatura. Eneida de Moraes, na crônica Banho de Cheiro reaviva, com graça e lirismo, a me-

mória dessa tradição em Belém. Antes da fórmula, a narradora situa sua relação com os santos juninos: não tem intimidade com São Pedro ou Santo Antônio; mas “de São João sou velha e dedicada amiga”. E, então, dá a receita: Tomai de uma lata de banha bem limpa. Dentro dela, com bastante água jogai folhas, raízes, madeiras cheirosas da Amazônia que, raladas, esmagadas – verdes pela juventude ou amareladas pela velhice – darão, depois de fervidas, um líquido esverdeado, com estranho perfume de mata virgem. [...] Nossos aromas, primitivos, agrestes, são fruto da floresta e, com eles, naturalmente nossos avós índios também se perfumavam [...] Eis as plantas necessárias ao banho da felicidade [de cheiro]: catinga de mulata, manjerona, bergamota, pataqueira, priprioca, cipó catinga, arruda, cipoíra, baunilha (só uma fava) e corrente. Deixai ferver e ferver muito. Depois – ah depois... – deixai esfriar e está pronto o vosso banho de São João, que deve ser tomado à meia noite de 23 de junho para abrir as portas de todas as venturas. São João ajudará (MORAES, 1989, p. 70). Entre outros locais é, tradicional e principalmente, no Ver-o-Peso o ponto onde se encontram todos os ingredientes para o famoso banho de cheiro. Assim conta liricamente Eneida, talvez a nossa cronista maior, e assim demonstra cinematograficamente Luxardo. Nos flashbacks de Carlos, encontramos as imagens construídas liricamente pela crônica literária. Em ambas as formas de representação estão presentes o dia de São João, em meio a esse dia da feira, que é o dia de banho de cheiro na cidade. Naqueles tempos, a cidade, já às vésperas da festa, acordava com seu ritmo distinto, marcada por ares festeiros, com as ruas todas enfeitadas, viam-se bandeirinhas multicoloridas a se espalharem www.revistapzz.com 31


cinema

e os trabalhos voltados à tradição do festejo ao Santo. Tempos em que “Podíamos ser compadres e comadres, primos, noivos, tudo que escolhêssemos em parentesco, porque o dom das fogueiras juninas é criar e ampliar novas famílias, formar laços até então inexistentes.” (MORAES, 1989, p. 72). Embora as práticas da tradição possam ter mudado, ainda permanece viva a herança de se banhar com o “chero cheroso”, especialmente, na época junina. O cinema como memória des32 www.revistapzz.com

sas práticas socioculturais, reconta, recupera, revive não só uma tradição cultural e social de uma época, mas dialoga com o público da época e de hoje – tanto os mais novos, que não detêm essa memória visual da época e de certos lugares não mais existentes, quanto os “contemporâneos” ao filme – trazendo à luz da história a própria história. No caso de Um dia qualquer é nítida a imagem representativa dessa história passada que dialoga com a

história do presente, concatenando esse presente ao tempo que, de certo modo, serviu de alicerce a ele. Entre as manifestações socioculturais, podemos, também, observar, questões de cunho tecnológico e político de uma época. Época que se relaciona com a nossa atualidade no modo de se analisar um acontecimento que estava na ordem do dia, como fato consumado. Entretanto, o diálogo das personagens acerca do tema não se esgota na mesma proporção. O exemplo a que nos


– Não, por que? – retruca Carlos; – Acho você com ar esquisito. – Quer saber o que é? O noticiário no jornal; por mais que evite, não consigo desviar minha atenção à notícia. – Meu Deus! Dentre em breve brigaram por causa da lua. – Isso é que é vil tem tanta coisa por fazer em nosso mundo e já se preocupam em ocupar a lua. – E não vivem no mundo da lua? – Quem? Eles? Qual, meu amor? Tudo é ambição, megalomania. Quando desaparece um demônio de um lado do mundo, surge outro do lado oposto. – Você acha que eles vão fazer uma base na lua? – Quem sabe? Ninguém os compreende; e pensar que sempre falam em benefício dos humildes, em nome do povo. – O que me preocupa, Carlos, é que eles estão destruindo o amor e o perdão no seio da humanidade. – E se ocuparem a lua, destruíram o romance na terra. – O pior, meu amor, é a falta de sinceridade. – Querida, eu penso que talvez não saiba explicar, mas creio honestamente que jamais haverá paz no mundo. – Carlos, eu tenho medo. – Medo? É natural. Olha aquela mulher..., que pensamentos terá ela? Ninguém sabe. – Deve está preocupada. Você sabe. Problemas em casa, tudo está tão caro e difícil. – É. É bem possível mesmo. – Coitada. Parece preocupada com os filhos – Talvez.

referimos é a ida do homem à lua. A cena se dá quando o casal protagonista, Carlos e Maria de Belém estão no ônibus a caminho do Museu Emílio Goeldi. Eles divagam sobre o homem ir à lua, a partir de uma manchete no jornal de 1961. A manchete diz “Americanos e soviéticos empenhados em atingir a lua” e o diálogo entre o casal refere-se ao fato. Segues-se o diálogo. – Está preocupado? – diz, Maria de Belém.

E, antes de descerem do coletivo, em off, a voz da personagem sobre a qual eles divagavam, imaginando o que ela estaria pensando, resmunga pra si que não pode falhar sua mandinga para acertar no jogo do bicho. Os cientistas foram pra lua Não puderam lá ficar Deus quando fez a lua Não foi pra ninguém morar Não foi pra ninguém morar Deus quando fez a lua/não foi pra ninguém morar (MESTRE LUCINDO).

Tanto os versos do mestre, quanto o diálogo da cena do filme traduzem um pensamento, um registro que não deixa de ser histórico, retratando uma maneira de ver e de pensar uma época de dentro e não de fora dela. A discussão da viagem do homem à lua estava se dando, ainda, em sintonia com a época de “Um dia qualquer”. O homem orbitou no espaço em 1961, com o soviético Gagarin. Vivia-se, então, um tempo em que a geopolítica não estava mais “engajada” com o poder bélico – visto que esta corrida, depois, atingiu estágios capazes de aniquilar vencedores e vencidos, acabou por se transmutar como eixo central dessa maratona. Agora, a disputa era apenas pelo espaço, isto é, no centro da cena, ainda e apenas, a tecnologia – capaz de inúmeras traquinagens poderosas. De ambos os discursos emerge a questão política do fato. Afinal, por que, após a ida do homem à lua, em 1969, com o americano Neil Armstrong, jamais novamente um homem pôs os pés por lá? Existem até mesmo nos nossos dias “teorias da conspiração” que argumentam que nunca o homem foi à lua. Sem que se entre no mérito das controvérsias suscitadas, a pergunta de ‘por que jamais o homem voltou à lua?’ se torna, no contexto do filme em análise pertinente. Como se frisou, o período da Guerra Fria, que se caracterizou por uma bipolaridade do poder econômico-político entre URSS e EUA, engendrou, paralelamente, uma corrida pelo desenvolvimento tecnológico. Dessa maneira, cada uma das potências buscava, à época, a supremacia nos avanços tecnológicos. A ida do homem à lua era uma questão importante aos EUA, uma vez que a União Soviética já havia conquistado orbitar um homem no espaço. Mas, se pensarmos que ao espaço, o homem só não voltou, como continua a orbitá-lo, e a “infectá-lo” com as mais numerosas engenhosas máquinas a procura de algo, já com a lua, o mesmo não se deu. Jamais um homem voltou a pisá-la, tampouco deseja isso novamente. Perguntamo-nos: por quê? Por não ter “nada” que interesse à humanidade? Interesse em que sentido? www.revistapzz.com 33


filosofia

biografia

ARTE: JOÃO BOSCO

benEDITO NUNES E REFLEXÕES SOBREA AMAZÔNIA

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O artigo “benedito nunes e reflexões sobre a amazônia” extraído do boletim do museu paraense emílio goeldi traz uma biografia social sobre o filósofo e crítico de artes e literatura, com sua produção intelectual sobre a Amazônia, o Pará e Belém, uma contribuição do núcleo de altos estudos amazônicos- naea COM ILUSTRAÇÕES DE ARTISTAS DO 4º SALÃO INTERNACIONAL DE HUMOR DA AMAZÔNIA

B

por Edna Castro e Estela Guimarães

enedito Nunes, nasceu em Belém em 1929 e faleceu em 2011. Sempre residiu na capital do Pará, embora tenha feito muitas viagens ao exterior e a outros estados brasileiros, sobretudo voltadas a estudos como professor. Bacharelou-se em Direito. Casou-se com Maria Sylvia, sua colega desde o curso primário. Trabalhou na antiga Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e no Trabalho de Contas do Pará, contribuindo assim, na ordem da ação prática, com o pensamento sobre o planejamento, as políticas públicas e o desenvolvimento regional. No entanto, sua maior contribuição como intelectual vem da reflexão acadêmica. Foi professor Emérito da UFPA e, como professor visitante, de universidade no exterior. Conforme Castro (1999, p.13). No Collège de France, Benedito foi aluno dos cursos de Paul Ricoeur e de Maurice Merleau-Ponty. Realizou estudos de pós-graduação com pesquisas sobre o modernismo brasileiro no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne. Foi bolsista da Guggenheim Foundation em 1970. Na

UFPA, aposentou-se em 1992, mas prosseguiu sua trajetória intelectual pronunciando conferências e dedicando-se à própria produção bibliográfica, cercado de livros que formam sua biblioteca particular. De 2004 a 2010, participou das atividades do Centro de Cultura e Formação Cristã da Arquidiocese de Belém (CCFC), ministrando cursos e fazendo palestras, programação sempre aberta gratuitamente ao público interessado em literatura e filosofia, bem como na aproximação das áreas do conhecimento que compõem o traço mais forte da sua obra. Assim Benedito relembrou sua primeira experiência - ao término do ginasial - como professor no Colégio Moderno, em Belém: “Ali onde comecei a dar aulas, (...) também aprendi a ensinar. E o que tenho feito na vida: aprender a aprender. Sou autodidata dos pés à cabeça”. E prosseguiu o depoimento: “Eu também não fiz curso de didática. Aprendi a ensinar a duras penas - a ensinar e a ensinar-me” (Nunes, 2009b, p. 15). Estava definida, desde cedo, a direção de quem se apaixonara pelo que a inteligência orquestra. Intelectual reverenciado no Brasil e no exterior, Benedito recebeu distinções como o Prêmio Jabuti (concedido duas vezes pela Câmara Brasileira do Livro, em 1987 e em 2010), o Prêmio Multicultural Estadão (em 1998), o Prêmio Ministério da Cultura / Fundação Nacional de Arte - FUNARTE (em 1999), a Comenda Ordem do Cruzeiro do Sul (concedida pelo Ministério do Exterior, em 2003), a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura (em 2004), o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (em 2005), o título de Doutor Honoris causa da Universidade da Amazônia

(UNAMA) (em 2009), o Prêmio Machado de Assis (referente ao conjunto de sua obra e concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 2010). Benedito Nunes é nome do grande auditório do Centro de Convenções da UFPA (inaugurado em 2009) e do prêmio da UFPA instituído, também em 2009, para ser concedido periodicamente às melhores teses em humanidades. A repercussão do pensamento e da obra de Benedito Nunes em outros recantos brasileiros já ensejou importantes pesquisas e variadas análises. Em termos universitários, merecem destaque os doutorados de Jucimara Tarricone - concluído na Universidade de São Paulo (USP), com o título “Hermenêutica e crítica: o pensamento e a obra de Benedito Nunes” (Tarricone, 2007) - e de Maria de Fátima Nascimento - em desenvolvimento na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com o nome “O lugar de Benedito Nunes na moderna crítica literária brasileira” (Nascimento, 2008). Benedito é, portanto, referência em literatura e filosofia, com leituras aprofundadas e trabalhos seminais sobre Heidegger, Sartre, Nietsche, Camus, Guimarães Rosa e Clarice Lispector – apenas para citar os mais propagados. Nessas áreas, acumula extensa fortuna crítica. No entanto, sem a mesma divulgação ou repercussão, o pensador paraense também escreveu ensaios, concedeu entrevistas e apresentou palestras sobre a Amazônia, sobre o Pará, sobre Belém (Guimarães, 2010). Mas não há dissertações de mestrado ou teses de doutorado que examinem Benedito como intérprete da sua própria região. A obra de Benedito não foi percorrida criticamente por este viso. www.revistapzz.com 35


biografia O CONHECIMENTO ENQUANTO PROBLEMA Na concepção de Bachelard - autor que possui adesão significativa como caminho para desenvolver projetos de pesquisa no meio acadêmico -, é em termos de “obstáculos” que deve ser apresentado um “problema de conhecimento científico”. O estudioso francês escreveu sobre a formação do espírito científico, entendendo que a história das ideias é feita por rupturas ou cortes epistemológicos: se o conhecimento é “luz”, não deixa de projetar “sombras”, pois “o ato de conhecer dá-se ‘contra’ um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização” (Bachelard, 1996, p. 17). Bachelard notabilizou-se na ciência e na filosofia, mas também experimentou a poesia. Benedito Nunes (2005) costumava relacioná-lo, nesse aspecto - ao lado de Sartre, Heidegger, Foucault e Ricoeur, por exemplo-, ao caminho ou ao percurso que vai da filosofia à poética. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. E justamente esse ‘sentido do problema’ que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído (Bachelard, 1996, p. 18, grifo nosso). Por meio da filosofia e da crítica literária, Benedito incessantemente buscou o conhecimento - sua inquietação maior, seu tema permanente ao longo da vida. O que se ligava à possibilidade do conhecimento e ao seu valimento estava na pauta de Benedito, pois esses tópicos marcam a filosofia de ontem e de hoje, com interesse a cada instante renovado nas indagações e suas posteriores descobertas que logo engendram novos questionamentos. Com frequência, recorrendo à epistemologia, o profes36 www.revistapzz.com

sor paraense refletia sobre os limites do conhecimento humano. A filosofia de Bachelard foi, inclusive, tema escolhido por Benedito no ano de 1989 para um curso de pós-graduação na UFPA (Tarricone, 2007) e sempre

esteve entre as suas referências: Outro ponto quente do pensamento filosófico contemporâneo é a crítica da Teoria do Conhecimento, derivada da relação modelar entre sujeito e objeto. A Teoria do Conhecimento,


ARTE: JUNIOR LOPES

conforme deixa prever a obra de Bachelard,será uma teorização de práticas científicas nãocartesianas (Nunes, 2004b, p. 22). A Academia Brasileira de Letras (ABL) realizou, em 2005, um ciclo de

conferências denominado “Caminhos do Crítico”. A revista “Estudos Avançados”, da Universidade de São Paulo (USP), editou os anais do congresso. Convidado, Benedito participou desse evento no Rio de Janeiro. Bem no

O que se ligava à possibilidade do conhecimento e ao seu valimento estava na pauta de Benedito, pois esses tópicos marcam a filosofia de ontem e de hoje, com interesse a cada instante renovado nas indagações e suas posteriores descobertas que logo engendram novos questionamentos.

início do discurso, Benedito recordou um encontro seu com Clarice Lispector, quando a escritora lhe afirmou: “Você não é um crítico, mas algo diferente, que não sei o que é”. Continuou Benedito em sua recordação: No momento, perturbou-me essa afirmação. Hoje posso ver como foi certeiro, além de encomiástico, o aturdido juízo de Clarice. Ela percebia, lendo o que sobre ela escrevi, que o meu interesse intelectual não nasce nem acaba no campo da crítica literária. Amplificado à compreensão das obras de arte, incluindo as literárias, é também extensivo, em conjunto, à interpretação da cultura e à explicação da Natureza. Um interesse tão reflexivo quanto abrangente é, portanto, mais filosófico do que apenas literário. Ora, desde Kant a filosofia também foi chamada de crítica. Não sei por qual das críticas comecei, se foi pela literária ou pela filosófica, tão intimamente se uniram, em minha atividade, desde novinho, e alternativamente, literatura e filosofia. No “algo diferente” a que Clarice se referia para qualificar-me, estava implícita semelhante união. Não sou um duplo, crítico literário por um lado e filósofo por outro. Constituo um tipo híbrido, mestiço das duas espécies. Literatura e filosofia são hoje, para mim, aquela união convertida em tema reflexivo único, ambas domínios em conflito, embora inseparáveis, intercomunicantes (Nunes, 2005, p. 289, grifo nosso). www.revistapzz.com 37


biografia Clarice Lispector questionou Benedito Nunes, como se lhe lançasse pergunta aos moldes de Bachelard. Impelido no passado por Clarice, Benedito reconhece que a “interpretação da cultura “ e a “interpretação da Natureza “ são elementos componentes da sua obra. Se a produção intelectual de Benedito grafou seu nome no painel de grandes autoridades da filosofia e da crítica literária, poderá também inscrever o professor paraense como um intérprete da Amazônia? Alguns componentes dessa obra, mesmo que analisados ainda superficialmente, não deixam de combinar história, antropologia, sociologia, geografia, filosofia, crítica da literatura e das artes em geral, muitas vezes no contexto amazônico. Em certa medida, tais trabalhos, quando estudados mais profundamente, poderão despontar, então, como crítica das culturas e exame das sociedades na Amazônia? Em que medida? Têm ethos, como diriam os gregos? Têm marca própria? Eles formam uma unidade de pensamento? Que articulações podem permitir? Qual a importância das criações de Benedito que, além de lançarem mão da literatura e da filosofia, também constroem explicitamente reflexões sobre Belém? Porque não há recepção ou fortuna crítica desses textos de Benedito, pontuados de alusões à nossa região? Eles não foram construídos com o mesmo rigor intelectual e igual erudição que pontilham as aulas, os livros, os ensaios e as conferências que Benedito fez sobre Heidegger, Nietzsche, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, e que tanto repercutiram além do Pará? Teriam sido os textos sobre a nossa região mais esparsos e, assim, menos difundidos ao longo do tempo, talvez fragmentos espremidos pela recepção calorosa de Benedito, fora da Amazônia, como filósofo e crítico literário? O hermeneuta de Heidegger, que nasceu e sempre morou em Belém, não seria hermeneuta da sua própria região? Emerge da obra de Benedito uma compreensão da Amazônia? Esse pensamento pode ser útil aos programas de desenvolvimento da Amazônia, à altura da complexidade da região? Ou, no mundo contemporâneo, há lugar apenas para 38 www.revistapzz.com

especializações e segmentações? Essas perguntas têm o sentido de despertar inquietações e de abrir possibilidades de leitura da obra fecunda de Benedito Nunes, um tesouro a explorar De outra feita, na entrevista que concedeu à T V Globo em 2006, Benedito declarou: “ Não sei se eu interiorizei a Amazônia. Belém, certamente, eu interiorizei”. Interiorizar significa interpretar? Ele realmente interpretou a metrópole onde reside? N a mesma ocasião, o filósofo comentou o fato de sempre ter morado em Belém, embora tenha passado temporadas de estudo no exterior: “A margem sempre me dá um distanciamento. Eu sempre fui um marginal” (Nunes, 2006b) - completa com um sorriso.

“As relações entre filosofia e cultura constituíram pergunta feita a Benedito Nunes por Nobre e Rego: “Seria possível falar de uma filosofia brasileira?” Após o falecimento de Benedito, seu legado foi objeto de comentários do professor Renan Freitas Pinto, da Universidade Federal d o Amazonas (UFAM): “sua obra, construída com rigor crítico, sem nunca abrir mão da clareza de sua escrita, ainda permanece relativamente desconhecida em sua terra, a Amazônia, necessitando ser devidamente incorporada por nossa inteligência” (Pinto, 2011). As questões referentes à Amazônia demandam faina interdisciplinar. Se o “Brasil não é para principiantes”, como pugnava o músico Tom Jobim (Botelho e Schwarcz, 2009, p. 16), o que dizer da Amazônia, da sua complexidade, das suas desigualdades internas? Talvez outro grande artista da música popular brasileira tenha traduzido isso bem: Chico Buarque de Hollanda, em “Bye bye, Brasil”. “Tomei a costeira em Belém do Pará /Puseram uma usina no mar” e “Peguei uma doença em Belém”

(Holanda, 2006, p.284-285). Teria Chico – filho se Sérgio Buarque de Holanda, um reconhecido intérprete do Brasil – feito referência nessa letra de 1979 à região complexa onde conviviam discrepâncias e contradições, como a exuberância exposta pelo Projeto Jari e sua usina enquanto insalubridade grassava pela capital do Pará? Complexo é o Brasil e complexa é a Amazônia! Como sabem também os artistas... Como sabia Clarice Lispector ao observar a produção de Benedito. As relações entre filosofia e cultura constituíram pergunta feita a Benedito Nunes por Nobre e Rego: “Seria possível falar de uma filosofia brasileira? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira?”. A resposta de Benedito alcançou a abrangência do pensamento social na história e na política: Se pensarmos em uma filosofia com características brasileiras, como uma concepção de mundo que só o Brasil proporciona por ser o Brasil, a minha resposta é não. A menos que visemos filosofia no sentido lato: pensamento social, histórico e político. Nesse sentido, Oliveira Vianna e seu livro “A evolução do povo brasileiro” têm filosofia. “Casa grande e senzala”, de Gilberto Freyre, também. Adito o termo ‘filosofia brasileira’ como filosofia feita no Brasil, mas a partir de uma reapropriação da tradição filosófica, da história da filosofia e das obras-fonte. Ou continuamos o diálogo com Platão, Aristóteles, Descartes, Kant e Hegel, ou não há filosofia (Nunes, 2000a, p. 79, grifo nosso). Benedito reconheceu, portanto, a pertinência do debate sobre a relação entre filosofia, cultura e pensamento social - encontrada em grandes intérpretes do Brasil, como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Em outra entrevista, Benedito discorreu mais sobre a importância da filosofia: Bachelard, na epistemologia, reivindica uma “razão operante (...) que se constrói com a experiência, construindo o seu objeto” (Nunes, 2004b, p. 22). Conforme esse ‘novo’ espírito científico despertado pelas inquietações de Bachelard, o problema desta


ARTE: LUIZ PINTO

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ARTE: BIRATAN PORTO

biografia

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“Benedito contribuiu seguramente para a construção do conhecimento na área das ciências sociais. Em Belém, sua presença nesse meio é denotada pela participação marcante como professor do curso de Ciências Sociais na ‘velha’ Faculdade de Filosofia” pesquisa sobre Benedito engloba várias indagações aqui listadas e que podem ser sintetizadas em uma grande pergunta aglutinadora: qual é a interpretação, a importância e o estatuto da criação intelectual de Benedito sobre a Amazônia presente na obra de um pensador que sempre morou em Belém? Eis uma questão, cuja busca de respostas visa a construir conhecimento sobre a obra de Benedito Nunes.

BENEDITO - CONSTRUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS Em ensaio datado de 1958 e publicado, como apêndice, na segunda edição de “A redução sociológica”, de Guerreiro Ramos, Benedito Nunes (1965) mostra seu olhar atento e interessado em interpretações da sociedade brasileira e de seu processo de desenvolvimento - identificado naquele momento com a industrialização, a constituição da nação e a construção da identidade nacional. Guerreiro, enquanto sociólogo, teve a atenção voltada também ao papel das ciências sociais no país (Malta e Kronemberger, 2009) e constava na bibliografia da disciplina que Benedito ministrava no curso de ciências sociais da UFPA, nos anos 1970. No diálogo com o autor de “A redução sociológica”, Benedito se debruça sobre os impasses teóricos e ideológicos da construção da objetividade no campo das ciências sociais. E interroga a pertinência metodológica da noção de “redução”, tal qual é empregada por Guerreiro. Considera

que “aí começa a segunda função da atividade redutora: depois da crítica, ela se torna essencialmente reflexiva” (Nunes, 1965, p. 209). Então, Benedito Nunes (1965, p. 201) expressa claramente seu entendimento sobre os fundamentos de validação: (...) dois fundamentos teóricos, de igual importância, asseguram a validade do princípio da redução. O primeiro é a razão histórica de Dilthey que, reformulada, veio dar a razão sociológica; segundo é a ideia de mundo, tal como se encontra, hoje, na filosofia de Heidegger, depois de uma elaboração demorada, que principiou quando o método fenomenológico já estava ultimado, no período das “Meditações Cartesianas” de Husserl. O professor recorre à filosofia de Dilthey, Heidegger e Husserl, mas reflete também sobre questões metodológicas enfrentadas pela sociologia e por seus dilemas teóricos, como, por exemplo, no debate denominado “Tem vez o sociólogo?” - organizado com o propósito de discutir o papel desse profissional na produção do conhecimento e na intervenção social. O evento foi uma iniciativa da Associação dos Sociólogos do Brasil, Seção da Região Norte, em 1976, na capital paraense. Depois, em 1978, houve a publicação desse debate, embora de forma um tanto quanto artesanal, com reduzida tiragem. Como parte de seus comentários durante o encontro, Benedito observa que as formulações ousadas, como as de um Bohr e de um Einstein, decorrem de uma transgressão dos paradigmas, quando o cientista passa a divergir da comunidade profissional a que pertence. Os cientistas sociais têm desse ponto de vista uma vantagem. Eles ainda não possuem paradigmas fixos. Mas devem ter (um dever que não significa imperativo categórico) uma perspectiva metodológica. Mas será uma perspectiva metodológica que não limita o estudo da ciência à simples identificação de fenômenos (ASB, 1978, p. 21). Continuando seu posicionamento, logo em seguida, referindo-se também às palavras anteriores de Rosa Acevedo nesse debate, quando ela se

manifestara sobre “a capacidade do sociólogo para predizer os fatos com as ferramentas que dispõe” (ASB, 1978, p. 12), Benedito completa: “Prever os acontecimentos, muito bem, estou de acordo com você, Rosa, toda ciência é previsiva, não é? Mas que o sociólogo também nos diga algo sobre o que significam esses acontecimentos” (ASB, 1978, p. 21). Benedito contribuiu seguramente para a construção do conhecimento na área das ciências sociais. Em Belém, sua presença nesse meio é denotada pela participação marcante como professor do curso de Ciências Sociais na ‘velha’ Faculdade de Filosofia, situada à avenida Generalíssimo Deodoro. A reflexão do mestre ia da filosofia ao ensino da epistemologia científica como dimensão da crítica do conhecimento, avaliando e interpelando variados aspectos da produção de conhecimento na sociologia e nas ciências humanas em seu sentido mais amplo. O professor paraense participou ativamente, na UFPA, de programas de ensino e orientação de monografias de alunos, desde quando a pós-graduação se restringia a programas de aperfeiçoamento e especialização - como o curso de História da Filosofia, em 1974 - e poucos eram os debates no correr dos anos setenta e oitenta. Sua presença lúcida foi essencial para iluminar reflexões e aguçar o interesse pelos segredos da arte de pensar e, com essa preocupação, inseriu disciplinas filosóficas e epistemológicas nas pautas dos cursos de graduação. Assim, Benedito estabeleceu programas e participou da formação do curso de Ciências Sociais, em 1962. Manteve durante anos, em sessões semanais noturnas, para as quais produzia textos originais, um seminário exclusivamente para o grupo de aproximadamente dez professores de Filosofia: versavam sobre os conteúdos filosóficos das disciplinas, no início da década de 1970, quando todos os alunos da UFPA passavam pela obrigatoriedade de cursar Introdução à Filosofia. Entre tantas outras contribuições ao campo intelectual, em Belém, destaca-se ainda a “série de seminários, coordenados e dirigidos pelo professor Benedito Nunes”, onde www.revistapzz.com 41


biografia

estiveram em debate temas de física, de filosofia, da relação entre ciência e filosofia, mas também o “processo cognitivo da ciência; a intuição criadora; ciência e ideologia; ciência, tecnologia e desenvolvimento” (Bassalo, 2009, p. 136). Pensador brasileiro de inteligência incomum, Benedito manifestou relevantes preocupações teóricas e epistemológicas, de pensar o universal e de destrinchar as relações entre as coisas 42 www.revistapzz.com

e os acontecimentos, de entender os significados que ligam filosofia e ciência, filosofia e arte, poesia e filosofia, cultura e política, ideologia e ciência, enfim, uma reflexão completa, complexa e interdisciplinar, rompendo fronteiras do conhecimento com sua visão universalista da filosofia e da cultura. Sempre adotou uma postura teórica da reflexividade, captando o universal dos acontecimentos, nos nexos e nas correlações que tecem as

“Eu também não fiz curso de didática. Aprendi a ensinar a duras penas - a ensinar e a ensinar-me”


MÁRCIO MIRANDA

dimensões profundas da condição humana. Centradas sobre o conhecimento e o papel teórico da sociologia, as intervenções de Benedito questionam o lugar da mediação e dos objetos de estudo da sociologia e da antropologia. Ensinam a pensar a cultura e a sociedade brasileira como questão – cenário de obras fantásticas que tentam entender, falar, interpretar, decifrar o que é o Brasil, o seu povo, os

seus costumes e, consequentemente, o pensamento social aí produzido. Os ensaios escritos por Benedito Nunes sobre obras de inúmeros autores que se perfilam entre os grandes intérpretes do Brasil, na literatura e na poesia, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, marcam pela sua originalidade e introduzem novas leituras interpretativas à crítica literária. Tais interpretações são caras às ciências sociais na medida em que contribuem para elucidar e aprofundar reflexivamente o debate no campo do pensamento social brasileiro. Benedito envereda nessa linha bem cedo, desde o primeiro ensaio sobre Guimarães Rosa - “Primeira notícia sobre Grande sertão: veredas”-, publicado no “Jornal do Brasil”, em 1957 (Tarricone, 2007). Em seu primeiro livro - “O mundo de Clarice Lispector” -, Benedito refere-se à realidade social: “Na literatura, (...) é sempre possível encontrar uma concepção-do-mundo, inerente à obra considerada em si mesma, concepção esta que deriva da atitude criadora do artista, configurando ou interpretando a realidade” (Nunes, 1966, p. 15). Sua concepção de ciência e arte é ampla, pois se ancora na filosofia. No ensaio “Pluralismo e teoria social”, Benedito destaca o papel da filosofia e da análise literária na interpretação do mundo: A filosofia interpreta o mundo e interpreta a si mesma. A “hermeneutização” (Hermeneutísierung) de tudo revela-nos também que a linguagem é a principal mediadora da ‘referência à vida’ na filosofia. Tal mediação ainda mais estreita os laços entre o filosófico e o literário (Nunes, 2010b, p. 297). No ensaio “Filosofia e Memória”, discorre sobre a filosofia como intérprete de culturas: Diante da diversidade das culturas, em nossa época de fastígio da ciência, como forma de conhecimento sob dominância tecnológica-época, também, de exacerbação das rupturas com o passado e de valorização ideológica do futuro, como dimensão privilegiada do tempo -, a filosofia assume, entre outras funções modestas, o encargo hermenêutico de intérprete das

heranças culturais e das modalidades de consciência histórica. Com isso, a coruja de Minerva toma a encontrar seu pouso no ombro de Mnemosyne. Tal como a poesia, de que se aproxima, a filosofia tende a lembrar hoje o que não pode ser esquecido (Nunes, 2010a, p. 24-25). E visível o interesse de Benedito em contribuir com a construção de uma consciência crítica, tomando as disputas intelectuais da sociedade brasileira como pano de fundo. Constata-se, assim, sua intenção de formar pessoas comprometidas com estudos sobre o pensamento social brasileiro. Está sempre presente em suas orientações a preocupação com a escolha de métodos que considerem a história, de forma a contextualizar as trajetórias das ideias. Nas suas análises sobre a circulação do ideário social e político, observa-se a inclinação para traçar essa visão de conjunto e refletir sobre marcos culturais e literários, eterminantes político-culturais e institucionais relativos ao tema abordado e sua avaliação crítica. Benedito Nunes formou intelectuais na leitura sistemática, filosófica e literária, de autores que pensam o Brasil, suas mudanças sociais, seus dilemas, a desigualdade, a relação de classes, a constituição da identidade nacional e da cultura. E, nessa perspectiva, contribui marcadamente com o campo de circulação de ideias pela leitura crítica de seus ensaios. Logo, se aproxima, direta ou indiretamente, de grandes intérpretes consagrados da sociedade brasileira. Autores como Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Caio Prado Júnior, cujas obras são reconhecidas incontestavelmente como singulares no esforço de decifrar este país, fazem parte do universo literário e humanista de Benedito Nunes. Ainda hoje, as obras daqueles intérpretes constituem referências e objeto de releituras de novas gerações, que promovem atualizações constantes no afã de retomarem pontos cruciais que emergem desses ‘desenhos’ do Brasil. Assim como inúmeros outros www.revistapzz.com 43


biografia autores que passaram pelos períodos difíceis da ditadura militar no Brasil, dos anos 1960 aos 1980, com o aparato policial montado para coibir o pensamento e a circulação de ideias, Benedito se manteve firme na postura de intelectual comprometido com o conhecimento, a liberdade de expressão e a perspectiva reflexiva. Um exemplo que levou intelectuais de sua geração e de gerações mais jovens da época à reflexão e à crítica social, nele se espelhando. O interesse e a perspicácia de Benedito em buscar os subterrâneos da teoria e das metodologias difundidas à época, adotando a perspectiva analítica na sua leitura acerca da produção intelectual de autores que refletem sobre a realidade brasileira, constituem uma contribuição importante no âmbito das ciências sociais e do pensamento social no país. Ainda que sua reflexão sociológica não esteja reunida ou concentrada especificamente em uma publicação, ela se encontra em diferentes documentos, livros, ensaios, entrevistas, palestras e conferências. Eles dizem de sua trajetória intelectual em períodos diversos, nos quais a lucidez de pensamento e a absoluta obstinação pelo saber foram os tons que marcaram seu espírito inquieto desde muito jovem. Assim, pensa a sociologia – e as considerações sobre “A redução sociológica” servem de exemplo - como espaço da reflexão sobre a realidade, visando compreender os processos de transformação por que passa a sociedade brasileira, em contexto de forte influência desenvolvimentista. Benedito trouxe a Belém, para difundir o debate, alguns intelectuais eminentes na reflexão filosófica, antropológica e sociológica que se permitiam pensar o mundo no contexto entre a filosofia e a política, formulando a crítica à modernidade e as suas consequências, como Michel Foucault. A presença de Foucault, no ano de 1976, em Belém, foi lembrada por Benedito em 2004, durante entrevista que concedeu aos professores Márcio Benchimol Barros e Ernani Chaves, depois publicada em 2008: O Foucault... Tudo começou com um conhecimento muito rápido. Ele 44 www.revistapzz.com

O interesse e a perspicácia de Benedito em buscar os subterrâneos da teoria e das metodologias difundidas à época, adotando a perspectiva analítica na sua leitura acerca da produção intelectual de autores que refletem sobre a realidade brasileira, constituem uma contribuição importante no âmbito das ciências sociais e do pensamento social no país.

apareceu e ficou na casa do Machado Coelho, na Praça da República. (...) Fui lá e perguntei se ele não queria fazer uma palestra na Universidade (Federal do Pará). Ele me disse “agora não, estou de férias, vou para o Marajó, mas ano que vem eu posso fazer”. (...) No ano seguinte, o agente consular da França me telefonou dizendo que o Foucault estava vindo fazer a tal palestra que ele prometeu. Ele ficou hospedado no Hotel Grão-Pará e durante uma semana ele fez essas palestras. Naquela época era o regime militar ainda e, justamente para que as conferências fossem proveitosas, eu peguei a turma da filosofia e fiz uma série de exposições sobre Foucault, sobre “As palavras e as coisas” e outros

trabalhos. (...) Foucault foi extraordinário, como sempre ele era muito brilhante. Eu fazia a intermediação, as pessoas faziam as perguntas, eu traduzia, ele dava as respostas e eu traduzia para a assistência (Nunes, 2008b, p. 21, grifo nosso). A partir de seus escritos, Benedito mostra a proximidade com autores brasileiros que promoviam a crítica face às contradições que imperavam na vida social. Nesse contexto, se discutia a função social da ciência e se perguntava o quanto as ciências sociais deveriam ser também um instrumento de conscientização política, ao desvendar um mundo sob o véu da dominação social, ideológica e política; ou se perquiria, ainda, sobre a necessidade de produzir, ao seu lado, também a mudança e a transformação da sociedade. Essa é a perspectiva encontrada em autores como Florestan Fernandes ( Miceli, 1989) e, na linha da sociologia da cultura, igualmente em Pierre Bordieu (2004) – que teorizou sobre as práticas dominantes no campo intelectual e as relações de poder que atravessam a sociedade, polemizando e tomando posição explícita sobre a necessidade de se evidenciar os usos sociais da ciência. Para Guerreiro Ramos (Nunes, 1965), a ciência social não tem somente uma função de organização do pensamento reflexivo sobre a sociedade - reflexão teórica, portanto -, como também de “reduzir” o transplante de ideias coloniais do ocidente para o Brasil (e a América Latina, no seu conjunto). E o seu legado interiorizado e arraigado no ‘ser brasileiro’. E, é oportuno que se diga, no ‘ser amazônico’. O interesse maior de Benedito Nunes - estudioso da obra de Guerreiro – é pela reflexão, com o mundo do pensar e de sua crítica, pois aí reside seu precioso legado ao campo intelectual. Em meados do século XX e por todas as décadas seguintes, ocorreram no Brasil mudanças de grande significado na reconfiguração da organização social - decorrentes dos processos de industrialização, urbanização e das novas condições no mercado de trabalho - , redefinindo, assim, estruturas e papéis sociais. Por


outro lado, no campo governamental, as políticas orientadas pela ideologia nacional-desenvolvimentista demarcavam novas fronteiras de intervenção e iriam colocar o país diante de novos dilemas econômicos, sociais e políticos. Ainda que se concentrassem as decisões no eixo das regiões Sul e Sudeste, essas mudanças atravessavam o país como um todo, e a elas Benedito estava atento com seu olhar perscrutador. O tema do desenvolvimento e de sua urgência ideológica foi pauta relevante na sociedade brasileira nos anos 1970, pois emergia a influência de um pensar sobre o planejamento com base nas ciências econômicas. Havia a nítida sensação de transformações econômicas, sociais e morais para as quais a ciência tinha um papel a desempenhar. Essa visão instrumental sempre esteve presente na tradição ocidental das ciências sociais, de forma bastante polêmica e fecunda ao pensamento. Relembre-se o Brasil à época de ‘A redução sociológica”, de Guerreiro: processos de industrialização, mudanças nas relações sociais no campo, crescimento de uma classe média com acesso a outro padrão de consumo e, consequentemente, mudanças no perfil da urbanização no país - tudo gerando importantes efeitos no campo científico. Certamente, é importante compreender e ampliar a discussão sobre ideias, conceitos, noções e representações que marcaram presença, em momentos e circunstâncias diferentes, na formação do pensamento social sobre a Amazônia. Cabe interrogar a respeito da sua relação com o pensamento social brasileiro e o processo de construção da identidade nacional. A releitura da obra de Benedito Nunes impõe-se nessa direção, como também a de outros autores regionais cujas interpretações são ainda pouco visitadas. Tal linha de pesquisa é importante para o avanço dos estudos sobre a Amazónia, lembrando-se aqui algumas contribuições vindas de tradições teóricas diversas, como as de Euclides da Cunha (1986), Dalcídio Jurandir (Nunes, 2006a), Leandro Tocantins (1973), Charles Wagley (1988), Eduardo Galvão (1955) e

Djalma Batista (1976). A interpretação do pensamento social é abordada por Benedito durante entrevista, quando Márcia Mendes lança ao professor uma pergunta sobre a função do regionalismo na literatura e na filosofia. Ele faz distinção entre regional, regionalismo e amplitude universal, que resulta em extraordinária síntese sobre o sentido da cultura: Benedito faz crítica social nas análises sobre a obra de Dalcídio Jurandir, em quem encontra um observador atento no exercício da interpretação da estrutura social, das relações da cidade com o interior, dos bairros e da fisionomia de Belém, do lugar da ilha de Marajó na sociedade regional. E Benedito se refere a “Belém do

Certamente, é importante compreender e ampliar a discussão sobre ideias, conceitos, noções e representações que marcaram presença, em momentos e circunstâncias diferentes, na formação do pensamento social sobre a Amazônia. Grão-Pará” como “uma das melhores e mais completas leituras da cidade” (Nunes, 2006c, p. 29): Quem lê “Belém do Grão-Pará”, como o romance dos Alcântaras (o casal seu Virgílio / dona Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade dos anos vinte, tal como a tinham deixado, após o início da decadência econômica, consequente à crise da borracha, que culminara em 1912, as reformas do intendente (prefeito) Antônio Lemos. O drama daquela família, com a qual Alfredo vai viver, drama todo exterior, de perda de status, levando-a, após o lemismo, a uma mudança de casa e de rua, está relacionado com aquela decadência (Nunes, 2006a, p. 246). A cidade amazônica é objeto da reflexão de Benedito. Em circunstâncias e contextos diferentes, ela é revelada em sua obra. No trabalho “Pará, capital Belém”, Benedito percorre o

passado e desvela seus personagens, acontecimentos e contradições que se entrelaçavam no cotidiano da cidade. Descreve a fisionomia e a estética de uma cidade amazônica que tem a particularidade de uma relação estreita com a floresta, relembra lugares perdidos na memória de uma cidade que se distancia de si, que se desfigura e abandona relações constitutivas de sua singularidade. O trecho a seguir é precioso por explicitar nexos entre o local e o universal da condição humana, entre mundos de ideias e de imagens que a memória contém, ícones de um conjunto fisionômico: Já existente desde 1883, como pedaço da floresta amazônica, o Bosque Municipal Rodrigues Alves, um dos 16 bosques tropicais que Lemos planejara, foi ajardinado à moda europeia em 1903. No entanto, o gosto europeu aí se tropicalizou: uma mestiçagem de majestosas árvores da hileia, altíssimas árvores de volumoso tronco, das quais pendem grossos cipós, com cascatas, lagos sinuosos, pontes, refúgios, abrigos e choupanas românticas cobertas de palha, sob os nomes de Átala, personagem de Chateaubriand, e de Paul e Virginie, o casal amoroso de Bernadin de Saint-Pierre, do lado francês, e sob os de Ceci e Peri, do lado brasileiro, menos homenagem a José de Alencar do que ao maestro Carlos Gomes, que foi, como se verá, um dos nomes, senão um totem, de Belém” (Nunes, 2006c, p. 29-30). Na apresentação do livro denominado “Pará, capital: Belém - memórias & pessoas & coisas & loisas da cidade”, ao ver Belém como personagem, Benedito explica as razões dessa obra ter sido escolhida para encetar um projeto de publicação da obra completa de Haroldo Maranhão: Porque do cruzamento dos textos que constituem a antologia, cada um dos quais é uma maneira de ver, sentir Belém, não resulta apenas a cidade como o contexto histórico dessas fontes. As fontes são, por sua vez, fragmentos de uma memória comum, coletiva, de todos e de ninguém em particular. De qualquer forma, pessoalizada, Belém vira personagem, agindo num certo meio, fadada a proceder de uma certa maneira. E uma persona www.revistapzz.com 45


dramática - um modo de falar, de gesticular, de andar, de comer, deitar, de dormir e sonhar, já então a cidade se apresenta, ela mesma, como um conjunto legível - um texto para nossa leitura reflexiva, silenciosa ou -em voz baixa (Nunes, 2000b, p. 9). Em “Luzes e sombras do Iluminismo paraense”, Benedito sintetiza o dilema do conhecimento, de ordem prática e da circulação de ideias no Pará: Singular Iluminismo o do Pará, sem contrapartida político-social. Pois, ao que parece, faltou à então província do Pará e do Maranhão aquele contato subversivo com a Europa que ativou a Inconfidência Mineira e que introduziria os livros insurrecionais nas livrarias particulares dos prelados. Se nos faltavam universidades e imprensa, esta introduzida entre nós por Felipe Patroni em 1822 e que, anos depois, nos traria as ideias do extremista Babeuf pela propaganda do frade Luís Zagalo, como poderíamos ter tido antes e depois da época de Landi as luzes do esclarecimento? (Figueiredo e Nunes, 2002, p. 24). Por esses e outros exemplos, é muito feliz a alusão de Aldrin Moura de Figueiredo (2006, p. 5) no prefácio do livro “Crónica de duas cidades - Belém e Manaus”. Ele se refere a Benedito Nunes e também a Milton Hatoum como “legítimos cronistas de suas aldeias, paraísos perdidos, palácios da memória, invocados pela lembrança do tempo que passou”. Os autores interpretam suas cidades com a sensibilidade rara daqueles que podem estar dentro e também fora. Eles podem olhar o contemporâneo na obra coletiva, social e cultural, que atravessa os tempos, do passado, presente e futuro.

INVENTARIANDO POSSIBILIDADES DE PESQUISA O objetivo geral do projeto em desenvolvimento no NAEA é interpretar a obra do paraense Benedito Nunes sobre a Amazônia, sobre o Pará, sobre Belém, com base em levantamento da produção intelectual do professor, fazendo uso de técnicas e métodos para entender os textos escolhidos e 46 www.revistapzz.com

também promovendo entrevistas com pessoas que possam trazer contribuições ao tema. A dissertação de mestrado tem o objetivo específico de difundir questões e análises relacionadas à Amazônia e às suas culturas, inclusive como conhecimento fundamental para elaboração e compreensão dos programas de desenvolvimento da região. Assim, os conceitos principais a trabalhar são: história e cultura da Amazônia, papel do intelectual e pensamento social. A interpretação não é jamais a apreensão de algo sem pressuposto”, escreve Heidegger em “Ser e tempo”. Situacional, a pré-compreensão inclui um referencial (Vorhabe), um contorno ou perspectiva (Vorsicht) e um esboço conceptual (Vorgriffen), que prendem o intérprete nas malhas de um sentido antecipado. Essa pertença abre, porém, o processo de interpretação (Nunes, 2010b, p. 288). Estudar e ler intelectuais que procuram, de forma crítica, interpretar seu país e sua região é estudar e ler este país e esta região. Daí a relevância do estudo do pensamento social como tema. Essa é a área onde se situa este projeto e que vem progressivamente ganhando espaço em meios acadêmicos: Comumente revisitar ideias (...) pode ser bom princípio para compreender problemas cruciais de uma cultura. O contínuo esquadrinhamento da nossa vida intelectual, persistência marcante no Brasil, acentuada no último quarto do século XX, confirma uma atitude tão recorrente que se firmou como qualidade singular de nossa reflexão (Arruda, 2004, p. 107). Trabalhos indiciários sobre a obra em estudo levam à formulação da seguinte hipótese: Benedito é intérprete da Amazônia e interrogador da realidade amazônica papel que desempenha com sentimento de pertença e a desenvoltura de quem conhece filosofia e literatura, áreas do conhecimento nas quais é autoridade respeitada. Assim, a interpretação reflexiva do humanista Benedito, que retrata a Amazônia, é importante para a história das ideias, de acordo com o entendimento: aspectos culturais, fi-

O objetivo geral do projeto em desenvolvimento no NAEA é interpretar a obra do paraense Benedito Nunes sobre a Amazônia, sobre o Pará, sobre Belém, com base em levantamento da produção intelectual do professor, fazendo uso de técnicas e métodos para entender os textos escolhidos e também promovendo entrevistas com pessoas que possam trazer contribuições ao tema.

losóficos e históricos devem estar presentes nas representações da região, nos seus projetos de desenvolvimento e na avaliação crítica dos processos sociais. O qualificativo ‘humanista’ é usado porque Benedito é intelectual versado em humanidades e dedicado ao estudo e à difusão de obras. Como o objeto de estudo é a obra de grande latitude de Benedito Nunes, o projeto precisa de limites. Assim, considera um segmento ou subconjunto dessa produção intelectual, escolha feita a partir do critério: os textos para análise aprofundam questões ligadas à cultura, à história e à sociedade, com referências a Belém, ao Pará e à Amazônia.

GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa; CASTRO, Edna Maria Ramos de. Benedito Nunes e reflexões sobre a Amazônia . Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v.6 n.2, p.409-424, maio/agosto de 2011. As Ilustrações de Benedito Nunes fazem parte do acervo de caricaturas apresentados no IV Salão Internacional de Humor da Amazônia

JANDUARI SIMÕES

biografia


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RAFAEL CABRAL

cênicas

teatro O ator e diretor de teatro Marton Maués tem 52 anos, é graduado em Letras pela Ufpa, tem especialização em arte-educação pela Puc-MG, mestrado e doutorado em artes cênicas pela Ufba. Trabalha com teatro há 30 anos em Belém do Pará. É ator, diretor e palhaço, já trabalhou no grupo cena aberta e grupo gruta de teatro. Dirige há 14 anos os Palhaços Trovadores, grupo que ajudou a fundar. Há 15 anos pesquisa palhaços, circo e cômicos populares. É amapaense de macapá, há 34 anos radicado em belém.

Pássaros juninos a matutagem e suas relações com o cômico popular medieval e renascentista por Marton Maués

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A

Amazônia possui uma fauna exuberante. Uma rica variedade de pássaros. E um imaginário colossal. No mês de junho, em meio a fogos e fogueiras, no estado do Pará, acontece sempre uma “revoada de pássaros”. São os chamados pássaros juninos – Tucano, Arara, Tangará, Bem-te-vi. Já foram muitos, hoje lutam para sobreviver. Os pássaros são uma tradição popular que existe há mais de cem anos. Seus brincantes cantam, dançam, interpretam. É um teatro completo. Um teatro feito pelo povo. Existem dois tipos de pássaros hoje. Um mais rural, chamado também Cordão de Pássaro ou Pássaro Meia Lua, por se apresentar em espaços abertos, mantendo seus integrantes o tempo todo em cena, numa estrutura semicircular. Outro mais urbano, característico da capital, chamado Pássaro Melodrama Fantasia, que absorveu elementos das óperas e operetas apresentadas no Theatro da Paz, no período faustoso da borracha, incorporando o que o historiador Vicente Salles chama de comodidades do palco – a cortina, a iluminação, os bastidores, a cena frontal do palco à italiana e até o extinto “ponto” (poucos brincantes decoram todo o texto). Por isso, é muitas vezes chamado também de Ópera Cabocla. O tema é sempre o mesmo: a caçada, morte e ressurreição de um pássaro. A este tema central, o Pássaro Melodrama Fantasia agrega outros, envolvendo dramas e sofrimentos de uma família de nobres ou fazendeiros, “costurados” por tramas de suicídio, morte, vingança, traição e incesto. O antagonismo característico dos personagens do melodrama tradicional sobrevive nos pássaros juninos, personificando a

eterna luta do bem contra o mal. No meio desta luta, rompendo a pesada cortina de dramas e lágrimas, aparece a Matutagem: um grupo de personagens responsável pelo riso do pássaro. São algumas características deste grupo que queremos levantar neste ensaio, apontando analogias, sobretudo, com o cômico popular da Idade Média e do Renascimento. Também chamados matutos, os cômicos do pássaro junino, nos diz Marcondes (1997, p. 157), aparecem imediatamente antes ou após as cenas mais patéticas. É formado pelos matutos paraenses – um casal, seu filho, seus compadres e a filha destes –, o matuto cearense, um cabo ou um soldado. Ora participando diretamente do enredo, ora não, os matutos executam seus números através de sketches de teor jocoso e muitas vezes libidinoso, em linguagem que utiliza metáforas nem tão obscuras. Eles conduzem toda a comicidade do pássaro, contrapondo-a à carga dramática do melodrama, intervindo nos momentos de maior tensão. Seus quadros, afirma Marcondes (1997, p. 152), têm por objetivo provocar na platéia outro tipo de catarse: o riso e o gozo provocado pela irreverência, pela malícia e pela obscenidade. Utilizando como referência o estudo do crítico literário russo Mikhail Bakhtin sobre a obra do escritor francês renascentista François Rabelais, destacaremos a relevância do riso no período medieval, que, mesmo em meio aos horrores praticados pela Santa Inquisição da igreja católica, fazia parte do cotidiano, integrado a ritos e festas populares – como o carnaval –, e abolindo fronteiras a vida social devido a seu caráter transgressor. E traçaremos paralelos entre a matutagem dos pássaros juninos de Belém do Pará com os cômicos medievais. Bakhtin nos fala do caráter multifacetado do riso, considerando-o como elemento de fundamental importância para a vida cotidiana da Idade Média e do Renascimento. O riso opõe-se à oficialidade da época, agindo como instrumento de integração das camadas sociais, abolindo fronteiras entre elas: O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal

da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 1999, p. 3) Bakhtin, em seu estudo, destaca o princípio da vida material e corporal, presente no cômico popular, nomeando-o de realismo grotesco – sistema de imagens da cultura cômica popular. Nele, “o princípio da vida material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica” (BAKHTIN, 1999, p. 17). Este princípio, segundo o estudioso, é positivo, não se destaca dos demais elementos da vida, é universal e popular. O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. (BAKHTIN, 1999, p.17) Ao lançarmos um olhar, por mais superficial que eja, sobre os personagens cômicos do pássaro junino paraense, é difícil não notar similaridades com o cômico popular da Idade Média e Renascimento, difícil não fazer analogias, não tentar estabelecer e destacar elementos hereditários herdados pelos pássaros das formas espetaculares e personagens daquele período. Analisando a dramaturgia do pássaro junino, destacando seus recursos melodramáticos, Carlos Eugênio Marcondes de Moura nos diz, quanto aos personagens, que: A humanidade, no melodrama clássico, se caracteriza por uma dupla divisão: de um lado os maus, e de outro os bons e entre eles não há compromisso possível. www.revistapzz.com 49


FOTO: ANIBAL PACHA

teatro

Theodoro - espetáculo sobre Theodoro Braga

A Amazônia possui uma fauna exuberante. Uma rica variedade de pássaros. E um imaginário colossal. No mês de junho, em meio a fogos e fogueiras, no estado do Pará, acontece sempre uma “revoada de pássaros”. São os chamados pássaros juninos – Tucano, Arara, Tangará, Bem-te-vi. Já foram muitos, hoje lutam para sobreviver. Os pássaros são uma tradição popular que existe há mais de cem anos. Seus brincantes cantam, dançam, interpretam. É um teatro completo. Um teatro feito pelo povo. Existem dois tipos de pássaros hoje. Um mais rural, chamado também Cordão de Pássaro ou Pássaro Meia Lua, por se apresentar em espaços abertos, mantendo seus integrantes o tempo todo em cena, numa estrutura semicircular. Outro mais urbano, característico da capital, chamado Pássaro Melodrama Fantasia, que absorveu elementos das óperas e operetas apresentadas no Theatro da Paz, no período faustoso da borracha, incorporando o 50 www.revistapzz.com

que o historiador Vicente Salles chama de comodidades do palco – a cortina, a iluminação, os bastidores, a cena frontal do palco à italiana e até o extinto “ponto” (poucos brincantes decoram todo o texto). Por isso, é muitas vezes chamado também de Ópera Cabocla. O tema é sempre o mesmo: a caçada, morte e ressurreição de um pássaro. A este tema central, o Pássaro Melodrama Fantasia agrega outros, envolvendo dramas e sofrimentos de uma família de nobres ou fazendeiros, “costurados” por tramas de suicídio, morte, vingança, traição e incesto. O antagonismo característico dos personagens do melodrama tradicional sobrevive nos pássaros juninos, personificando a eterna luta do bem contra o mal. No meio desta luta, rompendo a pesada cortina de dramas e lágrimas, aparece a Matutagem: um grupo de personagens responsável pelo riso do pássaro. São algumas características deste grupo que queremos levantar neste ensaio, apontando analogias, sobretudo, com

o cômico popular da Idade Média e do Renascimento. Também chamados matutos, os cômicos do pássaro junino, nos diz Marcondes (1997, p. 157), aparecem imediatamente antes ou após as cenas mais patéticas. É formado pelos matutos paraenses – um casal, seu filho, seus compadres e a filha destes –, o matuto cearense, um cabo ou um soldado. Ora participando diretamente do enredo, ora não, os matutos executam seus números através de sketches de teor jocoso e muitas vezes libidinoso, em linguagem que utiliza metáforas nem tão obscuras. Eles conduzem toda a comicidade do pássaro, contrapondo-a à carga dramática do melodrama, intervindo nos momentos de maior tensão. Seus quadros, afirma Marcondes (1997, p. 152), têm por objetivo provocar na platéia outro tipo de catarse: o riso e o gozo provocado pela irreverência, pela malícia e pela obscenidade. Utilizando como referência o estudo do crítico literário russo Mikhail Bakhtin sobre a obra do escritor francês renas-


FOTO: mardock

A Amazônia possui uma fauna exuberante. Uma rica variedade de pássaros. E um imaginário colossal.

centista François Rabelais, destacaremos a relevância do riso no período medieval, que, mesmo em meio aos horrores praticados pela Santa Inquisição da igreja católica, fazia parte do cotidiano, integrado a ritos e festas populares – como o carnaval –, e abolindo fronteiras a vida social devido a seu caráter transgressor. E traçaremos paralelos entre a matutagem dos pássaros juninos de Belém do Pará com os cômicos medievais. Bakhtin nos fala do caráter multifacetado do riso, considerando-o como elemento de fundamental importância para a vida cotidiana da Idade Média e do Renascimento. O riso opõe-se à oficialidade da época, agindo como instrumento de integração das camadas sociais, abolindo fronteiras entre elas: O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as fes-

tas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 1999, p. 3) Bakhtin, em seu estudo, destaca o princípio da vida material e corporal, presente no cômico popular, nomeando-o de realismo grotesco – sistema de imagens da cultura cômica popular. Nele, “o princípio da vida material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica” (BAKHTIN, 1999, p. 17). Este princípio, segundo o estudioso, é positivo, não se destaca dos demais elementos da vida, é universal e popular. O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biolówww.revistapzz.com 51


teatro gico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. (BAKHTIN, 1999, p.17) Ao lançarmos um olhar, por mais superficial que eja, sobre os personagens cômicos do pássaro junino paraense, é difícil não notar similaridades com o cômico popular da Idade Média e Renascimento, difícil não fazer analogias, não tentar estabelecer e destacar elementos hereditários herdados pelos pássaros das formas espetaculares e personagens daquele período. Analisando a dramaturgia do pássaro junino, destacando seus recursos melodramáticos, Carlos Eugênio Marcondes de Moura nos diz, quanto aos personagens, que: a humanidade, no melodrama clássico, se caracteriza por uma dupla divisão: de um lado os maus, e de outro os bons e entre eles não há compromisso possível. Nos melodramas dos autores do pássaro junino o mau, por vezes, um tirano sanguinário, é personificado por um fidalgo transplantado para a Amazô nia, um fazendeiro ou um seringalista, o “coronel da borracha”, cujos atos de exploração econômica e violência ainda estão guardados na memória do povo amazônico. (MOURA, 1997, p. 151) O mal é coadjuvado pela feiticeira e o bem pela fada, aquele sempre vencido por este, ao final do melodrama. Os títulos nobiliários confundem e invertem sua hierarquização. o melodrama passarinheiro, um duque pode ter mais poder que um rei e oprimir a filha deste. As ações destes dois grupos de personagens ocupam quase toda a extensão das peças, com o mal imprimindo uma ensão constante até sua derrocada, que só acontece no final do melodrama. Esta tensão é, por vezes, amenizada pela interferência de elementos do imaginário e cultura amazônica, da matutagem, dos números de dança, dos embates entre feiticeiras e fadas. (...) nesse universo palaciano, 52 www.revistapzz.com

movido a paixões as mais diversas, a valorosa maloca dos Aruãs e dos Tupinarés poderá, a qualquer momento, sair dos recônditos das matas amazônicas, a matutagem surgirá quando se menos espera, com toda a sua ironia, fina e grossa, com seus embates sexuais, com seus dançarás, seres míticos, caveiras, morcegos e demônios, virão assombrar as gentes, fadas e “fiticêras” se digladiarão, o bailé carnavalizará o mundo e algum pássaro inocente será abatido por um malvado caçador. Mas sempre ressuscitará. (MARCONDES, 1997, p. 155-156) A matutagem, grupo de personagens do pássaro junino, que nos interessa de perto, como já dissemos, ora participa diretamente do enredo, ora não tem nenhuma ligação com este. Em ambos os casos, porém, é com sua irreverência, seus jogos verbais e corporais explícitos ou de duplo sentido, sua sagacidade, ironia, zombaria e também sua ingenuidade, que o matuto instaura o riso que, tal qual o cômico medieval e renascentista, transgride as normas, as hierarquias, a trajetória linear do enredo. De acordo com Bakhtin (1999, p. 4), as múltiplas manifestações da cultura cômica popular podem subdividir-se em três grandes categorias, sejam elas: 1. As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.); to paraense, e sua mulher, Priscila, em que a macaxeira é empregada como metáfora. O texto foi extraído da peça “Os longos dias de vingança, de Laércio Gomes. Puqueca – Vou te fazer uma pergunta Pra responderes a altura Se tu gostas de macaxeira Um pouco mole ou bem dura Priscila – Esta tua macaxeira Uma vez eu já pruvei Mas é que tava tão mole Que eu comi e não gostei Puqueca – Veja só se tu gostasse O que seria de mim Sem gostar comeste tanto Que não queria mais ter fim Priscila – Eu não queria mais ter fim Eu vou já te explicar É que macaxeira mole É difícil de eu gostar Mesmo entre as personagens mais jovens, como os filhos adolescentes dos

matutos paraenses, o tom de confronto sexual permanece, assim como as metáforas “agrárias”, como nos mostra Marcondes (1997, p. 225): Jojoca – Quando eu fui no teu roçado Fiquei muito admirado Teu roçado é muito novo E ainda tá muito pelado Chicuta – Isso era antigamente Quando tu andou por lá Mas se tu visse ele agora Ias pedir pra mim te dá. Os intérpretes, nos pássaros juninos, são escolhidos pela adequação de seus dotes físicos aos personagens, segundo a ótica de cada ensaiador. No caso dos matutos, contam a desenvoltura física e verbal, além de algumas deformidades: como pessoas muito magras ou muito gordas, velhos, anões, desdentados. Em uma apresentação do Cordão do Tangará, no teatro do Museu Goeldi, vimos uma brincante anã fazendo a filha de um dos casais de matutos, a correr pela cena com uma grande chupeta de plástico ao pescoço. O contraste velho/novo vimos no Pássaro Uirapuru, a se apresentar no mesmo local: o matuto, desempenhado por um brincante jovem, e sua esposa, por uma senhora de idade avançada. Poderíamos nos remeter, sem incorrer em exageros, à ambivalência do cômico grotesco, apontado por Bakhtin, em que vida (o jovem) e morte (a velha) estão interligadas? Vale o risco da analogia – guardadas as devidas proporções, é claro. Diz o crítico russo, ao falar do grotesco das imagens de velhas grávidas e risonhas de Kertch, feitas em terracota, e que se encontram no museu l’Ermitage, de Leningrado: Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável e calmo no corpo dessas velhas. Combinamse ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo. (BAKHTIN, 1999, p. 22-23)


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música

os mestres

A PASSAGEM DOS

Ana Flor / Arq. Pará Música

MESTRES

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CARDOSO E CUPIJÓ PARTIRAM, MAS DEIXARAM LIÇÕES DE CULTURA POPULAR E DE ECONOMIA CRIATIVA. SUAS OBRAS MERECEM ESTAR NO COTIDIANO PARA AS FUTURAS GERAÇÕES DA AMAZÔNIA E DO BRASIL

E

m 2012 o câncer vitimou dois mestres da cultura popular musical do Pará. Um tumor no pulmão fez falecer no dia 25 de setembro, em Belém, Joaquim Maria Dias de Castro, mais conhecido como Mestre Cupijó. Grande divulgador do siriá, o compositor e instrumentista gravou seis LP’s na década de 1970 e ajudou a difundir pelo Brasil e pelo mundo o gênero musical que fora criado por negros às margens do Rio Tocantins, onde ele nasceu no município de Cametá. Cerca de dois meses depois, no dia 20 de novembro, um câncer generalizado levou a vida de José Ribamar Cardoso, o Mestre Cardoso, piauiense de nascença que se estabeleceu em Ourém desde 1993. Cardoso tornou-se conhecido a partir do trabalho de pesquisa do músico paraense Fábio Cavalcante, que registrou e até gravou um disco com as toadas de boi do mestre, que compunha inspirado por acontecimentos históricos universais e registrava também os costumes do interior por onde passou. A contribuição desses dois artistas para a cultura popular do Pará e do Brasil não é pequena e merece mais do que apenas ser registrada. Cupijó, filho do regente da centenária banda Sociedade Euterpe Cametaense, fundada em 1874, começou a estudar música aos 12 anos de idade. Tocou primeiramente clarineta, mas teve que assumir o saxofone quando o instrumentista da banda da cidade morreu. Mestre Cardoso, nascido em 1933, falecido em 2012, vítima de cancer generalizado

por Elielton

Amador*

Acelerando o andamento e adicionando harmonia e fraseados do instrumento ao ritmo local, predominantemente percussivo, ele tornou o siriá um dos mais populares da região. Suas músicas foram gravadas por Fafá de Belém e até pelo português Roberto Leal.

No momento em que se fala em Economia Criativa, (...) é importante lembrar quanto “conteúdo” mestres como Cardoso, Cupijó e tantos outros (alguns ainda vivos) deram para um soft power da cultura popular da Amazônia. Muitos lamentaram sua morte, como Pinduca, o rei do carimbó, que à época disse que deveria haver outro a levantar a bandeira do siriá. A jornalista Luciana Medeiros, diretora de um documentário sobre a vida de Mestre Vieira, o inventor das guitarradas, alertou para o fato de que o material produzido por artistas como Cupijó e Vieira está registrado em vinis anigos e não são alvo do interesse de gravadoras. A preocupação é pertinente uma vez que muitos desses registros dependem de um interesse comercial ainda incipiente, e estão fora de cátalogo. É provável que ele aumente após a morte dos mestres, mas é de se lamentar que as obras dependam da partida desses mestres para serem descobertas pelas novas gerações. Segundo José Joaquim Dias, filho de Cupijó, o pai deixou farto material inédito, pois já não gravava e pouco tocava. Tornara-se um recluso nos últimos anos. Por causa da doença também parou de advogar, outra ocupação que tinha. Morreu aos 74 anos, deixou filhos, netos e bisnetos. Uma breve pesquisa na internet mostra como a arte popular da Amazônia

pode gerar interesse comercial. O LP “Siriá, Siriá, Siriá” de Mestre Cupijó e Seu Ritmo, de 1975, está a venda no maior site de compras e vendas do Brasil, o Mercado Livre. Chega a custar R$ 550. A capa traz a imagem de um ventre feminino vestindo uma tanga com traçados tapajônicos, o que demonstra uma certa visão de apelo popular do ritmo, seja nas tradições culturais, seja no apelo sensual algo moderno. Já no site Americanas.com, um dos maiores magazines virtuais brasileiros, o único CD com as obras do compositor cametaense até então disponível no mercado, “Sons da Amazônia”, esgotou após a morte dele. Por sua vez, Mestre Cardoso demonstrava uma verve poética sensível, apurada em anos de matança de boi, o festejo folclórico em que ele começou ainda garoto no Nordeste e que trouxe para o Pará ainda na juventude. Nas toadas, além dos temas cotidianos, falava sobre eventos como o 11 de setembro em que ocorreu o ataque ao World Trade Center e de personagens como Saddam Hussein. “Meu sentido corre no mundo todo não é só dentro de casa nem só em Ourém. E eu retenho isso na minha memória”, disse ele certa vez em entrevista a Fábio Cavalcante. A desenvoltura das letras do mestre mostra também seu duplo apelo popular: no diálogo entre a tradição e na inclinação ao interesse das massas. Pura prática criativa de uma economia predominantemente simbólica, que levou Fábio a produzir um disco exclusivamente com temas de Cardoso: “Do meio do século XX para o XIX”. O álbum saiu em 2011, pelo selo Na Music, e nele as canções ganharam recursos e arranjos eletrônicos. O registro das obras de Cardoso foi feito em sua maioria pelo próprio Fábio Cavalcante, que após a morte de Cardoso publicou músicas e entrevistas ainda inéditas no blog que mantém na internet. www.revistapzz.com 55


os mestres

Marcelo Lelis

Mestre Cupijó (1936 – 2012)

Ana Flor / Arq. Pará Música

SOFT POWER - O disco que Fábio Cavacante gravou com as obras de Mestre Cardoso traz arranjos eletrônicos para temas contemporâneos., como o ataque de 11 de setembro.

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ESGOTADO - O único CD disponível com as músicas de Mestre Cupijó esgotou no site Americanas.com após suas morte, em setembro de 2012. Novas edições dependem do interesse comercial.


Marcelo Lelis

Mestre Cupijó e Fábio Cavalcante, em 2011, em Belém, à época do lançamento do disco “Do meio do Século XX para o XXI”.

O compositor Ronaldo Silva, fundador do grupo Arraial do Pavulagem, foi um dos últimos a visitar Cardoso no hospital em Belém. Ele falou a um site de notícias local e ressaltou a importância do mestre. “Pessoas como ele são semeadoras do bem e vem dar o alerta de que a música pode dignificar, trazer alegria e unir as pessoas. E isso Cardoso fez com muita maestria. A passagem dele por aqui foi brilhante”, disse. Cardoso morreu aos 79 anos e também deixou filhos e netos. Toda vez que um mestre parte há sempre uma dicussão sobre o abandono, a

APELO - A capa do disco de Mestre Cupijó, de 1975, traz o apelo popular ligado à sensualidade. O disco esta à venda por R$ 550 no site Mercado Livre.

falta de reconhecimento e valorização dos artistas populares. Também há sempre uma dicotominia entre a tradição popular e o interesse “maléfico” das industrias culturais. Interpretações menos dogmáticas a cerca da cultura de massas, como uma visão mais contemporânea das análises de Walter Benjamin e, seguindo seus rastros, os estudos culturais latino-americanos de Jesus Martín-Barbero e Nestor Garcia Canclini demonstram que o consumo e a cultura não estão necessariamente opostos no tabuleiro das trocas simbólicas. No momento em que se fala em economia criativa, um versão pós-moderna das industrias culturais, é importante lembrar quanto “conteúdo” mestres como Cardoso, Cupijó e tantos outros (alguns ainda vivos) deram para um soft power da cultura popular da Amazônia. Há farto material a ser explorado comercialmente desses artistas. Suas famílias e seus herdeiros merecem os frutos do trabalho de pessoas que, além de um título simbólico, eram provedores de família. Mas, para além do comércio da obra deles, há também o significado aos povos, a sensibilidade e a reflexão sobre a diversidade de culturas, em que as indústrias criativas devem se firmar num novo tempo, tornando a cultura de massas um veículo de mediação para as culturas esquecidas ou fora do eixo do sistema das indústrias culturais instaladas. Aos mestres, com carinho, é preciso mais que registrar, preservar e tornar ainda mais popular. Sem deixar, obviamente, que o mercado simplesmente dite as regras. Elielton Amador é jornalista, editor do site Pará Música e mestrando em Comunicação, Cultura e Amazônia pela Universidade Federal do Pará.

NA REDE: Acesse o blog de Fábio Cavalcante para ouvir material de Mestre Cardoso. blog.fabiocavalcante.com

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lançamento

Obafafá

daGláfira Amador

Artista engajada e produtora ativa em seus projetos, Gláfira Lobo teve muito trabalho em 2012. Depois de largar a banda Álibi de Orfeu e de participar de trabalhos constantes com o ponto de cultura Bafafá Pró Rock, ela foi a principal produtora do show “Ao vivo”, patrocinado pelo Conexão Vivo através da Lei Semear, que contou com a participação de Renato Torres, Adriana Cavalcante, Rande Frank e Charles Andí e passou por Soure e Castranhal antes de encerrar temporada no Theatro da Paz, em Belém. Agora nasce o primeiro disco solo dela, “Jardim das Flores”, que chega como produção independente pelo selo Na Music. Filha de um programador de rádio, Gláfira é uma cantora eclética por natureza. Cheia de vitalidade, ela sempre se impõem em seus trabalhos. Foi assim com “Jardim das Flores”, que teve a direção musical de Renato Torres e contou com a participação dos músicos Maurício Panzera (contrabaixo), Arthur Kunz (bateria) e Lenilson Albuquerque (teclados). Gerado num processo agitado de intensa atividade artística misturada à atividade empresarial e de gestão, o disco chega cheio desse vitalismo. Gláfira nos recebeu, no meio de sua agenda agitada, que não dispensa um final de semana de fim de ano em Soure, sua cidade natal, para uma entrevista. Confira os melhores trechos na próxima página e leia a íntegra no Pará Música.

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Cantora, produtora e militante, ela Lança “Jardim das Flores”, seu primeiro disco, e fala à PZZ

Alan Soares

por Elielton


C

omo surgiu a concepção do disco Jardim das Flores? Foi um trabalho longo. O disco veio sendo pensado desde 2009, quando montei o show “Jardim Secreto”. Eu não sabia como queria que ele fosse, só sabia como não queria. Isso foi um passo muito importante, pois me delimitava no universo musical. Sem nenhum culpa, pedi músicas a compositores amigos, fui a shows, me propus a compor e conversei com muitos amigos sobre o processo todo. Cheguei a selecionar aproximadamente 30 músicas e a partir daí comecei a trabalhar nelas.Tive por várias vezes conflitos comigo e com a minha voz, porque muitas músicas eram lindas, mas eu não conseguia gosta-las em mim. E a parceria com o Renato Torres, que dirigiu e arranjou o CD, foi providencial nesse sentido. Nos demos o trabalho de trocar tons, mudar andamento e por fim dizer não àquela música. O disco foi aos poucos se moldando e tomando corpo, e só no mês de gravação é que o repertório se definiu concretamente. Superado este momento, eu quis um disco onde as pessoas pudessem me ouvir, com arranjos simples, poucos instrumentos e onde o destaque fosse a voz. Consegui. Isso porque um dia, conversando com o Pio Lobato, ele me disse que gostava muito de me ouvir cantar, mas que por muitas vezes eu deixava de lado a voz e ficava encoberta por arranjos e interpretações mirabolantes, e que eu deveria deixar as pessoas me ouvirem. Aquilo ficou na minha cabeça por muito tempo e isso me ajudou a dar cara ao “Jardim das Flores”. Como foi o processo de produção e gravação? O disco é independente, quase todo na base da troca de serviços. Fiz no formato simples com apoio de parceiros que acreditaram no trabalho. Assim foi com a Na Music, que me cedeu horas no estúdio e lançou o disco; a Amarelo 115 Foto Estúdio que fez as fotos; a Box Comunicação e MKT que fez o projeto gráfico; e a FCPTN que me ajudou com a prensagem. As

gravações foram feitas, na sua maioria, na casa dos próprios músicos. A bateria era o que mais me dava medo, mas o Kunz conseguiu um resultado que me deixou satisfeitíssima, e foi além do que eu esperava. Gravar com uma banda única foi a melhor pedida. Escolhi o Clepsidra, porque os meninos já me conheciam, tocavam comigo e eu gosto demais do trabalho deles. Isso me facilitou a vida porque as coisas foram acontecendo quase que por osmose. Eles já conheciam 80% do disco, pois era também o repertório do show Jardim Secreto, que depois de perder duas músicas e ganhar outra, tornou-se o Jardim das Flores. Gravei a voz com o Alcir Meireles, que ficou encantado com o disco e na hora foi me dando vários toques na dicção, respiração e interpretação. Foi lindo, gravei tudo em dois dias. A mixagem ficou por conta do Lenilson Albuquerque, que também fez uma participação especial tocando piano. Essa era a parte mais delicada do CD, porque ela é que dá a sentença final do trabalho. Se vai ou não prestar (risos). Mas uma coisa tinha na cabeça, eu não podia ficar “neurando” muito, porque senão nunca acaba! O Lenilson foi muito certeiro e eu mudei algumas poucas coisas na mixagem dele. E pronto, nasceu!

“Eu, por diversas vezes, tive medo de Deus e minha relação com a Igreja Católica foi muito conturbada durante a adolescência. Até eu descobrir que Deus podia ser mais leve...” Há canções com um misto de religiosidade hedonismo. Há uma coisa mais despojada, mas prevalece um disco de MPB, parece-me. Faltou rock and roll no processo? Talvez essa dualidade seja muito presente em mim. Sou nascida no seio de uma família católica, com uma matriarca que era muito fervorosa e a forma como ela nos passava isso era muito intensa. Eu, por diversas vezes, tive medo de Deus e minha relação com a Igreja Católica foi muito conturbada

durante a adolescência. Até eu descobrir que Deus podia ser mais leve, ameno, humano e mais perto do que eu poderia aceitar como amigo, irmão e pai. “Prece a São José” é fruto disso, perdi o medo e hoje consigo pedir coisas terrenas (risos). Mas é só essa música que tem essa “pegada religiosa”, as outras são bem mundanas mesmo. O nome do disco também tem um certo misticismo, ia se chamar Jardim Secreto. Ai, eu conversando com um grande amigo músico, o Gustavo Correia, ele me chamou atenção falando que as palavras tinham força e coisa e tal... e era para eu reparar que o disco estava travado, secreto. Fiquei apavorada e troquei o nome do disco para Jardim das Flores. Não é que no mesmo dia eu fui convidada para fazer dois shows no SESC e o disco em um mês aconteceu. Passada! Padrão, não. Acho que o disco conseguiu ter uma unidade, porque teve um só arranjador, foi concebido em formato de “Power trio” e gravado pelos mesmos músicos do começo ao fim, mas ele tem uma diversidade grande de estilos, entre eles cantiga, baião, samba, jazz, blues e drum ‘n’ bass. MPB? Também não. Eu costumo dizer que ele é de música brasileira. Não gosto de rotulá-lo. Cada um que ouça e diga o estilo que quer armazena-lo na sua biblioteca musical, porque é só pra isso que servem os rótulos. E o Rock and Roll!? Ele participou de todo o processo. Na forma de se produzir o disco, na banda que o gravou, nas timbragens, na intensidade na hora de explodir com a voz. Ah! Mano, o rock tá na veia (risos). A pergunta anterior obviamente está relacionada ao fato de você ter atuado como cantora da Álibi de Orfeu e ser membro da Pro Rock. Não há mais distinções de gêneros na música contemporânea? O Rock, há muito tempo, evoluiu de estilo musical para forma de se fazer música. Dele extraímos a forma mais usada atualmente da relação de trabalho dentro da música. Até o formato de distribuição mais moderno foi o rock que nos revelou. Para ler mais: acesse: bit.ly/UZ0WU2

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moda

ana miranda

naFibra daModa A estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reinventa a moda, ao desenvolver coleções de alta costura inspiradas no universo amazônico

A estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reinventa a moda, ao desenvolver coleções de alta costura inspiradas no universo amazônico. Desde quando montou seu primeiro ateliê, sua arte busca sempre enveredar pelo caminho da moda regional que dialoga com as tendências globais. Ana nasceu e cresceu em Boa Vista, Roraima, então pequena e pacata cidade amazônica. Ainda na infância foi escoteira, treinou ginástica rítmica e basquete. Certo dia contratou um ensaio fotográfico a revelia da mãe, que só tomou conhecimento quando o fotógrafo retornou com as fotos e a conta. Os anos se passaram e chegou a vez de Ana se despedir e vir estudar em Belém. Então vieram os “embalos de sábado à noite” e os concursos de dança. Na década de oitenta, enquanto estudante

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por Augusto Miranda

de biblioteconomia na Universidade Federal do Pará participa da efervescência cultural e política universitária nos derradeiros tempos da ditadura. Nas férias escolares ela sempre retornava para sua cidade, e Boa Vista se tornava uma festa de reencontros e badalações, entre as quais desfiles de moda em que Ana atuava como modelo. Já graduada, retorna para sua cidade natal, começa a carreira de bibliotecária e nas noites calmas de Boa Vista, inicia com uma amiga a criação e produção de mochilas. O casamento com um paraense lhe trouxe de volta para Belém, então veio a maternidade e a atuação como bibliotecária. Em 2004 Ana Miranda entrou para a Associação de Costureiras e Artesãs da Amazônia - Costamazônia, desenvolveu uma coleção calcada no étnico, e touxe estampas de zebra, girafas e elefantes em peças em tons terracota, amarelo e laranja, característicos do estilo das savanas. O desfile teve boa recepção crítica e foi matéria na revista Manequim. Incorporou o tururi forrado com finas estampas importadas e de acabamento impecável. O tururi, fibra vegetal resistente e flexível da Amazônia, é muito comum no vestuário amazônico. Sua cor natural é de um castanho escuro na pele da Manicaria saccifera, na casca das palmeiras de Ubuçu. O tururi é

muito utilizado na confecção de artesanatos e acessórios de moda, chapéus, bolsas. O material, in natura, caído no chão é recolhido ou retirado pelo caboclo com a ajuda da peconha, para além do destino da moda, cobre o telhado de cabanas dos cabanos ribeirinhos dos rios da Amazônia e é vendido nas feiras do Ver-o-peso e cidades do interior, o re-aproveitamento do que é descartado como um fenômeno de renovação e adubação torna-se o vestir do cotidiano em meio ambiente sustentável. A fibra está presente também nas coleções de bolsas, acessórios e biojóias da estilista. Em 2009, a Estilista produziu roupas em papel Kraft e tururi para um desfile de joias amazônicas ocorrido no São José Liberto. O resultado obtido foi surpreendente em modelos que expressavam beleza, com a sobriedade necessária para um desfile de joias. Em 2010 Ana Miranda apresentou a coleção que resgata o grafismo indígena amazônico para a moda. A estilista definiu que “o conceito da coleção busca uma nova maneira de apresentar esta arte, através da confecção de roupas modeladas e pintadas no papel”. A estilista desenvolveu um trabalho conceitual, que incorpora ao universo da moda as inspirações de culturas amazônicas ancestrais, ao mesmo tempo que visava ressaltar o caráter efêmero do mundo fashion.


paulo santos

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ana miranda

Neste desfile levei para a passarela lindas mulheres de todas as idades, mulheres que representam a realidade das mulheres paraenses e brasileiras.

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na Miranda sempre construiu suas coleções, figurinos para cantores e músicos, ou mesmo modelos exclusivos para clientes, através de um processo criativo que se propõe construir as vestes adequadas para os personagens, que as pessoas iriam representar em uma ocasião especial de suas vidas ou nas passarelas. Entre as coleções que merecem maior destaque, a coleção Lendas Amazônicas, de 2007, retratou entidades do universo místico regional (Cruviana, Matinta Perera, Boto, do Boto Cor de Rosa, Iara, Vitória Régia, Mandioca, Açaí, Cobra Grande e Mãe d’água) foram alguns dos temas de sua inspiração que encantam e seduzem, revisitadas pela estilista com o intuito de demonstrar o poder de

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Fotos: paulo santos

sedução da mulher brasileira, através da beleza, da leveza, da fluidez dos tecidos misturados com matéria-prima regional resultando na fusão de moda e magia. Em depoimento da época, a estilista explica que: “Esta coleção é inspirada nas lendas regionais, resgatando o valor simbólico da identidade amazônica para a cultura brasileira. A proposta é expressar a beleza essencial imanente do universo encantado

Coleção Lendas Amazônicas, de 2007, retratou entidades do universo místico regional. Da esquerda para à direita, de cima para baixo: Maissa Vitória Régia, Paula Diocesano, Yara, Walda Marques, Nacime Camara, Carla Padret, Vitória d’Oliveira, Wilma Reis, Nara d’Oliveira e Nara Eluan.

amazônico, em dez vestidos concebidos de forma completamente afinada com as tendências da moda contemporânea”. Em 2009 a estilista apresentou a coleção Cores de Jorge, com roupas, acessórios, bolsas e biojóias inspirados nas cores e nos elementos que compõem o imaginário do santo guerreiro. Ainda em 2009, a estilista inovou de duas maneiras em outra coleção: optou por levar às passarelas mulheres de várias idades e estilos que não exercem a carreira de modelo. Além disso, Ana ousou em reconstruir a roupa exibida em pleno desfile, mostrando as possibilidades diversas que esta pode proporcionar, quando se lhe acrescenta acessórios. “Neste desfile levei para a passarela lindas mulheres de todas as idades, mulheres que representam a realidade das mulheres paraenses e brasileiras. Pude inovar levando aos olhos do público um pouco da produção que é feita nos bastidores”, arremata Ana.

Coleção Cores de Jorge, com roupas, acessórios, bolsas e biojóias inspirados nas cores e nos elementos que compõem o imaginário do santo guerreiro. Da esquerda para à direita: Tati Brown, Eliana Semblano, Ana Miranda, Adriano Barroso, Aline Fulana, Cicla, Ailson Braga e Lia

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moda

ana miranda

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Coleção Manguerosa, apresentada em 2011, utilizou as cores emblemáticas de Belém, como o verde das mangueiras, o amarelo-manga e o açaí, iniciando um ciclo que homenageia a cidade. Ao procurar desnudar o trabalho da estilista, vemos a realidade vestida de texturas, de clima, de floresta, dos rios, no ciclo imutável de suas tr ansições que mudam de cor e de estações como quem muda de roupa. Ventindo-se e despindo-se, para ocasiões especiais, rito e travessia, vestida de cores, cheiros, sabores, de folhagens despindo-se a todo o instante que recicladas no processo artístico se transformam em novas linguagens, verdadeira arte incorporada no cotidiano com o cheiro incandecente e a simbologia das matas. O ser humano retoma o envolvimento com o meio que o re-cria e o inspira. Sentimos na arte visual de Ana Miranda a sinestesia dos sentidos de uma alma lavada

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Coleção Manguerosa apresentada em 2011

Sentimos na arte visual de Ana Miranda a sinestesia dos sentidos de uma alma lavada e de um tecido alinhavado lavrado a partir da poética da cor e dos traços herdadados de nossos antepassados

e de um tecido alinhavado lavrado a partir da poética da cor e dos traços herdadados gratuitamente pela Mãe Natureza. Encontramos nessa arte os elementos do segredo e da força espiritual da mitologia e da imaginação que simbolicamente domina o criador e as criaturas nascidas do barro amazônico, da terroada e dos lugares longinquos das cidades. A relação de Moda e Mito como elemento étnico ganha maior expressão quando no nível da arte e da cor atuam como elemento poético e simbólico da cultura e recria o olhar nas cidades, destaca-se da multidão uniformizada e apressada, a vestimenta que combina com os ardores coloridos da natureza. São detalhes de sua obra calcada na multireferencialidade material da mata e dos seus povos tradicionais dialogando com as selvas de pedra de céu cinza e gás carbônico que suplantam as megalópoles. O processo de construção de uma peça ou coleção inicia com uma entrevista com “os atores” envolvidos, seguida de uma pesquisa, ambos alicerçam o processo de criação que resulta no produto final construído por sua equipe. Talvez aí resida a semente da atual carreira de figurinista. A Relação entre Moda e Identidade no momento em que a moda no Brasil é um dos principais produtos de exportação e representa parcela significativa do Produto Interno Bru-

to, além de ser um ramo da indústria e do comércio que gera milhões de empregos diretos e indiretos. Observamos que a moda no universo da Amazônia se impõe como importante área estratégica de investimentos, desenvolvimento regional e parte da matéria prima que abastece esse mercado pode advir da região amazônica. Neste sentido, iniciam-se movimentos com vistas a engajar nesse mercado promissor produtos com identidade regional que passam a representar o diferencial no atual cenário de globalização. No livro Fibras da Amazônia na Produção de Moda – Uma proposta de indicação geográfica, concebido por Felicia Assmar Maia, aborda a questão do significado de Indicações Geográficas, previstas na Lei 9.279/96, que se constitui numa forma especial de proteção de bens imateriais ou intangíveis, dentro da seara da propriedade intelectual. O objetivo da indicação, nos moldes em que é prevista a Lei, é o de distinguir a origem do produto ou do serviço em função das peculiaridades de sua manufatura ou fama que a área geográfica passa a ter por sua obtenção ou produção. É imprescindível não só observar como em âmbito nacional ela se encontra normatizada, mas também a sua aplicação prática; e quanto valor agregado é capaz de gerar, tanto para o produto registrado como para a região que o detém como próprio.


paulo santos

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ana miranda

Em 2011, Ana concluiu o curso de Figurino para Teatro, Cinema e Dança na UFPA.

A carreira de figurinista Em 2011 Ana concluiu o curso de Figurino para Teatro, Cinema e Dança na Universidade Federal do Pará, participando da equipe que concebeu e produziu o figurino da peça “A Casa da Viúva Costa” de Antonio Tavernard. Em seguida foi responsável pelo figurino da peça “Quantos infelizes ainda o seriam hoje se tivessem descoberto a tempo em que ponto estavam” inspirada na obra de Samuel Beckett. Ana Miranda sempre construiu suas coleções ou mesmo as roupas de festa para suas clientes, em um processo criativo que se propunha construir as vestes adequadas para os personagens, que as pessoas iriam representar em uma ocasião especial de suas vidas: noivas, madrinhas, debutantes, convidados, cantoras e cantores. O processo de construção de uma peça ou coleção inicia com uma entrevista com “os atores” envolvidos seguida de uma pesquisa, ambos alicerçam o processo de criação que resulta no produto final construído por sua equipe. Talvez aí resida a semente da atual carreira de figurinista. 66 www.revistapzz.com


Raimundo Pacc贸

Raimundo Pacc贸

Pe莽a Quantos Infelizes ainda o seriam hoje se tivessem descoberto a tempo em que ponto estavam, Dirigido por Paulo Santana inspirado na obra de Samuel Becket.

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ana miranda

AZULEJOS

DEBELร M

Estilista Ana Miranda e o Diretor de Teatro Clรกudio Barros 68 www.revistapzz.com


A estilista Ana Miranda desenvolve uma arte conceitual que reinventa a moda, ao desenvolver coleções de alta costura inspiradas noS azulejos portugueses do século XVIII

por Augusto Miranda

O

que os azulejos existentes no casario dos bairros de Nazaré e Reduto, os sobrados da Rua Leão XIII e do Boulevard Castilho França ou a imponência do Palacete Pinho tem a ver com a moda? Os azulejos destes monumentos históricos serviram de fonte de inspiração para a coleção “Azulejos de Belém” de Ana Miranda. Uma passagem da obra “Belém do Grão Pará” de Dalcídio Jurandir (ver Box), os passeios fotográficos pelo centro histórico de Belém, além de pesquisas em acervos de colecionadores como Evandro Teixeira, Rosa Lúcia Soares e Manuel Henriques Jr. foram o ponto de partida para o desenvolvimento dos quinze mode-

los levados à passarela em novembro último. Ana desenvolveu a padronagem das peças recriando os elementos gráficos presentes nos azulejos. Optou por utilizar os tecidos brancos para valorizar as cores marcantes. Primeiramente os croquis no papel. Depois o desenho e a pintura no tecido, com a colaboração dos artistas plásticos Vânia Braun, Mauro Barbosa e Renan Nascimento. Com o vagar necessário às grandes obras, dia após dia foram surgindo belas estampas nos tecidos, já modelados e cortados. Depois a costura e os necessários ajustes aos corpos dos manequins convidados. Fazer uma coleção de moda inspirada no patrimônio histórico da cidade é a maneira da estilista de denunciar a degradação em que se

Um quarteirão de azulejos, que sobrados! Que acolhedora antiguidade neles, escorrendo de suas paredes e platibandas, suas janelas sempre fechadas e ao mesmo tempo tão cordiais e de seus porões gradeados em que se via criada gomando e se espalhava um aroma de alta cozinha. Pareciam velhos pelo sossego em que viviam e novos pela frescura e cor

encontra este patrimônio. De forma que a contribuição da estilista para a necessária preservação é conceber uma moda que dialoga com as mais variadas manifestações culturais da cidade, envolvendo arquitetura, literatura, pintura, dança música, teatro e cinema. Vestir-se com a cidade: a moda como um ato de resistência. Resistência que é potencializada nesta coleção inusitada apresentada por um seleto grupo de artistas que representam o efervescente cenário cultural de Belém: Alba Maria, Ana Unger, Cacau Novais, Camila Honda, Diana Flexa, Juliana Sinimbu, Keila Gentil, Nani Tavares, Nanna Reis, Adriano Barroso, Alberto Silva, Cláudio Barros, MG Calibre e Salomão Habib, dirigidos por Cláudio Barros.

e maciez dos azulejos. Aquela cor violeta tinha vários tons durante o dia. Sob a chuva, à tarde, os azulejos se cobriam de um lilás escuro, como se ficassem empapados d’água. Eu sempre que podia, ia vê-los. Os azulejos como violetas floresciam. Que salas, móveis, louças, meninos e gramofones, gansos e queijos, banhados naquele lilás, se ocultavam naqueles

sobrados proibidos? Ao por do sol, adquiriam um róseo quente, impregnando-se de azul de fulgurante agonia. E pareciam flutuar numa transparência entre mangueiras até que, no anoitecer, com as lâmpadas acesas na rua, se fundiam em lilás e silêncio no adormecido quarteirão. Adaptado de “Belém do Grão-Pará” de Dalcídio Jurandir,

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ana miranda Salomão Habib e elenco,.

Vestir-se com a cidade: a moda como um ato de resistência. Resistência que é potencializada nesta coleção inusitada apresentada por um grupo de alguns artistas que representam o efervescente cenário cultural de Belém.

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Ana Unger

Adriano Barroso


Keila Gentil

Nanna Reis

MG Calibre.

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ana miranda Diana Flexa

Juliana Sinimbu,

Alba Maria

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Fotos: BRUNO PELLERIN

Nani Tavares,

Alberto Silva

Cacau Novais,

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economia

criativa

A indústria criativa no

polojoalheiro por

Bracelete Cobra criado por Izaias LopesFOTO Igama Divulgação

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Paolo Carlucci


E

m Belém no âmbito da visita e ciclo de conferencias administradas pelos docentes de varias especialidades da Academia das Belas Artes de Bolonha, um encontro muito esperado foi aquele com o Pólo Joalheiro do Pará; o Instituto São José Liberto que atua no campo da formação e agregação empresarial nos setores da joalheira, design, moda e artesanato, fornecendo aos associados (ourives, designer, artesões) formação e conhecimentos especializados com a finalidade de promover estas atividades econômicas seja no Brasil como no exterior. A delegação italiana foi acolhida pelo Presidente do Igama, ente gestor do Pólo Joalheiro, Dr. Airton Lisboa Fernandes, que responde também pelo cargo de Diretor de Desenvolvimento do Comercio e dos Serviços da Secretaria do Estado do Pará de Industria, Comercio e Mineração e pela sua Diretora Executiva, Prof.ra. Rosa Helena Nascimento Neves. Apos o encontro e da apresentação do Instituto e das atividades aqui desenvolvidas, foram entrevistados os docentes visitantes: Prof.ra. Manuela Bergonzini (Design das Jóias), Piergallini Rossella (Fashion Design). Professora Piergallini Rossella, você que é docente de Fashion Design, na Academia das Belas Artes de Bolonha, no decorrer desta missão multidisciplinar, voltada a desenvolver a cooperação de vários setores ligados á arte e a cultura, entre a sua Academia e as Instituições do Estado do Pará, visitou e conheceu as atividades desenvolvidas pelo Pólo Joalheiro, São José Liberto, quais foram as suas impressões acerca das atividades aqui implementadas nos setores da joalheria, do design, da moda e do artesanato, dos artefatos aqui produzidos? “O Pólo me pareceu desde o inicio muito interessante seja pela sua

“Minha experiência vem de um saber histórico e tradicional que em seguida evoluiu no design e depois na jóia escultura e jóia contemporânea.” www.revistapzz.com 75


economia

criativa

estruturação que pelas atividades aqui desenvolvidas, um projeto que faz a interface com o âmbito cultural, com a valorização dos recursos e riquezas de matérias primas do Estado do Pará e voltado á valorização dos recursos humanos. Fiquei completamente fascinada por este projeto e esta estrutura que conjuga o aspecto artesanal, aquele do Design e o artístico, de projeto, de comercialização, ou seja uma abordagem completa, circular a 360º. O lugar em si é também muito fascinante; a reconversão recuperação e ampliação do prédio, que foi implementada para a sua nova utilização (de presídio a Pólo Joalheiro e de artesanato) tendo como fim de rende-lo eficiente

Em se tratando de Amazônia, nunca desejamos conceituar economia algo tão presente na vida das pessoas, e sim apresentar o panorama (recente) da Economia Criativa no Brasil, para os fins que se propõe foi ao meu ver excelente, gostei muito também da estruturação do Museu de Gemas e Jóias aqui hospedado que devo dizer é muito bem forjado nos seus vários aspetos, aquele didáticos entre os outros. Gostei muito do contexto estrutural e arquitetônico aonde se hospedam espaços diferentes; com lugares para os eventos, para a comercialização, os laboratórios, as aulas, um espaço belo e polivalente que comunica com o território, com as tradições, com as pessoas que vivem e visitam Belém, todos estes aspetos reunidos me impressionaram muito positivamente, nada é deixado ao acaso. Apreciei a possibilidade de poder observar os laboratórios de jóias que produzem em tempo real e é possível ver as atividades de trabalho através dos vidros que separam mas ao mesmo tempo envolvem o publico que os freqüentas. Diria um Pólo de excelência, de minha parte não posso que me cumprimentar com a estrutura que me foi apresentada; seja do ponto de vista metodológico, das parceiras que o sustentam, da diretoria, da 76 www.revistapzz.com

valorização cultural que o permeia e que hoje em dia é absolutamente importante e imprescindível para promover com sucesso as varias atividades que hospeda. Professora Piergallini Rossella, queria lhe perguntar: apos esta sua visita e a apresentação do Instituto São José Liberto da qual você participou, você enxergou espaços de cooperação possíveis entre a Academia de Belas Artes de Bolonha e o Pólo Joalheiro do Pará? De nossa parte, falando como Academia posso dizer que me parece muito interessante e possível pensar em workshops para os estudantes e os participantes dos programas de formação das duas entidades como também para os docentes, um intercambio bilateral portanto. Estão presentes saberes diferentes que podem ser conjugados; aqui existe o conhecimento das matérias primas utilizadas nos produtos locais, isso existe também no nosso lado, todavia tem aqui conhecimentos específicos como no âmbito da gemologia seja orgânica que natural, das fibras naturais por exemplo que são âmbitos do cotidiano natural do lugar que não tratamos trabalhando mais com materiais, técnicas e conhecimentos que nos são peculiares, este me parece um espaço muito importante de cooperação, seja para os nosso estudantes como para os docentes. Nos podemos oferecer em troca todo aquele saber que nos diferencia, aquele do conhecimento da historia e da contaminação dos saberes sobre os quais fundamos aquela que é a nossa formação em favor dos nossos estudantes, portanto o intercambio a meu ver pode ser équo e integrado. Professora Manuela Bergonzoni, você é docente de Design de Jóias na Academia de Belas Artes de Bolonha, quero lhe fazer a mesma pergunta que á Professora Piergallini para poder registrar aquelas que são as sua avaliações, as suas sensações e considerações, após ter conhecido o Espaço São José Liberto, Pólo Joalheiro, de Moda e Artesanato do Estado do Pará. Para começar quero dizer que fiquei positivamente impressionada pela forma como esta instituição funde o aspeto do apoio do Estado com o aspeto da empresariado privado, que reflete desde sempre a minha convicção que as duas partes pudessem se integrar positivamente com benefícios mútuos, portanto os resultados que aqui estão se alcançando confirmam o meu

Da esquerda para a direita: Paolo Carlucci, Marcia Lima, Carmen Lorenzetti, Rosa Helena Nascimento Neves, Monica Alvarez, Maurizio Giuffredi, Piergallini Rossella, Beatrice Buscaroli, Manuela Bergonzoni, Airton Lisboa Fernandes.


pensamento; ou seja que esta parceria é funcional, ver aqui os resultados positivos obtidos é para mim um bela experiência e uma confirmação. Devo dizer que na Itália me proponho de divulgar a existência desta estrutura e este programa de atuação que do meu ponto de vista se coloca a níveis nord-europeus; do ponto de vista da eficiência, da qualidade e para todos os aspetos organizativos que eu pude observar. O intercambio entre as nossas duas realidades é desejável, eu tenho trinta anos de experiência como ourives e designer alem da experiência de docente na Academia, portanto uma cooperação entre

as duas realidades ao meu ver seria positiva para ambos os lados, em particular para mim a oportunidade de transmitir o saber acumulado em tentos anos e aprender com a colaboração num contesto diferente e que utiliza materiais diferentes. Professora Manuela Bergonzoni, o que você podes nos contar de mais específicos acerca das sua atuações no setores da ourivesaria e do design das jóias? Minha experiência vem de um saber histórico e tradicional que em seguida evoluiu no design e depois na jóia escultura e jóia contemporânea. Um dos meus últimos projetos é um trabalho

eco-sustentável certificado que representa uma evolução das simples transmissão da tradição de ourivesaria manual do saber histórico que nos conhecemos como o saber da oficina. O meu conhecimento especifico consiste no fato que posso realizar manualmente qualquer projeto de jóia que eu quero criar, também quando de complicada execução. Paolo Carlucci (ASIB-AISE), jornalista e vice-presidente da Associação da Imprensa Italiana no Brasil. E-mail.: paoden@uol.com.br www.revistapzz.com 77


economia

criativa

economia criativa

amazônica A Economia Criativa é algo novo no Brasil, mais ainda para a região amazônica. Ao se pensar em uma Economia criativa para a Amazonia a de se considerar o rico e diverso patrimônio cultural da região, o potencial criativo de seu povo, e os laços de parceria e solidariedade a qual estes são “predestinados”. Alguns projetos apontam para este “Norte”, tais como o nosso portal eletrônico amazoniacriativa.com que foi recebeu o Premio Economia Criativa do Ministério da Cultura.

A

economia criativa é algo relativamente novo para o Brasil, contudo não é para outros diversos países do globo. Nos Estados Unidos e em grande parte da Europa (onde é chamada de Indústria Criativa) já é uma realidade econômica que gera milhões em divisas. O mercado do Audiovisual no mundo, por exemplo, cresceu de US$ 13, 7 bilhões em 2002 para os notáveis US$ 26, 4 bilhões em 2008 (UNCTAD, 2010). O governo brasileiro começa a discutir e fomentar a economia criativa quando a Presidenta Dilma Roussef institui a criação da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, ficando sob esta a responsabilidade de coordenar, com partici78 www.revistapzz.com

por

José Maria Reis

pação de diversos outros Ministérios, órgãos públicos e privados, e sociedade civil, a elaboração do Plano Brasil Criativo. O Plano Brasil Criativo visa potencializar e articular ações de fomento a micro e pequenos empreendimentos, coletivos e individuais, que tenham a cultura e a criatividade como bens e insumos; são os chamados negócios e empreendimentos criativos. Suas Diretrizes são Desenvolvimento Local e Regional, Construção e Institucionalização de Marcos Legais, Fomento a Empreendimentos Criativos e Inovadores e Formação para competências Criativas e Inovadoras. Desafio grande, visto que ter como insumo de produção e mercado algo


tão intangível e infinito como a cultura e o processo criativo não é fácil. Tem tido relativo êxito. No inicio de 2012 a Secretária de Economia Criativa lançou o Prêmio Economia Criativa. Seu objetivo é identificar, reconhecer, fomentar e difundir iniciativas empreendedoras e inovadoras da sociedade civil atuantes nos setores criativos, cujas práticas se destacam como referência em modelos de gestão, de formação e fomento com potencial de contribuição efetiva para o desenvolvimento dos diversos setores da economia criativa brasileira. Composto por um Edital de Apoio a Estudos e Pesquisas em Economia Criativa e outro Edital de Fomento a Iniciativas Empreendedoras e Inovadoras. A criatividade e o processo criativo O tema da criatividade e tudo que envolve os processos criativos têm sido muito comentados na mídia, contudo poucos tem se preocupado em, de fato, esclarecer suas definições e conceitos, propósitos e características. Podemos dizer que criatividade se refere a cada forma nova de dizer, fazer, pensar ou construir qualquer coisa, ideia ou produto. De Masi sintetizou a criatividade como a capacidade de construir e destruir; de revelar segredos; de antever e fazer os outros verem; de avaliar de forma original, muitas vezes inédi-

Em se tratando de Amazônia, nunca desejamos conceituar economia como algo tão presente na vida das pessoas, e sim apresentar o panorama (recente) da Economia Criativa no Brasil. ta; unidade e qualidade rara de ser; como pensamento com alto grau de subjetividade nas artes, e de alto grau de objetividade nas ciências; de uma forma de libertar-se das escolhas habituais, corriqueiras e obrigatórias; de ser conquista capaz de enriquecer não

apenas os aspectos criativos, mas todo o gênero humano; de ser um método diferente do pensamento comum, capaz de chegar a um resultado que o pensamento comum poderá entender, aceitar, e apreciar somente num momento posterior (DE MASI, 2003). Algumas características são perceptíveis no processo criativo, tais como inteligência, memória, ordenação, intuição, e percepção. Contudo, um aspecto talvez seja o mais notável: o insight. O insight é aparentemente uma súbita e inesperada compreensão sobre a essência e a natureza de algo ou alguma coisa, de um assunto, de um produto ou fato social. Súbita, aparentemente apenas, pois este é fruto de muito esforço e maturação intelectual, concentração e conhecimento, muitas vezes de repetidas tentativas de resolver um determinado problema ou de melhorar um determinado produto, que subitamente e muitas vezes institivamente, é vista sob um novo ângulo, um novo ponto de vista. Posto dessa forma, pode parecer que somente os intelectuais, filósofos, artistas e cientistas tem direito e capacidade de terem insights, mas não e verdade. Por exemplo, em nossa modesta experiência em consultoria e capacitação de grupos e comunidades artesãs da Amazônia, vimos por vezes, pessoas, artesãos e artesãs com baixíssimo grau de escolaridade terem insights de melhoramento sobre a forma, acabamento, embalagem, e etc de seus produtos artesanatos. Por uma Economia Criativa Justa e Solidária na Amazônia Em se tratando de Amazônia, nunca desejamos conceituar economia como algo tão presente na vida das pessoas, e sim apresentar o panorama (recente) da Economia Criativa no Brasil, e demonstrar algumas características da criatividade e dos processos criativos para assim, podermos abordar, finalmente, a proposta de Economia Criativa para nossa região. Vamos lá! Primeiramente uma proposta de Economia Criativa para Amazônia tem que considerar o gigantesco (tanto quanto o próprio território) capital social e intelectual e a diversidade cultural que temos. www.revistapzz.com 79


criativa

Sem bairrismos baratos, cremos que região amazônica é comprovadamente um território complexo, diverso e identitário, por isso tal proposta de economia não pode desconsiderar a cultura e a criatividade como recursos ativos para a sustentabilidade local e regional. A economia criativa na Amazônia também deve ser justa, por isso defendemos que seja pautada pelos princípios do Comercio Justo. Princípios como de transparências nas relações sociais e comerciais, responsabilidade socioambiental, equidade de gênero, construção de capacidades coletivas e individuais, promoção de preços justos, e acima de tudo, deve ser uma estratégia econômica e politica de combate à pobreza. Esses são os fundamentos do projeto 80 www.revistapzz.com

que coordenamos chamado www. amazoniacriativa.com que recebeu o Prêmio Economia Criativa do Ministério de Cultura. Trata-se do primeiro e-commerce de artesanatos amazônicos, criado e produzido por amazônidas, onde há um tratado de parceria entre as comunidades artesãs da e a gestão do portal eletrônico. Os preço-base dos produtos são definidos pelos artesãos e artesãs, e os mesmos estão cientes das percentagens de ganhos nas transações comerciais e na composição final de preços, haja viso que há acréscimos percentuais sobre o preço-base, para a Gestão do portal e do recurso que vai ser destinado ao Fundo Comunitário. O Fundo Comunitário é composto por recursos advindos de um determinado percentual das vendas, onde a comunidade anualmente deliberará sobre o que

Artesã quilombolda da comunidade África e Laranjituba Moju, prodzindo cerâmica com referencias arqueologicas e historicas da sua comunidade. Ao Lado acima, Vânia Santos, proprietária do Antiquário e ao lado, Mauro Barbosa, empreendedor do espaço cultural Transformarte. Empreendimentos criativos associados à tradição, à história e à arte.


fazer com esse dinheiro. Já foi falado em melhorias no galpão da Comunidade, compra de um caixa d’água, ou mesmo aquisição de materiais e ferramentas para os artesãos e artesãs. Isso tudo esta claro no Acordo de Cooperação entre os participantes do amazoniacriativa. com; isso é estabelecer laços concretos de confiança e justiça em relações socioeconômicas. É misturar afetividade e confiança, com economia e solidariedade. Por fim, isso nos leva a abordar a solidariedade como, talvez, a mais revolucionária das características que propomos para uma Economia Criativa da Amazônia. Cremos que a Economia Criativa na região amazônica deve ser regida por laços de solidariedade, e menos de competição, deveria herdar os princípios e praticas da Economia Solidária. Possível? Não sabemos ainda, o que sabemos (e disso temos convicção politica e ideológica) é que não pode ser uma mera “figura repetida” da Indústria Criativa norte-americana que defende leis de patentes e de propriedade intelectuais internacionais (temos o exemplo real de que direitos e registros de propriedade intelectual não garantem a “sustentabilidade criativa” como o caso do Tecnobrega no Pará que se difundiu sem esses selos. Esses artistas criaram, mesmo que de modo informal, um modelo de negócios que não envolvem direito autorais. Os CD’s são gravados em estúdios populares e repassados para camelôs que se responsabilizam de vender e repassar o percentual das vendas para as bandas. Não há pirataria porque o produto cultural é repassado do criador direto para comerciante. Obviamente há desvios nesse processo, mas poderia ser uma boa inciativa para ser experimentada de uma forma mais organizada). Assim, propomos que a Economia Criativa da Amazônia deve ser sustentada por relações justas e solidárias, onde laços de cooperação e de compartilhamento sejam sempre buscados, por meio de uma gestão em rede, inovadora e criativa. José Maria Reis é turismólogo e mestre em Geografia; Tuxaua do Programa Cultura Viva e Coordenador do portal www.amazoniacriativa.com

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ensaio

fotografia

Meta Ver-o-Peso Esquema

A partir de uma intervenção realizada na feira do açaí,onde o artista apropriou-se de tabuleiros utilizados para transportar peixe no mercado do Ver-o-peso em Belém do Pará, foram produzidos, uma série de fotografias, um vídeo, e uma instalação intitulada "Meta-ver-opeso-Esquema". Dispostos em um arranjo geométrico, os tabuleiros recebem um vídeo, onde a variação cromática e as mudanças de forma e espaço desestabilizam e re-estabilizam o arranjo plástico, transforma os eventos que acontecem em um determinado tempo e, ao se repetirem inversamente, instauram uma temporalidade cíclica, um vai-e-vem infinito, indicando que estão sempre em movimento.

Renato Chalú Pacheco - fotógrafo e artista visual 82 www.revistapzz.com


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fotografia

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meu quarto)

na mão, como um cometa inesperado a cintilar no espaço! (Xavier de Maistres Viagem ao redor do

*É glorioso abrir uma nova carreira, e aparecer de repente no mundo sábio, um livro de descobertas

Metaesquema é uma figura que representa não a forma do esquema, mas suas relações e funções. Contudo, ao representar as relações e funções dos esquemas, um Metaesquema evidencia como os esquemas dependem das formas que os compõe para figurar suas relações e funções. Um Metaesquema permite ver que um esquema é, simultaneamente, um esquema e uma forma”. Roberto Conduru:


fotografia

A partir de uma intervenção realizada na feira do açaí, onde o artista apropriou-se de tabuleiros utilizados para transportar peixe no mercado do Ver-o-peso em Belém do Pará, foram produzidos, uma série de fotografias, um vídeo, e uma instalação intitulada "Meta-ver-opeso-Esquema". Dispostos em um arranjo geométrico, os tabuleiros recebem um vídeo, onde a variação cromática e as mudanças de forma e espaço desestabilizam e re-estabilizam o arranjo plástico, transforma os eventos que acontecem em um determinado tempo e, ao se repetirem inversamente, instauram uma temporalidade cíclica, um vai-e-vem infinito, indicando que estão sempre em movimento.

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Se um esquema é uma figurra que representa não a forma dos objetos, mas as suas relações e funções, um esquema de um esquema, ou seja, um Metaesquema é uma figura que representa não a forma do esquema, mas suas relações e funções. Contudo, ao representar as relações e funções dos esquemas, um Metaesquema evidencia como os esquemas dependem das formas que os compõe para figurar suas relações e funções. Um Metaesquema permite ver que um esquema é, simultaneamente, um esquema e uma forma". Roberto Conduru: professor da UERJ

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documentรกrio

histรณria

BELร Mm obatismo visual

grandes telas histรณricas nascem com o destino da eternidade, tornando-se anรกlogas ao evento que pretendem narrar. por Aldrin

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Moura Figueiredo


mítica THEODORO BRAGA: A Fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará, 1908. Óleo sobre tela, 226 x 510 cm. Belém, Museu de Arte. - MABE

dos valores da estética [e por que não dizer do próprio ethos da obra] na bolsa das artes públicas e do patrimônio nacional. A narrativa do passado, por isso mesmo, tende a esclarecer o presente. Senão vejamos. Em 1908, a capital do Pará acompanhou o nascimento de um quadro feito para ficar na memória visual da cidade. O dia era 17 de dezembro daquele ano, a data de aniversário do principal chefe político de Belém – o intendente Antônio José de Lemos (1843-1913). O local era o suntuoso Teatro da Paz, a grande vitrine da civilização da borraarece contra-senso cha. O ato era o vernissage de um pinpensar que a vida lon- tor ainda pouco conhecido mesmo nas ga de uma tela seja searas brasileiras, o Dr. Theodoro Braga. marcada exatamente Nesta feita, em meio a uma platéia de pelo nexo do efêmero, convidados ilustres, foi entronizada a tela da efeméride, do pas- A fundação de Belém, divulgada imediasageiro, do transitório. tamente na imprensa da época como a Em suas origens, a no- obra-prima de seu autor. Aqui vou tentar ção de efeméride – do grego ephemerís, desvelar um pouco da história desse quaídos, pelo latim ephemeride – esteve re- dro, que trouxe para o campo das artes lacionada, no entanto, a uma data exata, plásticas uma nova leitura da história da um marco que pudesse ser uma baliza Amazônia. do tempo. Era, de fato, uma tabela que Tudo começa em 1899, quando os pinfornecia aos astrônomos, em intervalos tores italianos Domenico De Angelis de tempo regularmen(1852-1900) e Giovanni te espaçados, as coorCapranesi (1851-1936), denadas que situavam Encorajado pelo mestre, entregam à Municipaa posição de um astro. local, o painel Theodoro Braga viajou lidade Da natureza à cultura, Últimos dias de Carlos para o Rio de Janeiro, Gomes, retratando a céa efeméride guardou o sentido de grandiosidalebre morte do músico onde recebeu aulas de e eterno retorno dos ocorrida em Belém em de uma tríade já bem questionamentos que a 1896, sob um funeral tornariam uma data imconhecida nos círculos heróico. As dimensões portante. Por que seria cariocas: Belmiro de Al- da tela fizeram crer ao uma determinada obra intendente a necessidade seria obra-prima? Por meida (1858-1935), Daniel de uma outra para adorque seu autor seria um nar o salão do Conselho Bérard (1846-1910) e grande artista? Nesta cocom o feito Zeferino da Costa (1840- Municipal municação pretendo inrememorativo da funda1915). vestigar esse tema, aqui ção da cidade. O passo enquadrado nos limites seguinte foi encontrar o do centenário de uma tela histórica do artista “idôneo” para a feitura da obra e acervo do Museu de Arte de Belém - A que ao mesmo tempo pudesse empreenfundação da cidade de Nossa Senhora der a arqueologia dos arquivos à caça dos de Belém do Pará, considerada desde a documentos que ainda estavam à sombra sua apresentação, há exatos cem anos, a dos compêndios de história. O encontro obra-prima de Theodoro Braga (1872- entre o intendente e o pintor ocorreu 1953). Porém, a história desse objeto de em 1906, quando o artista retornado da arte, imerso em diferentes memórias, França começava a fazer sucesso com remonta uma longa tradição da pintura suas exposições no Rio de Janeiro, Recihistórica no Brasil das últimas décadas fe e depois Belém, sua terra natal. Exado século XIX. Olhando o tema de hoje, tamente aí o velho projeto toma corpo e o que se nota é uma verdadeira oscilação Theodoro Braga, agora sob o patrocínio

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história de Antônio Lemos, viaja para Europa em mia Julian, sob a orientação de Benjamin busca dos documentos originais sobre o Constant (1845-1902), Henri-Paul Royer fato que seria narrado pelas tintas. (1869-1938) e principalmente do expeAntes da escolha, o mecenas obviamente riente Jean Paul Laurens (1838-1921), havia se certificado das origens intelectu- havido então como o nome mais imporais do pintor, que então contava 36 anos. tante da pintura histórica na França. No Rapidamente o intendente percebeu o ateliê de Paris, o artista descobriu de fato gosto do artista pela história e, mal sa- a história, a pintura da história. bia ele que, naquela encomenda estava De volta à Amazônia, sob a proteção nascendo uma nova escrita da história de Antônio Lemos, e mais do que nunemersa da pintura. Theodoro Braga, ca impregnado pelo gosto do passado, como todos os seus contemporâneos, transformou a história em assunto de ambicionou o bacharelado, estudando na Estado e a pintura em tema de interesse Faculdade de Direito do Recife. Mas, en- popular. Embora atento às vanguardas quanto se diplomava, por que então explodiam volta de 1893, conheceu do lado de lá do AtlânO pintor encontrou o paisagismo pela mão tico, Theodoro Braga de Jerônimo Telles Júnior aqueles que julgou ser olhou com desprezo (1851-1914), um pintor até mesmo o impresseus prováveis despernambucano muito sionismo. Porém, essa cendentes. Os velhos desconfiança com sua influenciado pela pintura do século XVII, espeformação afrancesada e índios Tupinambá cialmente pela obra de modismos europeus estavam lá, nas notí- os Franz Post (1612-1680), lhe serviu para redesum dos grandes artistas cias sobre os Apiacá e cobrir a Amazônia nos do período holandês do dos Munduruku feitos fragmentos arqueológiBrasil. Mesmo quando o cos do Museu Paraenpor Hercules Florence se Emílio Goeldi e, daí assunto era a paisagem, a plena descrição da napara em diante, revisitar (1804-1879), tureza, a história tocava o próprio traço dos ínfundo o aprendizado do dios de antes de Cabral. jovem pintor. Encorajado pelo mestre, Foi assim que, ao mesmo tempo em reTheodoro Braga viajou para o Rio de Ja- pensava o cânone da pintura histórica, neiro, onde recebeu aulas de uma tríade ajudava a criar um novo movimento nas já bem conhecida nos círculos cariocas: artes da Amazônia, com a estilização da Belmiro de Almeida (1858-1935), Daniel flora e da fauna brasileira – o neomaraBérard (1846-1910) e Zeferino da Costa joara –, deixando vários discípulos. Não (1840-1915). O próximo passo foi dado bastava, no entanto, ser bom pintor. Era em 1899, quando ganhou o prêmio da fundamental o domínio da pesquisa Escola Nacional de Belas Artes, de via- histórica. O pintor teria se armar de hisgem à Europa. No ano seguinte, já estava toriador e vice-versa. Pintura e história, em Paris, como pensionista na Acade- natureza e cultura: eis o encontro que re-

Teodoro Braga nasceu em Belém, 8 de junho de 1872. Pintor, educador, historiador, geógrafo e advogado, formou-se bacharel pela Faculdade de Direito do Recife. Enquanto estudava Direito, tinha aulas particulares de pintura com Telles Júnior. Uma vez diplomado, viajou para o Rio de Janeiro onde foi aplicado aluno da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) na década final do século XIX. Em 1921, fixou residência em São Paulo, onde atuou como professor no Instituto de Engenharia Mackenzie e na Escola de Belas Artes. Assumiu o cargo de diretor da escola, ocupando-o até seu falecimento.

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velou a obra prima de Theodoro Braga. Pelas tintas, o artista formulou sua primeira narrativa da história, traduzindo para outra linguagem passagens inteiras da obra de tratadistas, cronistas, missionários e homens de governo. Velhos documentos ganharam novas tonalidades; pintores-viajantes foram acolhidos pelos pincéis do mestre. Theodoro Braga passou em revista os primeiros registros escritos sobre a América Lusa, através dos relatos de cronistas portugueses como Pero Vaz de Caminha com sua Carta (1500), Pero de Magalhães de Gandavo com sua História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil (1576) e Gabriel Soares de Sousa com Tratado Descritivo do Brasil (1587), além das narrativas de viajantes franceses e alemães, como de Jean de Léry, autor de Viagem à Terra do Brasil (1578), e Hans Staden, que escreveu Duas Viagens ao Brasil (1557). Esses e outros testemunhos do passado estiveram entre os seus principais informantes. Em páginas impressas e noutras manuscritas, ficaram os registros dessa façanha da história como pintura e da pintura como história. Numa verdadeira arqueologia da arte, inventiva e subjetiva, Theodoro Braga redescobriu os antigos Tupinambá, que habitaram a costa do Pará no século XVII e que haviam sido riscados do mapa no século seguinte. Como reencontrar aqueles índios, suas marcas corporais, sua imagem enfim. O pintor encontrou aqueles que julgou ser seus prováveis descendentes. Os velhos índios Tupinambá estavam lá, nas notícias sobre os Apiacá e dos Munduruku feitos por Hercules Florence (1804-1879), comparadas com as informações colhidas em pesqui-


sa no acervo do Museu Paraense. Da fa- chegada de seus mortais inimigos”. Aqui mosa Expedição Langsdorff, no segundo houve o desejo de imprimir à cena uma quartel do século XIX, sobreveio um dos nova percepção desse reencontro: não se principais registros que poderia ser útil a tratava mais de representar a curiosidade um pintor – com sombras, luzes e cores, dos índios em relação ao branco e muito muitas cores. A história foi arte cara no menos a admiração com o desconhecido projeto de Theodoro Braga, tanto que europeu. Estava em jogo o fato histórico foi necessário explicar tudo aos primei- de os índios Tupinambá já conhecerem ros que compareceram diante da gran- os portugueses de longa data, em lutas, de tela. O quadro A fundação da cidade “através do Rio, Bahia, Pernambuco, Made Nossa Senhora de Belém do Pará tem ranhão e finalmente nas terras do Pará”. uma versão em livro, com grande parte Na imagem, os índios aparecem mondos conceitos, referenciais e inspirações tando posto num pequeno igarapé que presentes na tela. desaguava na baía do Guajará. A cena, Mas como transpor para vivida em 1616, vinha as tintas a narrativa literáao presente, em 1908, A imagem esquálida e por nova explicação: o ria da fundação do Pará? Theodoro usou dos pintoindigente da aventura pequeno curso d’água res renascentistas, optanonde estavam os natido pelo díptico, pois assim européia não combina- vos “é o que mais tarde va com o mito funda- foi chamado Ver-opoderia narrar duas cenas independentes e, ao mesdor da grande capital -Peso”. Do escuro das mo tempo, preservar uma matas, rumo ao igarada borracha. Cabia visão de conjunto. Aqui pé, ainda “chegavam o díptico deve ser lido da ao pintor, reinventar, outros índios retardireita para a esquerda, se- pelas tintas, uma outra datários de suas tabas guindo o modelo oriental, situadas no interior”. contrastando, portanto, imagem dos súditos de A margem do rio era com as regras interpretatiPortugal e Espanha. o lugar onde eles esvas européias. Na primeitabeleciam, aqui e ali, ra cena do quadro, vê-se, suas atalaias de defesa, ao longe, a chegada das três embarcações “pontos de espreita” segundo o pintor. que traziam “a expedição civilizadora” – A segunda cena, ao lado esquerdo do esuma caravela, um patacho e um lanchão, pectador, representa o adiantado estado tal como faziam crer os velhos anais da da conquista e do senhorio português marinha portuguesa, exaustivamente na nova terra. Esse enquadramento reconsultados pelo artista. O pintor conce- tomava as origens da ocupação da rebeu a pequena esquadra ainda não anco- gião: “uma vez escolhido o lugar quase rada, indo ao sabor da corrente, revelan- isolado e boa altura defensável, deram do o ângulo de observação em relação à mãos à obra”. É fundamental perceber beira do rio. Em terra, encontravam-se que essa cena resultou de um grande os Tupinambá, “olhando com ódio a esforço de Theodoro Braga em sua ten-

Na primeira cena do quadro, vê-se, ao longe, a chegada das três embarcações que traziam “a expedição civilizadora” – uma caravela, um patacho e um lanchão, tal como faziam crer os velhos anais da marinha portuguesa, exaustivamente consultados pelo artista. O pintor concebeu a pequena esquadra ainda não ancorada, indo ao sabor da corrente, revelando o ângulo de observação em relação à beira do rio. Em terra, encontravam-se os Tupinambá,“olhando com ódio a chegada de seus mortais inimigos”.

tativa de construir uma nova versão desse acontecimento fundador, com um acalorado debate com alguns eminentes historiadores sobre o padrão das construções depois da conquista. Todos os documentos de época referem-se a um fortim construído em madeira, uma simples paliçada. A grande capital da borracha não poderia, no entanto, aos olhos do pintor e principalmente de seu mecenas – o intendente Antônio Lemos, ter experimentado uma origem tão simplória. O presente reinventou o passado na paleta do pintor: fez-se então um forte de pedra, como sólida e eloqüente deveria ser a certidão de batismo da cidade. Apesar dessa polêmica, o significado da distância da imagem babélica de um primeiro contato entre europeus e indígenas deveria ser preservado a todo custo na primeira imagem da Amazônia. Índios e europeus começavam aí a falar uma mesma língua. À sombra de uma visão singela do trabalho de construção de uma “pequenina igreja” no interior de um forte de pedra, o pintor procurou dar cabo a uma elaborada interpretação da política sobre a chegada dos portugueses à Amazônia. De primeira olhada, vê-se, na tela, a igrejinha consagrada à Nossa Senhora de Belém, levantada “em taipa, coberta de palhas, ainda não ressequidas e já pronta”. Ao fundo, apareciam as modestas habitações dos novos colonos, simples casebres e algumas palhoças. Mais à frente, o principal alvo da tal querela historiográfica: o forte do Presépio. Na imagem, “o forte, com a sua frente de cestões entre os quais peças de artilharia já estão assentadas começa a terminar-se; um muro com a sua guarita é construído e o resto avança rápido”. Nos contornos

De primeira olhada, vê-se, na tela, a igrejinha consagrada à Nossa Senhora de Belém, levantada “em taipa, coberta de palhas, ainda não ressequidas e já pronta”. Ao fundo, apareciam as modestas habitações dos novos colonos, simples casebres e algumas palhoças. Mais à frente, o principal alvo da tal querela historiográfica: o forte do Presépio.

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história internos da moldura, começava a sobres- terra sob as bênçãos da Igreja. Ao invés sair o vaivém dos trabalhadores portu- de uma celebração, como fizera frei Hengueses e indígenas. rique em Porto Seguro, em 1500, unindo Com efeito, era necessário marcar o ato na assistência os infiéis e os cristãos, na histórico com a presença de um herói epopéia amazônica os índios já sabiam fundador. Na horizontal, o quadro é que os portugueses traziam outros cosdescrito em duas cenas. Na vertical, em tumes diferentes dos seus, pois que eram, dois planos, divididos ao meio pelo lon- na visão de Theodoro Braga, remanesgo risco da floresta na outra margem do centes daqueles mesmos Tupinambá que rio. No primeiro dos planos, ao centro da habitaram o litoral da Bahia ao tempo de tela, “sob a espessa sombra de grandes Cabral. A presença dos padres na narárvores”, estava o herói, Francisco Cal- rativa visual causou polêmica. Os histodeira Castelo Branco, antigo capitão-mor riadores da época sabiam apenas que os do Rio Grande do Norte, cercado por franciscanos acompanham a expedição seu estado-maior, os comandantes das de Jerônimo de Albuquerque para a conembarcações. O instante procurou tra- quista do Maranhão, em 1615, mas não duzir a preparação da viagem de Pedro acreditavam na seqüência de viagem ao Teixeira ao Maranhão, Pará, em 1616. As fontes “a fim de levar a nova da documentais possíveis A moldura é aqui um à época informavam fundação da cidade de Belém”. Este enquadracampo de bricolagens, tão somente que, desde mento está diretamente 1617, os ditos padres se de mistura e tradurelacionado à cena da instalam no sítio Uma, ção cultural. Sobre construção do forte do nos arredores da recémPresépio, na qual Theoa madeira, o ferro e -fundada Belém do doro Braga redesenhou Pará. Os franciscanos o estuque, o artista a imagem dos homens de Santo Antônio esque vinham na frota de esculpiu, modelou, forjou tão, portanto, na leitura Castelo Branco. Contra- e pintou uma Amazônia visual da de Theodoro riando seus confrades de Braga por terem sido brasileira. ofício, o novo historiaos primeiros religiosos dor insistia que “os expea chegar à Amazônia. dicionários não vinham nem na miséria, Em 1617, quatro missionários dessa ora ponto de pedirem o que comer aos dem estavam em Belém: Frei Antônio de índios, nem desprovidos de tudo, como Mercianna, Frei Cristóvão de São José, é corrente, a ponto de serem ajudados Frei Sebastião do Rosário e Frei Felipe de por piedade pelos caboclos do Guajará São Boaventura, os dois últimos ignorana construção do forte e habitações”. A dos na tela da fundação. imagem esquálida e indigente da aventu- Descrita a história, era imprescindível ra européia não combinava com o mito emoldurar a cena com a exuberância fundador da grande capital da borracha. da natureza amazônica em seus míniCabia ao pintor, reinventar, pelas tintas, mos detalhes. O pintor migra então da uma outra imagem dos súditos de Por- ciência da história para o domínio das tugal e Espanha. Do mesmo modo, a ciências naturais. Pela primeira vez, as presença da Igreja Católica nessa história águas da baia do Guajará, na conflufoi ponto de discórdia entre os especialis- ência dos rios Pará e Guamá, trazem tas no assunto. Tentando mais uma vez uma moderna representação dos rios retificar as leituras dos historiadores Do- tributários da foz do Amazonas: a cor mingos Antonio Raiol (1830-1912) e Ar- barrenta, turva e amarelada. Esse viso thur Vianna (1873-1911), o artista trouxe era algo impensável para os pintores ao acontecimento dois religiosos francis- do século XIX, muito marcados pelos canos: frei Antonio de Mercianna e Frei modelos e contornos dos rios euroChristovão de S. José, que teriam acom- peus. Em contraste com a lenda de um panhado Castelo Branco no episódio da Danúbio Azul, como na música de Jofundação. Já que não havia nenhuma pis- hann Strauss, Theodoro Braga pincela ta sobre uma primeira missa, restava en- um Amazonas barrento, com arrepios tão apresentar os clérigos envolvidos na de brisa, reflexos do céu em algumas empreitada da construção de uma nova manchas azuladas em meio à tonalida92 www.revistapzz.com

de do rio. Às margens estão os verdes em seus diferentes tons e escalas. A vegetação que orna a vista foi pensada como espécimes de um herbário característico da flora equatorial do Brasil. Ao centro, duas árvores com fortes conotações simbólicas para a Amazônia: a seringueira, responsável pelo triunfo do progresso contemporâneo do artista, via exploração do látex, e a imbaubeira, típica de floresta secundária e, por isso mesmo, representando o trabalho de colonização da região. Enrolada em cipós, ao centro da tela uma grande árvore – uma espécie de síntese visual da flora amazônica, exibindo “a majestade grandiosa das nossas florestas tropicais”. Houve lugar ainda para a palmeira do açaí, que produz o fruto de onde se extrai a bebida mais popular entre os paraenses e, à beira d’água, plantas aquáticas da Amazônia, como o mururé e a aninga, comuna nas redondezas de Belém. E o cenário foi composto por analogia às características ecológicas do litoral lamacento que circundava o Guajará, em cuja vegetação de mangue vicejavam também os aturiás, vistos no quadro como uma espécie de símbolo da vegetação amazônica. Muito evidente foi a intenção do autor em mostrar o contraste dessa pequena planta com “as árvores colossais e enormes das matas paraenses”, que cresciam em direção à terra firme. Ao fundo, no horizonte, aparece a “longa fita arroxeada da verdejante Ilha das Onças”, intacta e contínua, fronteiriça ao desembarcadouro dos portugueses. Todo esse corpus fitológico foi concebido como a parte ornamental da natureza amazônica transposta para um retrato da história, a fim demarcar seus contornos. Trata-se, portanto, da certidão de origem de uma cidade que nascia em meio a maior das florestas do mundo. Ao lado da magnitude da flora local, parecia essencial reconstituir um retrato climático do evento que, ao mesmo tempo, refletisse o traço meteorológico mais comum naquela latitude. O pintor fez assim um “céu tranqüilo e belo” como adorno ao empreendimento da fundação, “enquanto que para o lado da embocadura do rio uma nuvem plúmbea lembra-nos as fortes bátegas da chuva quase diária”. Theodoro


Braga se voltou à comparação com a que é alegoria da mestiçagem e do enrealidade presente, em 1908, quando contro de culturas. o regime pluviométrico da área da foz No alto, ao centro da moldura, como do rio Amazonas praticamente não insígnia de Belém, está o Brasão de apresentava flutuações e mudanças Armas. Aqui está uma legítima prova bruscas de tempo. Com isso, o artista das proezas arqueológicas do artista. imprimiu uma espécie de cena inter- A primeira versão desse emblema temediária, na qual aparecem, sobre o ria sido feita por Bento Maciel Parenhorizonte, as “pesadas nuvens bran- te, capitão-mor do Pará entre 1621 e co-azuladas”, características daquela 1626. Perdido, a notícia desse escudo hora da manhã e, ao lado direito do ficou guardada numa biblioteca de expectador, as nuvens mais escuras da antiguidades em Braga, Portugal. Em chuva tradicional do início da tarde. 1825, o gosto pela heráldica e pelos Desse modo o pintor conclui a feitura demais registros da história, caro aos da tela. Mas o empreendimento ainda intelectuais do romantismo brasileiro, estava pela metade. Para uma gran- levou Paulo José da Silva Gama, barão de cena, uma grande moldura. Uma de Bajé (1779-1826), a mandar repropintura histórica só é capaz de eclodir duzir em tela a descrição do brasão. num quadro de grandes dimensões, No final do século XIX, vários artistas guarnecido e emoldurado com a mes- e intelectuais se debruçaram sobre essa ma eloqüência da cena narrada pelas peça, entre eles o próprio Theodoro tintas. Braga. Grosso modo, Theodoro Braga constrata-se de um brasão truiu para sua obra- E o cenário foi compos- esquartelado: O pri-prima uma moldura to por analogia às ca- meiro, em azul, ostenta capaz de traduzir as os braços com flores e mudanças que procu- racterísticas ecológicas frutas e a legenda Ver rava imprimir em suas do litoral lamacento est aeternum – Tutius linhas de trabalho. A que circundava o Gua- latent, alusivos à natumoldura é aqui um reza do rio Amazonas campo de bricolagens, jará, em cuja vegetação e à geografia escondide mistura e tradução de mangue vicejavam da do rio Tocantins. O cultural. Sobre a masegundo, um castelo de também os aturiás, deira, o ferro e o esprata com um colar de tuque, o artista escul- vistos no quadro como pérolas, distintivo da piu, modelou, forjou e uma espécie de símbolo nobreza, do qual penpintou uma Amazônia a quina portuguesa da vegetação amazô- de brasileira. Na superfícom cinco castelos de nica. cie do estuque e de seu ouro em escudo azul, douramento, entrecruenfatizando a fidalguia zam-se ornamentos do classicismo de Castelo Branco, o fundador da ci– com seus medalhões – e outros ele- dade. A estrada em amarelo que dá mentos então “desconhecidos” pelos acesso ao castelo alui o caminho que artistas da terra. Ao lado das célebres devem seguir os sucessos do herói da folhas de acanto, tão características tela – o da obediência à Coroa de Pordo emolduramento acadêmico, Theo- tugal. O terceiro representa um soldoro Braga construiu moldes de atu- -poente em céu prateado, referindo a riás e folhas de aninga. Ao centro, no hora em que Castelo Branco ancorou alto, ladeando o Brazão de Armas da na baia do Guajará. A legenda Rectior Cidade de Belém, palmas de açaí, de cum retrogradus, indica que o comanonde se extrai o vinho dos paraenses. dante esperou o desembarque para o Com isso o pintor estabelecia os con- dia seguinte. O quarto traz os ícones tornos de uma arte nacional, angulada de um boi e uma mula num prado verpor viso amazônico. Estilizando a flora de à margem de um rio, com as divisas da região, o artista questionava o con- Nequancam minima es, em alusão a torno clássico e aquilo que parecia ser Belém da Judéia, inspiradora do nome uma velha janela de visão da realidade. da futura capital do Pará, da qual disTemos à vista, portanto, uma moldura sera o profeta que não seria a menor

de todas. Há também que se pensar sobre o suporte, a técnica e as preferidas pelo pintor. Sobre uma tela de linho branco, o artista realizou aplicações mistas de tinta a óleo, obedecendo um riscado que privilegiasse a luminosidade. Nas águas da baía do Guajará, em parte do céu e em algumas figuras humanas as pinceladas são finas e diluídas camadas de tinta quase imperceptíveis. Nas nuvens, terrenos e imediações do Forte do Presépio aparecem tênues empastes e, na copa das árvores e nas demais folhagens, aplicação de densos empastes com pinceladas soltas e muito evidentes. Com isso, Theodoro Braga acabou por imprimir um colorido é variado e luminoso, tendendo ao verde-amarelo, – com óbvias preocupações de marcar as cores da nacionalidade, nos sobre-tons de verde e na longa escala do amarelo tendendo ao ocre. Esse amarelo, que certamente é a cor mais incisiva da tela, mistura-se também a outros tons vão do ocre ao vermelho, passando por variações do azul ao cinza, em vários matizes. Por fim, o branco em contraste com ligeiros toques de negro, terminam por contorno e realçar o traço colorista da descrição da natureza em contato com a história. Eis a grande invenção de Theodoro Braga. A obra cuja fatura lhe rendeu a reputação de pintor, o destruiu como historiador. Certamente está aí a resposta para a pergunta que fiz lá bem no início deste artigo. A tela de Theodoro Braga é afinal obra-prima por ser símbolo de uma época, clímax de um gênero, fronteira de um estilo e marca de um autor. Conta uma história e, no entanto, é transtemporal. Pintada em 1908, remete-se a 1616 e pode ser relida hoje, em seu centenário, como a qualquer momento, em qualquer lugar. Polissêmica, como todo produto da arte, a cada viso do expectador ganha uma nova leitura. À primeira vista, sobrevém o traço acadêmico, o contorno pompier, o registro histórico. No entanto, de segunda olhada, no quadro a natureza toma conta da história, no imenso amarelo-barrento da baía do Guajará, nos tons verdes da floresta de várias idades e ainda nas nuvens carregadas da foz do Amazonas – tudo isso é muito mais que um simples cenário. www.revistapzz.com 93


artes plástica

pyrographia

escritura

A pesquisa de Mauro Barbosa foi para estudar qual madeira iria utilizar para fazer as gravuras através de uma técnica denominada de pirografia. A palavra Pyrographia é de origem grega e significa “escrita à fogo”.

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M

auro Barbosa é artista visual e começou a realizar seus trabalhos sobre um ótica da degração do meio ambiente relacionado a vida dos ribeirinhos. Começou a retratar e a ter esse olhar amazônico, a partir de elementos do seu cotidiano e de sua vivência no interior do Estado, de onde por muitos anos viveu e se criou na beira do rio. Seu trabalho expressa o ribeirinho, o caboclo e o cotidiano desses personagens, a forma como ele vive, a questão cultural e ambiental. Esse trabalho começou da pesquisa relacionado às serrarias, a de-

gradação do meio ambiente, da extração madeireira principalmente. Sua pesquisa foi para estudar qual madeira iria utilizar para fazer as gravuras através de uma técnica denominada de pirografia. A palavra Pyrographia é de origem grega e significa “escrita à fogo”. A partir dessa pesquisa chegou a madeira denominada de Marupá que faz parte do ritual dos ribeirinhos de antigamente que utilizavam essa espécie para a fabricação de caixões. Até o bater do martelo na madeira tinha a ver com o carpinteiro de madeira que tinha falecido, tinha um baque específico para que as pessoas soubessem quem faleceu. Sua pes-


a do fogo

quisa foi de como extrair essa madeira no período certo, geralmente na lua cheia ou lua crescente, para que essa madeira não ter nem um tipo de paulinha ou cupim e a mesma pode ter um longo prazo, se não tiver contato com a chuva ou ficar exposta à parte externa. Então começou a produzir o seu trabalho relacionando com o cotidiano com o que viu e conviveu, da sua essência e de sua terra. Faz uma mesclagem do cotidiano do caboclo, a sua forma de vida, a sua crença, o processo de como pedir ao céu uma graça a ser alcançada, a questão do religioso e do profano retratados de forma artística e lúdica. Agora encontra-se

na fase de pesquisa e dos croquis de novos temas. Depois que dominou a técnica e veiomorar em Belémn consegue escrever com fogo qualquer ideia ou homenagem como os belos quadros que fez retratando cenas históricas e do Ver-o-peso em Belém. Nessa obras expostas na Galeria doAntiquário podemos conhecer os seguintes personagens: Amassadeira de Açaí: personagem que retrata o processo rústico de como o caboclo amazônico retira o fruto da floresta e passa por um processo de amassar a mão pelas peneiras para retirar o vinho do fru-

to para sua própria alimentação, processo este muito pouco conhecido pelas pessoas atualmente devido à industrialização e os maquinários de bater Açaí que possa fazer com que este processo cultural extinguir-se ao decorrer do tempo.

A Promesseira Personagem que retrata a fé dos paraenses relacionada ao Círio de Nazaré, faz com que a pessoa busque o compreensível e o incompreensível isto esta associada à imagem de Nossa Senhora de Nazaré com o povo paraense. Personagem este criado www.revistapzz.com 95


pyrographia

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pyrographia devido a um olhar ao decorrer da procissão que foi desenvolvido técnicas de elementos compostos nos cenários da procissão elementos esses como os casarios antigos e a degradação dos seus azulejos fazendo com que surgisse uma linguagem crítica com a degradação do mesmo.

A Romeira Personagem que surgiu para retratar um pouco de minha infância de origem ribeirinha ao perceber a devoção do povo ribeirinho em busca de agradecer e pedir muito ou pouco ou suficiente que eles têm. Este personagem foi uma expiração de uma senhora que conheci quando criança, esta senhora criava os chamados xerimbabos que era a criação de animais (o porco, o pato e o peru) uma vez por ano nas proximidades do Círio de Nazaré, essa senhora vendia seus xerimbabos para comprar seus cetins para fazer suas roupas e essas roupas eram confeccionadas artesanalmente, era como fosse um ritual para ela, que justamente era a roupa que ela acompanhava o Círio de Nazaré e vinha pagar suas promessas e agradecer a sua moradia que era um palafita de palha, muito humilde, conquistada com muito suor.

O cabloco e sua fé Personagem que eu retratei do meu imaginário escutando histórias de pessoas religiosas e humildes, histórias essas relacionada ao caboclo plácido que achou a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, isso fez com que eu retratasse um pouco de minha memória (infância) quando as pessoas mais velhas reuniam-se comentavam este fato que mexeu muito comigo e com meu processo de maturidade.

O Ribeirinho Criatividade que surgio a partir do cotidiano do rio Cutijuba, rio que eu nasci, fica localizado no Interior do Município de Igarapé Mirim. O cotidiano que eu mencionei esta relacionado com a subsistencia do caboclo ribeirinho que busca como fonte de sobrevivencia sem degradar a natureza as atividades de pesca, caça e de frutas locais. Em segundo plano desta obra, foi retrarada a residência onde eu nasci e passei minha infancia.

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Cenário do Amazônia Fashion Week para o desfile da coleção Azulejos de Belém da estilista Ana Miranda. Além desses estilo Mauro Barbosa trabalha com grafite e pintura de azulejos.

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geo-turísmo

Belém

Ama

Geo-turIs

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az么nia

smo na

uma experi锚ncia para um melhor conhecimento e difus茫o do patrim么nio urbano por Maria

Goretti da Costa Tavares

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Belém

O

centro histórico de Belém-PA possui espaços que receberam intervenções nos últimos anos, na lógica desse processo de “revitalização” (TRINDADE JUNIOR e AMARAL, 2006). O que se observa são espaços que compõem os roteiros turísticos que direcionam a visitação dos turistas ao centro histórico da cidade. No entanto, essa área apresenta ampla diversidade de vidas que o produzem, para além das poucas edificações reformadas. Estão presentes atividades comerciais (formais e informais), espaços em deterioração, lixo, festas, atividades portuárias, etc. Essa diversidade diz muito mais sobre o passado e o presente da cidade de Belém. Um roteiro geo-turístico (assim denominado por relacionar as análises geográficas sobre o espaço com as práticas turísticas), que procura evidenciar esse mosaico de agentes e de modos de vida que produzem o centro histórico da cidade, contribui para a perspectiva pedagógica do turismo, já que “a viagem proporciona o conhecimento” (FIGUEREDO, 2010, p.29) e um real encontro do turista com a vida do lugar visitado. A impossibilidade de tal perspectiva ocorre muitas vezes pela rigidez no controle do pouco tempo e dos objetivos do fast tour, onde o turista tem que ver e fotografar mais em menos tempo.

Ressignificar o turismo, a partir da experiência do roteiro geo-turístico, representa a demonstração de que o turismo pode ser essa arena onde para (e através de) a visita do outro, os agentes locais passam a (re) conhecer e (re) valorizar sua história e seu espaço.

de observar-se que esta forma de turismo está sendo mais aplicada às comunidades não-urbanas. Paes (2009, p.176) propõe que se pensarmos nas inúmeras possibilidades de inclusão social a partir da participação da população nos processos decisórios, na gestão do turismo, na educação UM ROTEIRO DIFERENCIADO patrimonial, na capacitação destas populações para ofícios ligados à preO projeto Roteiros Geo-turísticos - servação, restauração e inúmeras aticonhecendo o centro histórico de Be- vidades associadas ao setor turístico e lém na Amazônia - foi ao patrimônio cultural, criado com o intuito de teremos criado inúmeapresentar à comunidaras alternativas, não só De acordo com as de científica, à sociedageração de renda pesquisas e seguindo de de local e aos turistas, para estas populações, uma metodologia, o mas também uma nova que ele não é um roteiro turístico convencional, primeiro roteiro foi dinâmica sócio-espacial pois busca aliar conheestas áreas. Mais marcado para o dia para cimentos históricos, ardinâmica, mais diversiquitetônicos, culturais 12 de janeiro de 2011, ficada, mais humana. e geográficos. Ele insedata expressiva por Partindo desta aborre locais que não têm dagem, observa-se a sido incluídos frequen- ser o 395° aniversário importância da partide Belém. temente nos passeios cipação da população comercializados, espalocal neste processo, ços nos quais é nítida pois ações como estas a carência de ações do poder público, podem ser um ponto de partida para principalmente no que se refere à lim- a formulação de políticas públicas de peza e segurança, ao contrário do que turismo que agreguem tanto os valores ocorre em certos espaços restaurados culturais como de reprodução econôe refuncionalizados (Cifelli, 2010). mica. Além disso, os roteiros geo-turísticos Tendo em vista estes princípios, o pricontam com o auxilio da população meiro roteiro geo-turístico foi criado local durante o seu processo de cons- no bairro da Cidade Velha por ser trução e é baseado nos princípios do este o mais antigo da cidade de Belém turismo de base comunitária, apesar e por ele ter sido uma das portas de

Em Belém do Pará, roteiro geo-turístico na antiga metrópole da Amazônia. Museu de Arte Sacra: Em 1690, teve inicio a construção da Igreja de Santo Alexandre. Entretanto, a sua inauguração foi realizada em 21 de março 1719, posteriormente à construção do colégio em anexo, que serviria para consolidação do território. Atualmente, o edifício, que foi tombado pelo IPHAN, abriga obras e imagens sacras que datam do século XVIII e XIX.

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ocupação da região Amazônica pelos deira do Castelo, Feira do Açaí, Museu europeus, processo que data do sé- de Arte Sacra, Casa das Onze Janelas, culo XVII. O roteiro se estende pelas Praça Frei Caetano Brandão, Igreja primeiras ruas da cidade, tais como a da Sé, Sede Náutica do Remo, Rua SiLadeira do Castelo, Siqueira Mendes, queira Mendes, Casa Rosada, Fábrica Joaquim Távora e Tomázia Perdigão. Soberano, Igreja e Praça do Carmo, O bairro possui rugosidades espaciais Travessa Joaquim Távora, Capela São (Santos, 2008), que podem ser com- João Batista, Museu do Estado, Palápreendidas como formas espaciais cio Antônio Lemos, Praça Dom Pedro presentes que foram resultantes de um II, Instituto Histórico e Geográfico do determinado processo de ocupação. Pará e Museu do Círio. No caso da Amazônia, este período se De acordo com as pesquisas e seguinreferiu principalmente do uma metodologia, ao momento da instao primeiro roteiro foi Os participantes do marcado para o dia lação dos fortes militares pelos colonizadores projeto atuam como 12 de janeiro de 2011, portugueses, pelas misexpressiva por ser monitores, que dialo- data sões religiosas, pelos o 395° aniversário de movimentos de revolta, gam com o público, no Belém. Porém, para como a Cabanagem, e intuito de conciliar analisar as dificuldades pela economia da bor- as múltiplas faces do que o roteiro poderia racha. apresentar e suas possíOs roteiros geo-turísticos bairro, desde os pontos veis soluções, realizouforam elaborados para turísticos até as áreas -se um roteiro-teste explorar uma potenciano dia 18/12/2010, no mais degradadas. lidade que os espaços de qual estiveram presenBelém oferecem. Para tes todos os bolsistas isso, foi necessário todo e demais participantes o procedimento supracitado que possi- do projeto, um representante da BEbilitou executar na prática uma ativida- LEMTUR e alguns convidados. Essa de que busque valorizar os patrimônios atividade possibilitou visualizar o que históricos e culturais do bairro da Cida- foi planejado durante a pesquisa e os de Velha. integrantes tiveram um maior contato Desta forma, o projeto oferece gratui- com a área de estudo, haja vista que altamente dois roteiros por mês e a di- guns ainda não a conheciam totalmenvulgação tem sido principalmente por te. Após a realização do roteiro-teste, meio eletrônico. O percurso tem início houve uma avaliação onde foram disno Forte do Castelo, passando pela La- cutidas as sugestões dos participantes

Forte do Presépio (Forte do Castelo): Com a chegada dos portugueses, comandada por Francisco Caldeira Castelo Branco, em 12 de janeiro de 1616, a edificação foi levantada para consolidação da conquista do território. Hoje o patrimônio abriga um pouco da nossa história, foi tombado em 1962 pelo Instituto de patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN) e restaurado em 2002, fazendo parte do com¬plexo Feliz Lusitânia.

para a sua melhoria. Mas, no que consiste o roteiro geo-turístico? Como em um roteiro turístico, percorre-se uma parte da cidade de Belém, mais especificamente no bairro da Cidade Velha, em pontos pré-estabelecidos. Os participantes do projeto atuam como monitores, que dialogam com o público, no intuito de conciliar as múltiplas faces do bairro, desde os pontos turísticos até as áreas mais degradadas. Aqui, se pode considerar um diferencial dos roteiros geo-turísticos, pois a finalidade é também apresentar aos participantes a complexidade do espaço, podendo ser esta atividade uma maneira de despertar nos cidadãos e no poder público a importância e a necessidade de se proporem modificações em algumas áreas nas quais este estudo está pautado. Existem 04 roteiros formatados e implantados, além do primeiro roteiro da Cidade Velha, em outubro de 2011 foi lançado o roteiro do Ver-o-Peso ao Porto, em abril de 2012, o roteiro da Belle Epoque e em novembro de 2012, o roteiro da Campina. Para o ano de 2013, o grupo vai preparar o roteiro do Bairro do Reduto. Maria Goretti da Costa Tavares Profª. Dr.ª do Programa de Pós- Graduação em Geografia (PPGEO) e da Faculdade de Geografia e Cartografia da Universidade Federal do Pará. E-mail: goretti@ufpa.br

Palácio Antonio Lemos: Localizado na Praça D. Pedro II, apresenta característica do Neoclássico europeu e é um exemplar característico da segunda metade do século XIX. Foi projeto pelo José Coelho da Gam e Abreu para ser a sede da prefeitura e Câmara Municipal. Sua construção iniciou na década d 1860 e depois de várias interrupções o prédio foi concluído em 1885. Hoje, o palácio abriga o gabinete do Prefeito e o museu de arte de Belém.

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