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“COCAR NO PODER É FLORESTA DE PÉ”

Aos 32 anos, Célia Xakriabá já fez história: primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais. Disputando a vaga pelo PSOL, obteve mais de 100 mil votos. No Congresso há pouco mais de quatro meses, ela segue, porém, escrevendo capítulos. Primeiro, assumiu a liderança da chamada “Bancada do Cocar”. Em seguida, foi escolhida para coordenar uma frente parlamentar mista de “Defesa dos Povos Indígenas” e, mais recentemente, para presidir a “Comissão da Amazônia e dos Povos Originários da Câmara”.

O povo Xakriabá é natural das barrancas do Rio São Francisco, mais precisamente dos arredores de São João das Missões, no norte de Minas. As batalhas com o homem branco começaram cedo, ainda no século 18, durante o ciclo do ouro. Carregando essa linhagem, Célia chegou ao doutorado em antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, inserida no contexto de luta do seu povo, tornou-se ativista, participando da fundação da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Segundo costuma dizer, com ela, assumem a cadeira na Câmara Federal “900 mil cocares”.

“Em mais de 500 anos, os povos indígenas foram alijados da política institucional e a nossa chegada ao Congresso representa uma vitória. Cocar no poder é floresta de pé”.

Você foi eleita deputada federal com expressiva votação. O que isso significa?

Podemos ter menos tempo de Congresso Nacional, mas temos mais tempo de Brasil. No Legislativo, temos muito a fazer pela defesa dos povos indígenas, em termos de demarcação de terra, proteção do meio ambiente, proteção da mulher, direitos humanos.

Em novembro do ano passado, antes mesmo da posse, você participou da 27a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP-27). Qual a sua impressão? Podemos acreditar em mudanças de rumo em face das mudanças climáticas?

Como a COP é um espaço fechado à sociedade civil, não tivemos acesso às atividades oficiais. Mas foi muito importante a participação do presidente Lula. Desde o evento passado, em Glasgow, falamos que não existe solução para barrar as mudanças climáticas sem reconhecer a potência das tecnologias sociais dos territórios indígenas e de povos e comunidades tradicionais. Agora, reiteramos isso. Essa COP marcou também o fim de um ciclo, no qual o Brasil enfrentou quatro anos de profundos retrocessos, com um Ecocida no poder. No âmbito internacional, havíamos perdido prestígio e protagonismo.

É possível dissociar a pauta ambiental da causa indígena, como muitos tentaram fazer no governo anterior?

Não dá para falar de combate às mudanças climáticas sem falar das demarcações dos territórios indígenas. Se o tema é financiamento, é importante que ele chegue aos verdadeiros guardiões das florestas e dos biomas. Na COP, por exemplo, fizemos uma incidência importante recomendando ao Parlamento Europeu que analise com cuidado a lei antidesmatamento. A lei considera a Amazônia, mas não parte da Mata Atlântica, o Cerrado, o Pantanal, a Caatinga e o Pampa, também como florestas. E quando não reconhece esses biomas, acaba legalizando o desmatamento.

Também defendemos a criação de uma lei de rastreabilidade. Muitas commodities vêm de comunidades tradicionais e acabam fomentando todo esse processo de violência nos territórios. Destacamos ainda a mineração, responsável, hoje, no Brasil, por sérios crimes ambientais, como o cometido pela Vale no estado de Minas Gerais, no Rio Doce. A mineração não representa mais que 4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Se as pessoas estão realmente preocupadas com dinheiro, seria importante desenvolver um consumo consciente e inteligente.

Depois de quatro anos de retrocessos na área ambiental o Brasil tem um novo governo, inclusive com uma mulher indígena comandando um inédito Ministério dos Povos Indígenas. Como você vê essa mudança?

Temos uma oportunidade única de avançar, mesmo entendendo que demarcar seja muito caro, por causa dos processos e ritos, assim como a titulação de territórios quilombolas. Estamos vivenciando um momento de muita esperança para avançar, porque não dá para avançar na educação e saúde indígenas, por exemplo, quando a pauta principal é o território. Sem território, a nossa identidade e modo de vida estão ameaçados. Então, queremos e podemos ocupar vários ministérios, como o da Cultura e da Educação. O Ministério Indígena é importantíssimo, mas não pode ser um lugar que restrinja a nossa presença. O nosso lugar é em todos os lugares. Precisamos pensar essa política transversal, pensando de maneira identitária, mas também entendendo que a identidade precisa estar em todos os espaços.

E quais são as principais perspectivas em relação a esse governo?

Hoje, no Brasil, temos oportunidade de reverter o ecocídio e o genocídio. Somos muito mais que ativistas, porque quando matam uma liderança indígena pelos conflitos territoriais, assim como mataram Bruno Pereira e Dom Philips, isso influi em nós, que somos o próprio meio ambiente com o nosso modo de vida. Nos reconhecer, hoje, e aos nossos ancestrais, perpassa também pelo reconhecimento de que a solução para as mudanças climáticas precisa ter a cara de uma humanidade consciente. Entendemos a importância de que, quando atacam a terra e o meio ambiente, nos atacam também.

Como fica Minas Gerais nessa conjuntura?

Minas Gerais é o estado que mais desmatou a Mata Atlântica no ano passado e isso, obviamente, tem um impacto direto nos territórios, além do grande impacto da mineração. Então, destacamos, no âmbito internacional, a importância de descolonizar os biomas. Para entender o que é exatamente a diversidade de ecossistemas que torna o Brasil um país com uma sociobiodiversidade tão rica e potente é preciso proteger as florestas, as águas e nos proteger, porque somos os defensores desses lugares. Se atingirem nossos territórios e nossos corpos, a humanidade sentirá suas implicações. Não dá para falar sobre isso sem escutar quem é mais impactado e mais faz essa proteção.

Como foi a atuação de vocês, enquanto militantes dos povos indígenas, nos últimos quatro anos?

Eu disse isso ao presidente Lula. Desde o dia 1º de janeiro de 2019 (data da posse do ex-presidente Jair Bolsonaro), sempre estivemos nas ruas. Mesmo com um governo reacionário e fascista, em um contexto de pandemia, ficamos acampados mais de 30 dias em Brasília, porque entendemos que, se não morrêssemos pelo vírus, seria pela passada da boiada e nos conflitos territoriais. Temos, agora, expectativa e desafio enormes, sabemos que não será fácil, mas vivemos um momento de oportunidade. A campanha de Lula foi pautada no compromisso ambiental, de romper com o garimpo ilegal e realizar a demarcação dos nossos territórios.

Você está compondo o Congresso numa legislatura em que foram eleitos, com muita representatividade, vários expoentes do agronegócio e do conservadorismo. Qual o seu entendimento sobre essa luta?

As pessoas falavam que se não fosse agora era para depois a minha eleição, e eu falava: é uma luta de contexto, não vamos tê-la tão cedo novamente. Se observarmos a história do Brasil, o governo de esquerda nunca elegeu indígena. O Mário Juruna foi eleito em 1982, em outro contexto, e a Joenia Wapichana ganhou no governo Bolsonaro. Então, é uma oportunidade, sobretudo porque vivenciamos um cenário de profunda violência aos direitos indígenas e à questão ambiental. É uma resposta não só nossa, mas também da humanidade, porque neste momento significava muito mais que o resultado na urna.

Minas Gerais, que tinha 53 deputados, nunca tinha elegido uma indígena para o Congresso. Conseguimos superar o racismo, assim como Sônia Guajajara em São Paulo. É a primeira vez que vamos chegar com a “bancada do cocar”. Dos 853 municípios do estado, estamos lotados em 804 e sou a única deputada federal mulher do norte de Minas, além de ter sido a terceira mais votada em Belo Horizonte. São respostas diferentes, não foi somente chegar, e sim o processo de romper com a velha lógica do jeito de chegar. Não fomos apoiados pela velha política tradicional de apoio às prefeituras. Sabíamos que era a hora certa de provocar esse momento e entendo, com muito orgulho, que a nossa eleição passou por um voto de polarização. Não foi o voto somente progressista que nos elegeu, votaram na Tebet, no Lula, no Ciro e em nós. Até no Bolsonaro. Isso é interessante para observar o que converge.

Mas falando na prática, o que vocês, da chamada bancada do cocar, podem fazer no Congresso sendo minoria?

Nós, povos indígenas, não somos nem 1% da população brasileira, somos 5% da população do mundo e protegemos mais de 30% da biodiversidade. Nem sempre quem é a maioria está fazendo melhoria, e, se a nossa voz não for suficiente do lado de dentro, vamos continuar convocando o movimento do lado de fora. O poder não é só Executivo, Legislativo e Judiciário. A luta é o quarto poder. Podemos ter menos tempo de Congresso Nacional, mas temos mais tempo de Brasil. Será desafiador, mas estamos preparados para enfrentar Ricardo Sales (ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro e atual deputado federal). Quem está mais preparado que nós para enfrentar a bancada ruralista?

Saindo do Congresso, tivemos muitos indígenas eleitos para cargos diversos nos últimos anos. Como vê o atual momento indígena e sua evolução do ponto de vista da luta política e institucional?

As candidaturas indígenas cresceram consideravelmente. Nas eleições de 2020 tivemos um dos maiores resultados para as prefeituras e vereanças e, agora, crescemos em relação às de 2018. Não vamos parar por aqui, vamos continuar fortalecendo para os próximos anos a presença dos povos indígenas dentro das prefeituras e estruturas municipais e estaduais. Entendemos que esse foi um momento histórico, mas não serão as últimas ou únicas candidaturas eleitas, a ideia é sempre trazer mais gente. Junto conosco vêm milhares de forças ancestrais e é assim que vamos ampliar essa convocação para a bancada do cocar.

Você tem uma boa formação acadêmica, que sempre aliou com as suas raízes. Pode falar um pouco sobre isso?

Estudei em escolas indígenas e sempre tive forte relação com o território e com as raízes culturais do meu povo. A experiência com a educação foi o que me motivou a me tornar uma educadora e retornar ao meu território. É importante pensar em uma educação territorializada, onde nosso corpo se desloca para outros lugares além da sala de aula. E assim é para mim a política: o parlamento se deslocando para onde está a luta. E eu pretendo fazer exatamente isso. O pioneirismo é uma motivação para continuar lutando. Nós não nos sentimos mais felizes por sermos as únicas. Temos a responsabilidade redobrada.

Por que motivo você já chegou a declarar que seu mandato será de resistência se foi tão bem acolhida nas urnas?

Entendo que Minas Gerais superou o racismo da ausência ao eleger, pela primeira vez na história, uma indígena como deputada federal. E assumi o compromisso de legislar com o território, com o chamado da terra, que me trouxe até aqui. Minas vai sentir orgulho de ‘mulherizar’, ‘reflorestar’ e ‘indigenizar’ a política. Em 2020, foram 85 lideranças indígenas assassinadas, por isso que afirmo que esse será um mandato de resistência. Vai ser um mandato de luta.

Inclusive, a decisão pela minha candidatura se deve aos constantes ataques aos territórios indígenas. Decidimos fazer esse enfrentamento do lado de dentro, contra a bancada ruralista, contra o agronegócio, pela demarcação dos territórios indígenas e comunidades tradicionais e pelo meio ambiente. Em mais de 500 anos, os povos indígenas foram alijados da política institucional e a nossa chegada ao Congresso representa uma vitória. Cocar no poder é floresta de pé. É a ancestralidade e outro modo de pensar e fazer política. Esse é o nosso compromisso.

Voltando à sua formação educacional, como vê a importância da participação dos indígenas na academia?

A universidade, assim como outras instituições, precisa romper com o racismo da ausência. Fui a primeira indígena no doutorado na UFMG e me senti muito solitária. Nós temos a sabedoria e nossa presença é fundamental para ‘aquilombar’, ‘indigenizar’ a academia.

O mundo todo viu o descaso do governo anterior com os Yanomamis e a situação deles hoje, que tem levado a medidas urgentes. Você foi uma das primeiras a participar das ações e denúncias. Pode citar um exemplo específico do quadro?

A situação dos Yanomamis terá de ser uma das prioridades do nosso trabalho. Quando falamos sobre eles, falamos das consequências do garimpo e sobre vidas que, ao longo de 523 anos, nunca estiveram nas preocupações prioritárias da política brasileira. Você sabe o que é escutar de um pai que o seu filho havia morrido de fome? É preciso pensar dentro da Câmara e do Senado em um projeto de vida. É preciso apurar, interromper outros processos de violência. Um exemplo: mais de 70% das crianças Yanomami estão contaminadas pelo mercúrio.

Foram duas vitórias recentes desde a sua posse: a primeira, a presidência da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas. O que isso representa para essa trajetória que está iniciando?

Conseguimos fazer com que nossa frente dos povos indígenas não fosse golpeada. A nossa ‘bancada do cocar’ simplesmente impediu que deputados envolvidos diretamente com o garimpo participassem da frente e definissem políticas para essa população. E queremos fazer com que a atuação no território Yanomami seja um dos principais focos no momento. Temos buscado sensibilizar. A frente parlamentar foi um feito importante. Conseguimos 203 assinaturas na Câmara e no Senado. Quando a gente pega quem assinou, vê que é um compromisso além de partidos progressistas. Queremos abrir diálogo sobre questões ambientais e territoriais.

Nós acreditamos que vai ter muita luta, sobretudo num Congresso que tem pautas de interesses econômicos e políticos diferentes, mas a pressão popular muda o processo de decisão. Acreditamos no nosso poder, na nossa voz de sensibilização aqui dentro e do lado de fora.

E sobre a segunda vitória, a presidência da Comissão da Amazônia e Povos Originários, o que tem a dizer?

Quem é que vai ter condições de enfrentar a bancada ruralista senão a bancada do cocar? Assumo a presidência desta comissão reafirmando a necessidade de proteção mais ampla, com políticas que potencializem os saberes dos povos e a conservação em todos os biomas, não apenas na Amazônia. Assumir o protagonismo da luta não é assumir a voz de uma parlamentar indígena, mas é assumir as vozes do território.

A ONU aponta a demarcação de terras indígenas como um dos principais instrumentos para o enfrentamento às mudanças climáticas. E o fomento à agricultura indígena é uma dentre as várias tecnologias sociais ancestrais que podem ser utilizadas como dispositivo de proteção territorial. Todo mundo fala tanto de economia, mas é importante a gente falar também da bioeconomia. Além disso, não serei somente uma pessoa indígena a presidir a comissão, serão 900 mil cocares que assumem a comissão comigo.

Questão indígena

Por: Andréia Vitório

Ilustração: Bruno Lanza

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