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ESTÔMAGO UM ROTEIRO QUE PEGA PELO
Em duas viagens ao longo do Velho Chico, da nascente à foz, a badalada chef Letícia Massula descobriu a sofisticação e a diversidade da culinária franciscana, que vai ganhando cores e sabores conforme a transição dos biomas
Meio mineira, meio goiana, a cozinheira Letícia Massula costuma usar uma medida de tropeiro nas suas viagens: quatro queijos e uma rapadura, com direito a reabastecimento na estrada. Entre os anos de 2014 e 2016, ela realizou duas longas jornadas. Na primeira, cortara metade do Brasil, sempre beirando o Rio São Francisco, da nascente, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, à foz, na cidade de Piaçabuçu, em Alagoas. Na segunda, também margeando o Velho Chico, o destino fora a mítica Canudos, na Bahia. Segundo Letícia, comida boa nunca lhe faltou. De Minas a Alagoas, cruzando cinco estados, vai se descobrindo a sofisticação da culinária ribeirinha. Conforme as transições de biomas, a comida se transforma, sem jamais perder de vista o sabor. “A gente dormia onde dava. Se o lugar era legal, ficávamos um tempo. Para mim, são viagens de pesquisa. Vou sempre focando no que se come”, contou: “Costumo observar a comida do ponto de vista social. A culinária não está dissociada da infraestrutura”.
A cozinha surgiu na vida de Letícia como uma viela para fora do mundo corporativo. Advogada de formação, decidiu largar tudo e tentar a sorte pilotando um fogão. Primeiro, em 2007, veio a Cozinha da Matilde, uma experiência de fundo do quintal. O nome do caseiro restaurante da Vila Madalena, bairro da Zona Oeste de São Paulo, homenageava o poeta Pablo Neruda e a sua companheira, a cantora lírica Matilde Urrutia, para quem ele escreveu “Cem Sonetos de Amor”. Com mais três comparsas, a ideia consistia em morar numa casa com jardim e receber os clientes debaixo da jabuticabeira. Daí, nasceu um blog que mistura gastronomia e poesia, música e bebidinhas para acompanhar. Em seguida, surgiram oportunidades para apresentar programas de TV: “Brasil CookBook”, da rede BBC, “Receitas Brasil”, do canal Sony, e “Trivial Perfeito”, da TV UOL. Em meio disto tudo, Letícia vai achando tempo para botar o pé na estrada.
“Da primeira vez que viajamos pelo São Francisco, fomos em junho. É maravilhoso, tudo está conectado às festas juninas. Fim das colheitas, fogo nas portas das casas, toda uma simbologia. Muito bonito adentrar o sertão nessa época do ano. Tempo de fartura”, comentou. “A segunda viagem aconteceu no final do ano. É completamente diferente. Muda toda a comida, muda tudo. Na minha opinião, o pôr do sol mais bonito do Velho Chico é na cidade de São Francisco, perto de Januária, em Minas Gerais.Chegamos bem na hora em que o sol se punha”.
A primeira viagem de Letícia começou na Canastra, onde, obviamente, ela fez um tour de degustação pelas queijarias. “Saímos de lá com um contrabando de mais de 30 queijos na mala”, brincou. Conforme não lhe falha a memória, nesta parte da estrada, o prato principal talvez seja o peixe frito, além da galinha caipira e da carne de porco: “Isto me conectou muito com a minha infância à beira do Paranaíba, em Goiás”. Correndo Minas Gerais, a cultura leiteira também vai saltando aos olhos, com os doces de leite servidos com queijo curado e outras iguarias, como o doce de leite com jiló, além, claro, dos pães de queijo. Adentrando a Bahia, a coisa muda da tradição vaqueira para a cultura do gado de corte. “Muda completamente a maneira de interpretar o animal”, comentou Letícia: “Nesta altura, começa a arte da carne de sol. Originalmente o sertão não tinha sal para o charque, por ser longe do litoral. Então, o que se aprendeu? Aprendeu-se a abrir a carne e deixar secar no vento e na sombra. A chamada carne serenada. O que garante a cura é o vento e o clima seco”.
Para Letícia, a beleza acha-se justamente aí, nesta conexão da culinária com a transição dos biomas. “Some o pão de queijo e entra o biscoito de polvilho doce, por exemplo. Passamos a vivenciar também um trabalho fenomenal com a mandioca. As casas de beiju são absolutamente surpreendentes”. Pelas contas dela, são mais ou menos sete tipos de quitandas diferentes feitas com a mandioca, com ou sem coco, com ou sem gergelim, salgada ou doce, seca ou molhada. O mais impressionante seria o gosto de queijo sem que as receitas levem queijo, apenas ajustando a fermentação. Outra particularidade que chamou a atenção foi a cultura do bode. Nunca comeu tanto bode e preparado de tantas maneiras distintas. “Um lugar muito interessante é o mercado de Aracaju. Ali você acha o sertão e o litoral”, indicou. “Se você subir até Itabaiana, tem os manauês. Parece muito o mané pelado, de Minas. Bolos de milho muito cremosos”.
Parando aqui e acolá, Letícia enxergou a profunda sofisticação na simplicidade da gastronomia ribeirinha. Diante da escassez, busca-se, com o mesmo ingrediente, sabores variados. De manhã, o milho assado substitui o pão. À noite, vira petisco para acompanhar a cachacinha, associado ao peixe frito. “Os sertanejos não desperdiçam nada. Se matam um animal, seja um porco, um boi ou um bode, aproveitam os miúdos em caldos, as tripas para os embutidos e assim por diante”, ressaltou. Ao longo do caminho, até as farinhas se transformam: “Em Minas, farinha de milho, fubá. No sertão, farinhas azedas, com grãos maiores. As padarias sertanejas são muito interessantes, com pãezinhos sem fermento”. Já no verão a atração são as frutas: “Doce de leite com pequi. Leite engrossado com pequi. Pirão de pequi. Doce de leite com jatobá”.
Finalizando à beira mar, Letícia concluiu: “O ideal é viajar sem pressa, parando nos mercados, nas feiras, conversando com as pessoas. Muita história, muita cultura alimentar, muita sofisticação. As maneiras de lidar com os ingredientes são impressionantes. O semiárido me lembrou o Mediterrâneo. Fico indignada quando me dizem que o sertão é lugar de miséria. O sertão é lugar de resistência”.
Por: Karla Monteiro
Fotos: Léo Boi