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ÍNDIO NÃO QUER APITO

Após a divulgação das aterrorizantes imagens de Yanomamis esqueléticos, semivivos, a questão indígena saltou para o centro das atenções. A revista CHICO percorreu a sinuosa linha do Velho Chico para conhecer a realidade das mais de 40 etnias que habitam a bacia. Com a primeira ministra indígena da história brasileira, Sônia Guajajara, a esperança é de que dias melhores virão

O novo governo ainda se acomodava na cadeira quando o presidente Lula pousou em Boa Vista, a capital de Roraima. Na comitiva, composta por oito ministros de Estado, estava Sônia Guajajara, a primeira indígena a ocupar um ministério. Enquanto a caravana presidencial permanecia por lá, imagens de yanomamis esquálidos, semivivos, corriam o mundo. Oriundas da Amazônia brasileira, aquelas fotografias remetiam ao fim da Segunda Guerra, quando soldados russos abriram as portas de Auschwitz, revelando a imensurável barbaridade dos nazistas contra os judeus. “Sei que a Shoah parece acima de comparações, mas não é. As imagens dos yanomamis são da mesma ordem de horror e o método utilizado também”, postou, no Twitter, a escritora de origem israelita Noemi Jaffe. Diante do holocausto repetidamente denunciado durante o governo Bolsonaro, Lula prometeu dignidade aos povos indígenas.

“Eu vim aqui firmar o compromisso com os caciques de que vamos dar a eles a dignidade que merecem na saúde, na educação, na alimentação e no direito de ir e vir”, discursou o presidente: “Nós vamos levar muito a sério essa história de acabar com qualquer garimpo ilegal”.

Certamente a tarefa do novo governo não se encerra no território Yanomami. Este cortejo de epidemias, violência e destruição vem percorrendo a história de todas as etnias. Ao longo da sinuosa linha do Velho Chico, cerca de 40 etnias resistem: Fulni-ô, Kambiwá, Tumbalalá, Tingui-Botó, Kapinawá, Tuxá, Pankararu, Pankará, Truká, Xocó, Xakriabá, entre outros povos. Segundo o cacique Uilton Tuxá, coordenador da Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais (CTCT), do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), a bacia do Velho Chico se constitui basicamente de terras indígenas. No entanto, boa parte deste território segue sem demarcação. Na opinião dele, inicialmente, seria preciso resolver a questão fundiária. “A essência de um povo indígena é o seu território, a sua terra para cultivar, praticar seus costumes e tradições ancestrais, exercer a medicina tradicional com plantas medicinais”, afirmou.

Nas barrancas do Velho Chico, vivem hoje aproximadamente 100 mil indígenas, representando 9% da população total de indígenas do país. A região do Submédio São Francisco, compreendendo a Bahia e Pernambuco, reúne o maior número de indivíduos e etnias. A etnia mais populosa é a Xakriabá, com 13 mil almas, a maior parte delas no município de São João das Missões, em Minas Gerais, no Alto São Francisco. De acordo com o antropólogo José Augusto Sampaio, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e um dos fundadores da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), o novo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deve trazer surpresas, com o aumento dessa população. A última contagem fora feita ainda em 2010, apontando 900 mil indígenas no Brasil, a maior parte deles (37,4%) na região Norte.

“Há um índice grande de indígenas dessa região na universidade, ou que cursaram universidade, ao contrário de gerações anteriores de lideranças”, comentou Sampaio. “As lideranças são muito qualificadas e estão alavancando o movimento indígena pelo resgate de territórios e acesso a políticas públicas”.

Sustentabilidade espiritual

“A sustentação física e espiritual desse indígena depende, especialmente, do Velho Chico”, garantiu o indigenista Ivo Augusto Oliveira Ferreira, que, desde 2010, presta serviços para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). De acordo com ele, o cenário é de resistência – e, ao mesmo tempo, de resignação. Se por um lado luta-se para regatar uma língua ancestral, como o “Dzubukuá”, por outro, assiste-se à chegada das religiões evangélicas, com os pastores como os novos jesuítas. A propósito, em todo o Nordeste brasileiro, exceto o Maranhão, só os Fulni-ô mantêm ativa sua própria língua: o Iatê. “Estamos muito próximo dos Pankarás, por exemplo, e escuta-se muito sobre como eles perderam a representação cultural, espiritual, metafísica que tinham com o Rio São Francisco após a construção do complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso e Itaparica”, exemplificou Ferreira.

A questão do território atravessa toda a vida indígena, da conexão espiritual à saúde física. Segundo Marcelino Mendonça de Aquino, chefe da coordenação técnica da Funai em São João das Missões, os Xakriabás, por exemplo, encontram-se diante de problemas de toda ordem, que vêm provocando a migração: nascentes secando, riachos que se tornaram intermitentes com água só no período das chuvas, contaminação de agrotóxicos, esgoto urbano, assoreamento, perda de mata ciliar e ocupação irregular, além da retirada ilegal de madeira. “No período da seca ou de safra de outras regiões, muitos saem para buscar outros recursos financeiros”, ressaltou Aquino. Por outo lado, há também jovens deixando suas comunidades para estudar em institutos federais e universidades: “Querem retornar com conhecimentos em áreas de educação, saúde, produção e comércio para mudar a realidade”.

Bacia do Rio São Francisco

Terra indígena Etnia Município/Estado

Estado de Sergipe

Caiçara/Ilha de São Pedro Xocó Porto da Foha - SE Estado de Alagoas

Aconã Tingui Botó Traipu - AL Fazendo Canto Xucuru - Kariri Palmeira dos Índios - AL Gerinpancó Jeripancó Água Branca - AL Kalanko Kalanko Água Branca - AL Jeripancó Jeripancó Pariconha - AL Karapotó Karapotó São Sebastião - AL Kariri-Xocó Kariri-Xocó S. Brás / P.R. Colégiado - AL Mata da Cafuma Xucuru - Kariri Palmeira dos Índios - AL Tingui Botó Tingui Botó C. Grande / F. Grande - AL Xucuru - Kariri Xucuru - Kariri Palmeira dos Índios - AL

Estado de Pernambuco

Atikun Atikun Salgueiro / Belém - PE

Entre Serras Pankararu Tacaratu / Petrolândia - PE

Fazenda Cristo Rei Pankararu Jatobá - PE

Fuini-ô Fuini-ô Águas Belas / Itaiba - PE

Ilhas da Tapera Truká Orocó - PE

Kambiwá Kambiwá Ibimirim / Inajá - PE

Kapinawá Kapinawá Brique - PE

Pankará da Serra do Arapuá Pankará Carnaubeira da Penha - PE

Pankararu Pankararu Jabora / Tacarau - PE

Pipipã Pipipã Floresta - PE

Truká Truká Cabrobó - PE

Tuxá de Inajá Tuxá Inajá - PE

Xucuru Xucuru Poção / Pesqueira - PE

Xucuru de Cimbres Xucuru Poção / Pesqueira - PE

Estado da Bahia

Barra Atikum / Kiriri Margem S. Francisco - BA

Brejo do Burgo Pankararé Rodelas / Glória - BA

Fazenda Remanso Tuxá Margem S. Francisco - BA

Ibotirama Tuxá Ibotirama - BA

Kantaruré Kantaruré Glória - BA

Pankararé Pankararé P. Afonso / Rodelas - BA

Quixaba Xucuru-Cariri Glória - BA

Tumbalalá Tumbalalá Abaré / Curaça - BA

Tuxá Tuxá Serra do Ramalho - BA

Vargem do Alegre Pankararu Serra do Ramalho - BA

Estado de Minas Gerais

Caxixó Kaxixó Pompeu - M. Campos - MG

Cinta Vermelha / Jundiba Pataxó / Pankararu Araçuaí - MG

Iruã Mimatxi Pataxó Itapecerica - MG

Xakriabá Xakriabá Itacarambi - MG

Rancharia Xakriabá S.J. das Missões - MG

Fonte: Funai

Identificação na Bacia: Museu Ambiental Casa do “Velho Chico”

As ameaças e a proteção ancestral

Aos 23 anos, Caroline Silva Lima nasceu na Ilha de Assunção, território ancestral do povo Truká, localizado em Cabrobó, Pernambuco. Apesar da pouca idade, já se encontra na frente de batalhas, integrando a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). Para ela, as ameaças hoje vêm dos grandes empreendimentos, a exemplo de uma usina nuclear que já instalou um ponto para teste de funcionalidade na região. “Temos consciência que daqui a alguns anos ou até meses lidaremos com consequências”, comentou. Nós sabemos que a grande maioria dos compostos usados são bioacumulativos, ou seja, não afetam hoje, mas se acumulam dentro do nosso organismo e podem causar doenças irreparáveis daqui a alguns anos”.

Segundo Caroline, os Trukás vivem principalmente da agricultura familiar e da pesca. Com o desequilíbrio ambiental, faltam peixes: “Contudo, nós somos atemporais, sobrevivemos a anos de violências e apagamento histórico. Lutamos hoje pela seguridade do nosso sagrado território, na garantia dos nossos direitos pelos que já foram e pelos que ainda virão. Seguimos fortalecendo nossa cultura pelos nossos cantos e a pisada do Toré. Pedimos aos nossos ancestrais proteção e ânimo na caminhada”.

Truká

Localização na bacia: Ilha da Assunção, no Médio São Francisco, município de Cabrobó, em Pernambuco. População estimada: aproximadamente 5.000 indígenas

Território: cerca de 6.000 hectares

Demarcação: sim

A Festa do Umbu

“Nós somos aqui do entorno das margens do São Francisco. Antes de existir construção de barragem e de usina hidrelétrica, a gente vivia aqui pescando, mantendo as nossas tradições, que eram na beira do rio. Após a construção das usinas de Itaparica e de Paulo Afonso, a gente foi impedido de dar continuidade às nossas tradições. Tem que pedir licença para poder pescar”, disse Sarapó Pankararu. De acordo com ele, o seu povo não vive mais da caça e da pesca. Mesmo a agricultura está escassa. Sendo assim, assiste-se à migração. Só em São Paulo existe uma comunidade de mais de dois mil Pankararus.

Uma tradição muito comum dos Pankararus é a Festa do Umbu, que acontece entre os meses de fevereiro e março para celebrar a safra do umbuzeiro. O ritual representa renovação e purificação. “Essa tradição é a mais importante para o povo Pankararu, um povo sábio, que tem uma herança ancestral muito grande. Nossa cultura é milenar, herdada dos nossos antigos e passada de geração em geração. Além de praticar nossos rituais tradicionais, também somos um povo muito católico”.

Pankararu

Localização na bacia: entre Petrolândia e Tacaratu, no sertão pernambucano, em Glória, na Bahia, que faz divisa com Pernambuco e Alagoas, no Baixo São Francisco e, pelo estado de Alagoas, em Pariconha, Água Branca, Porto Real do Colégio e Palmeira dos Índios, municípios do Submédio e Baixo São Francisco.

População estimada pela bacia: mais de 7.500 indígenas Território na bacia: aproximadamente 8.377 hectares Demarcação: sim

O ritual do Ouricuri

“A nossa ligação com o Rio São Francisco é muito forte, todo o nosso sustento. É ele que irriga o feijão, o milho, mata a sede do gado, além do peixe, nossa principal fonte de renda”, comentou Karine Santos, 32 anos, da etnia Xocó. Segundo ela, o Velho Chico voltou a encher, deixando a comunidade ilhada: “Voltou a encher como há muito tempo não se via”. No vai-e-vem das águas, uma tradição se mantém: o Ouricuri, ritual sagrado regido pelo consumo da Jurema, a planta com poderes psicoativos que, no dizer do povo Xocó, atravessa toda sua ancestralidade.

“Temos também a cerâmica, que foi a principal fonte de renda do nosso povo nas décadas de 70, 80 e 90 e que hoje é passada nas oficinas, na escola, para as crianças”, ressaltou Karine. Sobre o futuro, ela ressalta a importância de povos indígenas ocuparem vários espaços, inclusive na política: “É importante porque há vários projetos de lei tramitando dentro do Congresso contra os povos indígenas, tentando retroceder todo o avanço, todos os esforços que os nossos parentes já fizeram para a garantia dos nossos direitos”.

Xocó

Localização na bacia: Aldeias Ilha de São Pedro e Caiçara, situadas no município de Porto da Folha, Sergipe, no Baixo São Francisco.

População estimada: mais de 600 indígenas

Território: cerca de 3.600 hectares

Demarcação: sim

A ancestralidade e a Caatinga

“A relação do nosso povo com o Rio São Francisco é cultural, tradicional e espiritual. É sagrada, porque nossos antepassados fazem morada no fundo desse rio”, disse Cícera Leal Cabral, de 41 anos, cacique Pankará. Segundo ela, os rituais são feitos sempre com a água do Velho Chico – e na sua margem. No fundo dele, habita o Nego D’água, que derruba a canoa de quem pratica pesca irregular. Na comunidade, alguns vivem do plantio de feijão e milho, outros do artesanato, alguns como professores. “Dentro do nosso território, depois de muita luta, temos o atendimento à saúde e uma escola que ensina os saberes específicos, diferenciados do nosso povo, mas também a parte pedagógica do branco”, destacou Cícera.

Para ela, o importante é seguir lutando pelo direito de preservar o São Francisco e a Caatinga. No momento, a mobilização é contra a construção de uma usina nuclear na região. “Avançamos bastante com o Ministério dos Povos Indígenas, um espaço para onde podemos levar nossas reinvindicações com maior expectativa de sermos recebidos e atendidos”, concluiu.

Pankará

Localização na bacia: principalmente na Serra do Arapuá, municípios de Carnaubeira da Penha e Itacuruba, na Aldeia de Serrote dos Campos, em Pernambuco, Submédio São Francisco.

População estimada pela bacia: mais de 5 mil indígenas

Território: em torno de 15 mil hectares

Demarcação: em fase de demarcação

Os migrantes

O povo Tuxá é originário de Rodelas, norte da Bahia. Muitos ainda vivem na região, numa aldeia urbana. Outros, no entanto, migraram para Minas Gerais. Contribuiu para isso a construção da hidrelétrica Luiz Gonzaga (antes chamada de Itaparica), em 1988, que deixou submersa a Ilha da Viúva, local que abrigava a comunidade. “Nosso território é o ambiente onde a gente vive, exerce nossa ecologia humana, produz o alimento e faz o uso sustentável da biodiversidade”, comentou o cacique Uilton Tuxá, coordenador da CTCT, do CBHSF.

O povo Tuxá também faz uso da planta sagrada jurema, no ritual chamado Toré. Mas é pela força do Velho Chico que os Tuxás se conectam com os encantados e sua ancestralidade. Para além do sagrado, muitos desses indígenas vivem, até mesmo exclusivamente, da pesca e da agricultura comercial.

Tuxá

Localização na bacia: principalmente nos limites dos municípios baianos de Muquém do São Francisco, Ibotirama e Rodelas, e à margem direita do Rio Moxotó, no município pernambucano de Inajá, no Submédio São Francisco; e em Buritizeiro, Minas Gerais, no Alto São Francisco.

População estimada pela bacia: cerca de 2.500 indígenas

Território na bacia: aproximadamente 2.150 hectares

Demarcação: 1.650 hectares já demarcados, 500 hectares em seção de uso concedido pelo Governo de Minas Gerais e 4.300 hectares em processo de aquisição para implantar uma reserva indígena

O que é a Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais?

A Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais (CTCT), do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), é por si só uma conquista. Ela integra representantes de povos tradicionais e originários com a proposta de fortalecer as pautas de interesse desses públicos que, muitas vezes, estão alinhadas às de proteção e revitalização ambiental.

Uilton Tuxá, coordenador da CTCT, acredita que uma das principais demandas da Câmara é se sentir mais valorizada dentro da estrutura do próprio Comitê. Diz também que a população da bacia desconhece a diversidade de segmentos tradicionais que existem na região, bem como seu papel de grande relevância na preservação dos ecossistemas e da biodiversidade.

Entre os resultados importantes desse trabalho, destaca a implantação de adutoras para algumas comunidades, como é o caso do povo Pankará, em Pernambuco, no município de Itacuruba. “A gente conseguiu uma adutora de mais de 3 milhões de reais que garante o abastecimento de água para a nossa comunidade. Antes era uma dificuldade, porque éramos abastecidos por carro-pipa e o abastecimento era insuficiente”, contou Cícera Leal Cabral, representante Pankará que também integra a CTCT e membro titular do CBHSF.

Mapa meramente ilustrativo. Não representa a totalidade e a localização exata das etnias presentes na bacia do São Francisco. Diversas fontes: Entrevistas, Funai, Museu Ambiental Casa do Velho Chico e site Povos Indígenas no Brasil.

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