O ensino de design na hipermodernidade líquida

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O ensino de design na hipermodernidade líquida

Cecília Brito De Lucca Especialização em Comunicação de Tendências Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 2015


Sumário O design passa por um momento de crise, no qual tudo é design e todos são designers. Agora, o fácil acesso ao computador e às informações, permite que qualquer um seja capaz de dominar as ferramentas utilizadas por designers. É uma realidade que não há como negar, e por isso é necessário saber como lidar com ela. Com mudanças cada vez mais constantes, as instituições se mostram despreparadas para acompanhar e lidar com tal realidade, resultando em um ensino baseado em metodologias e teorias que não se aplicam mais à realidade em que os estudantes se encontram, e, consequentemente, profissionais frustrados com o que encontram no mercado de trabalho. Paralelamente, em um cenário geral, cresce o número de métodos alternativos ao ensino tradicional, demonstrando que existe, de fato, uma carência na educação. Este artigo visa explorar que aspectos do ensino formal em design mostram-­se defasados, e quais são as formas que o ensino informal tem utilizado para suprir essa carência.


Introdução Atualmente o design passa por um momento peculiar de sua história: a era digital. Em pouquíssimo tempo, o computador, bem como a rede, tornaram-­se as principais ferramentas de trabalho de um designer, sendo difícil imaginarmos a elaboração de um projeto sem eles. Essa não é uma realidade exclusiva dos designers: “tanto a rede é um fato da contemporaneidade que, poucas décadas após sua criação, quase ninguém consegue mais imaginar como seria o mundo sem ela.” (Cardoso, 2011:177). A rede, em especial, é responsável por uma transmissão incalculável de informação. Agora, o fácil acesso ao computador e à internet, permite que qualquer um aprenda a dominar ferramentas utilizadas pelos designers. É uma realidade que não há como negar, e, dessa forma, é necessário saber como lidar com ela. “Do ponto de vista do design, portanto, faz-­se urgente compreender melhor as bases epistemológicas que dão sustento às visualidades da rede.” (Cardoso, 2011:177). Vivemos na hipermodernidade, que, segundo Lipovetsky e Charles, se caracteriza principalmente pela velocidade, pela moda e a necessidade de mudanças constantes. O indivíduo hipermoderno não possui tempo e valoriza o presente, sempre buscando aproveitá-­lo ao máximo. “Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos.”. (Lipovetsky;; Charles, 2004:28) De acordo com a pesquisa realizada pela BOX1824 em 2013 com jovens entre 20 e 24 anos (que fazem parte da geração Y ou Millennials), esta geração — nascida na época do surgimento da internet — sente-­se confortável com as plataformas digitais e utilizam-­na como ferramenta, entendem a dinâmica de rede e organizações horizontais, possuem consciência de seu papel social, buscando transformar sua realidade, e reconhecem a importância do ensino tradicional porém demonstram-­se insatisfeitos, procurando formas alternativas de aprendizado. Diante deste cenário, estará a educação — base fundamental da sociedade de qualquer época — preparada para acompanhar a hipermodernidade?


Infográfico Jovens Transformadores, pesquisa realizada pela BOX1824 em 2013.


O ensino de design na hipermodernidade líquida O design, sendo uma disciplina que lida diretamente com indivíduos, precisa estar sempre a par de todas as características comportamentais da sociedade. Desta forma, torna-­se evidente a necessidade de uma revisão constante de grade curricular e metodologias de ensino na área, o que nem sempre ocorre. As necessidade, demandas e prazos não são mais os mesmos de quando surgiu, oficialmente, a primeira escola de design, a Bauhaus1, quase 100 anos atrás, e ainda assim muitas faculdades baseiam-­se em suas metodologias e de outras instituições quase tão antigas quanto. Segundo Victor Almeida (2012:99), “O tema da crise, enquanto recorrência e rotura, coloca o design de comunicação contemporâneo em confronto com as clássicas expectativas do modernismo.” Ao manter antigas metodologias e visões — e, de certa forma, negar o momento em que vivemos —, as instituições se distanciam cada vez mais do que ocorre de fato ou é exigido no mercado de trabalho, gerando, consequentemente, jovens profissionais frustrados com o que encontram ao iniciar sua carreira, por vezes muito diferente da espectativa criada pela faculdade. Ao mesmo tempo, com o fácil acesso ao computador, ferramentas e informação, a própria necessidade de se obter uma graduação em design torna-­se, para alguns, questionável. Se agora é possível dominar programas apenas lendo tutoriais e vídeos, se existem inúmeros artigos e livros online sobre design, é mesmo essencial cursar uma faculdade? O que a torna, ou a tornaria, indispensável? O conhecimento teórico dado pelos professores, bem como discussões e projetos em sala de aula, são algo que ainda não se obtém através da rede, porém, essa troca nem sempre é valorizada ou prioritária na própria grade curricular das instituições. Segundo Norman e Klemer, “Today, the glue connecting disciplines in design courses and programs is almost entirely practitioner wisdom. While many universities are newly keen on design, the opportunity for real and durable innovation is limited unless we can create a practical theory of design.” (Norman, Klemer, 2014)

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Escola alemã de arquitetura, design e arte fundada por Walter Gropius em 1919.


Os autores também acreditam que o design está diante de um futuro incerto: “The traditional design fields create artifacts. But new societal challenges, cultural values, and technological opportunities require new skills. Design today is more human-­centered and more social, more rooted in technology and science than ever before. Moreover, there is need for services and processes that do not require the great craft skills that are the primary outcome of a design education. (...) Today, culture and emotion are central, plus knowledge of societal issues, techniques for subtle persuasion, and the intricacies of complex, interdependent systems. Design education must change.” (Norman, Klemer. 2014)

Vemos então dois cenários: um número crescente de designers autodidatas, que utilizam a internet como principal ferramenta de aprendizado;; e uma mudança no enfoque do próprio design, proveniente de uma consciência social e ambiental cada vez maior por parte dos profissionais da área, deixando as habilidades artísticas em segundo plano e a projeção de serviços em primeiro. De acordo com Almeida, citado por Fernando Pereira, O design transitou de um período intenso de prescrição ideológica (modernismo e pós-­modernismo) para outro, cujo desígnio era o “verde”, e na actualidade confronta-­se com o interesse das gerações mais novas por uma sustentabilidade orientada para a solução de problemas que afectam directamente determinadas populações ou grupos de indivíduos. (Almeida, 2012 apud Pereira, 2012:07)

Para além dessas mudanças, vemos também o crescimento do ensino informal, possivelmente um reflexo da ineficiência do ensino formal diante destes cenários. Segundo o levantamento realizado pela BOX1824 (2011), as plataformas alternativas aos métodos de ensino tradicionais podem ser agrupadas em quatro grupos distintos, de acordo com suas principais características: fazer (cursos online, incentivo à troca e à pratica), digerir (conteúdo livre), conversar (incentivo à troca e discussão) e ouvir (videoaulas online).


Infográfico Educação Informal, pesquisa realizada pela BOX1824 em 2011.


Em comum, as iniciativas apresentam o fácil acesso à informação, disponibilizando-­a gratuitamente ou com baixo custo, seja online ou fisicamente, e também a autonomia de como e do que estudar. Todos esses dados vão de encontro à uma série de paradigmas e tendências atuais, entre as principais: Liquid Hypermodernity 2, Empowerment3, Connection, Convergence and Ergonomics4 e DIY5. No contexto atual, as constantes mudanças, a necessidade do novo e de viver o presente (Liquid Hypermodernity), bem como a vontade de um futuro melhor, do entendimento do nosso papel social e de que a mudança se inicia por nós mesmos (Empowerment) são mentalidades visíveis principalmente nos jovens, os Millennials. São eles os atuais estudantes e profissionais que colocam em questionamento o atual sistema de ensino. O senso de empoderamento torna cada vez maior o número de iniciativas próprias, inclusive as de ensino alternativo. Dentro delas, é possível encontrar um sistema de rede, de compartilhamento, uma forma diferente de se relacionar e transmitir conhecimento, muito característico do momento que vivemos (Connection, Convergence and Ergonomics). A horizontalidade, a perda de uma figura de autoridade, também é presente na maior parte das iniciativas. Sobre o ensino, Ocar Peña acrescenta: “From analogue to digital, from know how to know why, know when, know where and especially know whom. We can´t do it alone, those times are over. We are in times of collaboration, co-­creation and conversation, just like web 2.0.” (Peña, 2012:15).

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“Having been proposed by Gilles Lipovetsky, and already foreseen by Zygmunt Bauman´s liquid modernity, liquid hipermodernity defines “now”. It gives emphasis to the objective of the modernity project, focusing on technical, scientific, individual and Mentalities and their associated behaviors present a volatile character marked by rapid and substancial changes. As a result, the term “hiper-­” has been marking the way in which we seen production and consumption, giving birth to hyperconsumerism.” 3 “This movement translates into an active optimism, in order to save the world from its currrent confusion, so that we might change him and minimize financial, economic and ethical problems. Therefore, it is necessary to provide tools and means for self development –supporting the idea of a of an empowered education – as a way for each individual to activily contribute for society.” 4 “Internet changed the world and the way in which we interact with society. Now, several instruments and gadgets are converging, in order to potentiate our capacity to always be connected and informed. However, it is an Ergonomic convergence that encompasses our basic routines.” 5 “With the crysis and the empowerment of consumers, it is important for individuals to have the power to control artefacts and experiences.” (Trends Observer, 2014).


A Parallel School é um projeto que demonstra claramente essas características. Criada em 2009 e retomada em 2013, trata-­se de um espaço horizontal e democrático de ensino e aprendizado na área de design e artes. Não possui uma sede, depende da iniciativa voluntária de um grupo para ocorrer (podendo ser em qualquer local do mundo) e não há taxas para participar, apenas a motivação de participar e de transmitir algum conhecimento em troca. A grade é construída em conjunto por todos os participantes, na qual cada um se propõe a ensinar algo, construindo um ambiente de compartilhamento, onde todos são alunos e professores. A escola, bem como outras iniciativas, reflete uma necessidade crescente de procurar formas de ensino alternativas às tradicionais, menos hierárquicas e que valorizem os conhecimentos individuais. Considerações finais Com a cultura e a responsabilidade social tendo cada vez mais relevância, o papel do design passa, consequentemente, por alterações de enfoque e de habilidades necessárias. Paralelamente, a mudança de comportamento na sociedade, traz indivíduos mais pró-­ativos, que buscam complementar as deficiencias de ensino atuais com métodos alternativos. “A rapidez de absorver o conteúdo online cria a sensação que há mais tempo e espaço para aprender, além de empoderar as pessoas a aprender mais (...). O futuro das escolas é uma pergunta difícil de responder e que tem provocado muita gente boa a pensar e agir. No entanto, o que já sabemos é que o presente do aprendizado deve seguir uma lógica hacker: descentralização, colaboração e um eterno estado beta.” (BOX1824, 2013)

Algumas faculdade já demonstram caminhar nesse sentido. Em 2014, a Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, na 4ª edição da Exposição de Alunos Finalistas de Design de Comunicação, propôs “uma reflexão sobre o papel do ensino artístico e do design numa época em que a academia e a universidade são amplamente questionadas por valores políticos e ideológicos” (Ponto Final Parágrafo, 2014), convidando os alunos a refletirem sobre o


que desejam para o futuro do ensino do design de comunicação. A iniciativa mostra uma abertura ao diálogo entre aluno e instituição, tornando o ambiente mais horizontal. Enquanto as instituições não se propuserem a entender essas recentes transformações, o abismo entre faculdade e mercado só irá aumentar, bem como a necessidade de se buscar alternativas para remediar a situação. As metodologias de projetos alternativos podem atuar, neste momento, como uma direção na qual as instituições podem tomar, para se adequar ao indivíduo hipermoderno.


Bibliografia ALMEIDA, Victor M. Responsabilidade social e a crise de confiança do design. In Design, Crise e Depois. Lisboa: Edição Cieba, 2012. BOX1824. Encontro Jovens Transformadores. 2013. Disponível em: http://arquivo.pontoeletronico.me/2013/09/17/encontro-­jovens-­transformadores/. Acesso em 10/01/2015. _______ Floqq e o aprendizado descentralizado. Disponível em: http://arquivo.pontoeletronico.me/2013/07/23/floqq/. Acesso em 12/01/2015. ———— Educação Informal. Disponível em: http://arquivo.pontoeletronico.me/2011/09/19/educacao-­informal/. Acesso em 12/01/2015. CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac Naify, 2011. LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. NORMAN, Don;; KLEMMER, Scott. State of Design: How Design Education Must Change. 2014. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/20140325102438-­12181762-­state-­of-­design-­how-­design-­educati on-­must-­change. Acesso em 10/01/2015. PEÑA, Oscar. Doing and thinking. In Design, Crise e Depois. Lisboa: Edição Cieba, 2012. PONTO FINAL PARÁGRAFO. Disponível em: http://pontofinalparagrafo.fba.ul.pt/sobre.html#exposicao. Acesso em 13/01/2015. TRENDS OBSERVER. Disponível em: http://www.trendsobserver.com/. Acesso em 13/01/2015.


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