Andara Vicente Franz Cecim e a Narrativa Ontológica Karina Jucá ebook Com entrevista O Voo do Curau

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SUMÁRIO 1 VICENTE FRANZ CECIM – VIDA E OBRA ........................................................

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2 NO INÍCIO ERA O VERBO: Andara. Viagem ao lugar da reminiscência narrativa .......................................................................................................................

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3 ANDARA E AS TRÊS FORMAS TRANSPARENTES ..........................................

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3.1 O VAZIO COMO CHEIO. O NÃO – SER DE ANDARA .......................................

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3.2 O SILÊNCIO: falar sem boca ...................................................................................

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3.3 ANDARA: o livro invisível .......................................................................................

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4 O ELEMENTO MÍTICO: “A história de Andara não tem fim” ...........................

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4.1 O ETERNO RETORNO, O TEMPO CÍCLICO .......................................................

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4.2 O CAMINHO DA SERPENTE - o livro que o não é de Fernando Pessoa. Afinidades com Andara o livro invisível ...................................................................

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5 O VERBO TRANSCENDENTE. UMA CABALA PARTICULAR ......................

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5.1 CONFLUÊNCIAS ENTRE O MITO DE BABEL E O RIO DE HERÁCLITO, OS ESPELHOS, OS OLHOS E OS NÍVEIS DA CRIAÇÃO .........................................

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5.2 OS SIMULACROS. Na penumbra andara: diálogo com sombras ............................

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5.3 CECIM E A ICONOGRAFIA NATURALISTA ......................................................

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5.3.1 A Iconografia Naturalista – uma exegese arquetípica .......................................

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6 “ÀS FLORES VISIONÁRIAS DO AR” ...................................................................

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6.1 ANDARA E O SEM-DISTÂNCIA ...........................................................................

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6.2 A FACE ONÍRICA DE ANDARA - APROXIMAÇÕES COM RENÉ MAGRITTE...

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6.3 A ANTÍFRASE E OS ABSOLUTOS ........................................................................

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6.4 SIMULTANEIDADE: a origem ................................................................................

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6.5 A QUEDA: além do homem hiperbólico ...................................................................

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7 A ANTIESTRUTURA DO TEXTO. SERDESPANTO, O HERÓI NEOPLATÔNICO ......................................................................................................................

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8 A OBRA NO CONTEXTO HISTÓRICO ................................................................

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8.1 O REGIONAL, O UNIVERSAL, O UNO E O MÚLTIPLO ....................................

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8.2 MANIFESTO CURAU. UMA ANTROPOFAGIA DECANTADA ........................

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9 FIM DE Ó SERDESPANTO?... ..............................................................................

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REFERÊNCIAS .............................................................................................................

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1. VICENTE FRANZ CECIM - VIDA E OBRA

Diz o estrangeiro entre as areias: toda coisa no mundo é nova pra mim. E o nascimento do seu canto, não lhe é menos estranho. Saint John Perse

Vicente de Jesus de Araújo Cecim é o seu nome de batismo. Iniciou a carreira assinando apenas Vicente Cecim, passando a Vicente Franz Cecim após a morte do seu filho Franz, em 1993. Nasceu em Belém do Pará, em 7 de agosto de 1946. Filho de Miguel Cecim Janino e Yara de Araújo e Souza Cecim. Seus avôs paternos eram emigrantes europeus. A avó, Florinda Janino, natural da Sardenha, Itália, o avô, Josef Cecim, natural do Líbano. Da parte materna, Manoel Pedro de Araújo e Sousa e Honorina Bastos de Araújo e Sousa, tinham sangue português e indígena, respectivamente. Cecim cresceu ouvindo histórias e lendas da Amazônia que sua mãe, Yara, também escritora, lhe contava. A vocação precoce para a escrita o levou a se tornar, ainda estudante, campeão geral da Maratona Intelectual promovida pelos colégios paraenses, representando o tradicional colégio Paes de Carvalho. Abandonou os estudos formais no segundo ano clássico, iniciando a carreira no jornalismo n’ A Folha do Norte, em 1966, e atuando depois em outros jornais. Tornou-se crítico de cinema e membro da Associação Paraense de Críticos de Cinema (APCC). Realizou curtas-metragens em super-8 no final dos anos 70. Ingressa na publicidade como redator de propaganda. Mais tarde, acrescentaria a essa profissão a de redator de marketing político, atuando no Brasil e na África. Publica o primeiro livro, A Asa e a Serpente, em 1979. Por Viagem a Andara recebe em 1988 o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que em 1980 já lhe conferira o Prêmio Revelação de Autor por Os Animais da Terra. Em 81 recebe menção especial no Prêmio Internacional Plural, México, por A Noite do Curau, publicado depois com o título Os Jardins e a Noite, seu terceiro livro. Em 1983 durante a realização do Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Belém, lança o manifesto poético-político Flagrados em Delito contra a Noite - Manifesto Curau. Em 1985 muda-se para a Bahia. Em 1998, retorna a Belém.


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Publica em Portugal o livro Ó Serdespanto, em 2001, considerado o segundo mais importante lançamento do ano pelo conjunto da crítica portuguesa. O lançamento de K O Escuro da Semente, também publicado em Portugal, em 2005, inaugura o estilo o qual nomeia Iconescritura, a decantação poética que já anunciava desde os primeiros livros. Já publicou 15 livros com o título geral Viagem a Andara oO Livro Invisível. No Manifesto Curau propõe uma tomada de posição dos artistas da Amazônia: “Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor”.


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2 NO INÍCIO ERA O VERBO: Andara. Viagem ao lugar da reminiscência narrativa

Andando não acharás os limites da psique. Embora percorras todos os caminhos, tão vasto é o seu discurso. Heráclito A verdadeira viagem se faz na memória. Marcel Proust

Vista por parte da crítica como metáfora da Amazônia, Andara, a região ficcional, região - conceito da obra de Vicente Cecim, abrange, mas excede a definição mencionada. A obra total apresenta peculiares do imaginário regional como, por exemplo, a influência da tradição oral, porém, de forma não regionalista, em que se destaca a capacidade de fabulação mítica ancestral universal. O ponto de ligação da obra com a tradição amazônica é, portanto, amplo, mas indireto... Segundo o autor, Andara é “literatura fantasma”, sugerindo com a definição uma escritura incorpórea, informe ou translúcida, que se volatiza numa espécie de “espectro da representação” (em sentido generalíssimo de imagem ou idéia do objeto e/ ou do real). Conforme já observado pela crítica, a conexão Andara - Amazônia se dá em nível próximo da relação Livro - Região estabelecida por dois mestres da literatura brasileira: Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Este último classificava de “metafísico” o sertão por ele recriado, inclusive no seu título mais conhecido, Grande Sertão: Veredas. O mesmo se dá com as alusões do paraense à floresta. Em resumo, as menções a floresta relacionadas ao conceito de Andara podem ser tomadas não apenas como metáfora expandida da Amazônia, mas como alegoria sui generis dos mistérios da Escritura, e veremos mais adiante, desta como um reflexo da história, e principalmente da vida. Compreende-se por alegoria um conjunto de símbolos interrelacionados que embutem enunciados morais em narrativas míticas ou teológicas. No entanto, em virtude da ausência da sentença moral que tradicionalmente a define, alegoria é, ainda, uma classificação limitada. A rigor, no caso específico, o “recurso alegórico” é utilizado para reunir um conjunto de questionamentos filosóficos que resultam na ampla e sutil especulação sobre a vida a partir do Verbo na forma de personagem-região. Diz o autor em entrevista que “Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia” (AZOUGUE, 2005, p. 4). Precisamente, no aspecto semântico-verbal, o nome Andara sintetiza e subentende as primeiras questões. Em O Tempo


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na Narrativa, Benedito Nunes (1988) sustenta que os tempos verbais ultrapassam a divisão pensada pelos gramáticos. As formas do pretérito indicariam locução narrativa ou o próprio tempo da narrativa em função do distanciamento e curso livre que imprimem à linguagem; ao passo que os demais tempos verbais se aplicam a locução discursiva, de comentário. Além de ressaltar, pelo nome, a essência narrativa, o vocábulo também remete diretamente ao verbo Andar, avançar contínuo de passos, progressão. No passado mais que perfeito, o sentido denotativo do movimento concluído carrega ao mesmo tempo, conotativamente, a impressão de continuidade, de fluxo narrativo. Andara como movimento que se inscreve no passado em passos (presente) que levam / ou levaram a frente (futuro). Com o truque semântico, os modos temporais passado, presente e futuro, se unem e ao mesmo tempo se anulam na figura poética, instalando a impressão de simultaneidade, ou da ausência de qualquer tempo. Por isso, Andara, em sua condensação metalingüística, assinala no nome próprio o conceito da narrativa do devir como simultaneidade. A percepção do nome como "movimento suspenso" é também comparável à do “Instante” platônico, que difere do “agora”. Para o grego, o Instante estava fora do tempo e era o interstício entre uma fração de momento e a eternidade: “O Instante parece indicar o que serve de transição entre duas mudanças inversas. A passagem do movimento ao repouso e vice versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imota, nem do movimento que ainda está se movendo. A natureza um pouco estranha do instante está no fato de ser o ponto médio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está parado em direção ao mover-se” (PLATÃO, 2003, p.156).

O tempo simultâneo alude igualmente ao Mito do Eterno Retorno, hipótese de transcendência da noção linear da História. Silencioso como o Paraíso, segundo livro do autor, por exemplo, não tem começo nem fim, cada lado da brochura é um início onde dois “finais” convergem para o centro. No entanto, o narrador, insatisfeito, tenta ir além deste mito fundamental ao se perguntar: “através de Andara não se irá à parte alguma?”. Em outras palavras, no que redundaria o tempo ou o ciclo do tempo, quais os limites da viagem, da vida, da história? O tempo é linear ou cíclico, finito ou eterno? O que é o tempo? O tempo é a imagem movente da eternidade? (PLATÃO, 1972). Em quais pontos da linguagem (verbo) e da memória - refeita constantemente pela linguagem - encontra-se a compreensão da natureza total do Homem? Sobre isso comenta o narrador, misterioso: “Usem a memória. Saibam: a memória, Ela é a Outra literatura [...]” (CECIM, 2001, p. 73). E sobre a indefinição


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ontológico-temporal a qual o nome assinala, resume, ainda enigmático: “a memória é um retorno sobre os mesmos passos, para onde quer que se vá [...]”(CECIM, 2001, p. 73). O poder diretivo e ao mesmo tempo incerto, tênue da memória, é ilustrado num trecho de Silencioso como o Paraíso (CECIM, 1994), que alegoriza as questões supracitadas na dinâmica com os postulados da teoria do Inconsciente. No enredo, um local secreto - “a Festa dos Cabelos Trançados” – é procurado pelos personagens em Andara, permanecendo indefinida a sua localização. À medida que avançam em Andara, tanto os referenciais, quanto os nortes: as certezas, vão se rarefazendo a semelhança de uma busca mística por meio da chamada “via negativa”, que consiste no despojamento progressivo do ego, da matéria, das palavras, em direção a uma “plenitude do tempo”, realização ampla de si próprio ou hipotético encontro com a divindade. O despojamento é experimentado como a própria experiência da morte, que por sua vez é tida como a base simbólica de toda iniciação filosófica... Disse Cecim em entrevista que a Amazônia, por ser Lugar de Natureza, é lugar do sagrado em epifania. Para diversas doutrinas a natureza já foi ou é tida como local da divindade. Para Gaston Bachelard (1989), a floresta é uma espécie de arquétipo da Psique, da Anima. Por isso, sobre a busca pela festa dos cabelos trançados na floresta Andara, podemos traçar um paralelo entre esta procura com a especulação teórica de Carl Jung sobre os limites da Psique: se uma psique meramente onírica, ou se portadora de um “Espírito Universal”. Ou seja, a Psique seria mais vasta a ponto de transcender a si mesma? (JUNG, 2001). Na anímica floresta Andara (Psique) existe uma ponte para a Festa (alma, Espírito Universal)? Em suma, a busca pela festa dos cabelos trançados em Andara simboliza o movimento de busca pela Alma Imortal ou pela supraconsciência. A busca dentro do Tempo e da Memória. Mas não a memória de registro prontamente acessível, mas a memória sutil que se supõe ou se pressente possuir e não se mostra de forma evidente: “Andara, a viagem, ela mesma nunca será escrita diretamente” (CECIM, 2001, p. 13). Apesar das limitações evidentes, Andara é como a ânsia da psique visionária que tenta ver não apenas “à frente”, mas a si mesma em sua totalidade, tal como na citação de Ó Serdespanto, que resume a idéia de plenitude do tempo de São Paulo: “Agora vemos em espelho. Amanhã conhecerei como sou conhecido” (CECIM, 2001, p. 49). Andara e a Festa dos Cabelos Trançados representam a indefinição e a tentativa de arqueologia da Psique em busca de um espaço profundo e mais além do chamado “fluxo da consciência” surrealista, uma técnica imaginativa que apenas revela, revelaria os rudimentos da linguagem e cognitivos do Homem, porém não explicaria a si mesma. Exatamente como disse o


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personagem Hamlet, personagem shakespeariano, o próprio sonho não passa também de uma sobra. A hipotética passagem para a festa em Andara se aproxima do conceito de Reminiscência, de Platão, entendida pelo filósofo como a “Memória da alma imortal do Homem”, que só se mostra sob formas sutis, por exemplo, na escritura e na busca filosófica, pois, para Platão, a busca, assim como a aprendizagem, é uma forma de Reminiscência. Do mesmo modo, enquanto procuram, os personagens de Cecim têm a sensação de estarem na Festa, ou ficam em dúvida quanto a sua existência... Isto é, quando os personagens intuem em Andara a Festa dos Cabelos Trançados, isto é apenas um sonho com a sua abundante e complexa arbitrariedade imagética, os rudimentos e estilhaços de consciência animal, ou uma Reminiscência à maneira platônica? (ver paralelos no capítulo o aspecto onírico na obra). A resposta, assim como a pergunta, fica, por assim dizer, no ar. Mesmo que os personagens não alcancem o caminho para a “Festa em Andara”, ou seja, um desfecho ontológico para os questionamentos, paradoxalmente a festa já existe. Existe como hipótese, porque Andara é a terra das hipóteses. “Aonde a sombra das estrelas viesse se juntar também à sombra de uma dúvida” (CECIM, 2001, p. 81). Um lugar presente-ausente, um ponto metafísico, mas de interrogação. Andara é a aporia da Psique como parte indissociável de todo pensamento que se debruce sobre si mesmo. O inefável mostrado como lugar que existe. E esse inefável, esse lugar, é a própria vida.


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3 ANDARA E AS TRÊS FORMAS TRANSPARENTES 3.1 O VAZIO COMO CHEIO. O NÃO – SER DE ANDARA

Poemas são ânforas cheias de silêncio. Jean Cocteau.

A grande plenitude parece vazia, entretanto o uso constante nunca a esvaziará. O pensamento de Lao Tsé (1993), no Tao Te Ching, aproxima-se do ponto de vista diverso do paraense com relação ao discutido vazio em que redunda a linguagem, seja quando especula sobre a sua própria origem, seja na substancia incerta da poesia. Conforme observamos no título do capítulo, o Vazio é uma das Três Formas Transparentes de Andara, juntamente com o Silêncio e o Invisível. Em entrevista, Cecim comenta querer a palavra Vazio em vez da palavra Nada, dizendo deixar a última “à deriva no ocidente” (CARPINEJAR, 2002). A diferença a que Cecim se refere é que o Nada ocidental como, por exemplo, o existencialista ou o de Martin Heidegger, ainda que fossem tidos também como forma de “presença” se baseavam na experiência da angústia. Em tese e em resumo, o Vazio contrasta com o Nada na medida em que o último é um sinônimo do Não-Ser como obliteração existencial e negação do Ser. Ao passo que no vazio oriental, a exemplo do Tao Te Ching, em O Uso dos Meios, está escrito: “todas as coisas nascem do Ser. O Ser nasce do Não-Ser” (TSÉ, 1993, p. 40). Uma idéia de que não existe obliteração ou dualismo estanque entre ser e não ser, vazio e cheio, mas a hipótese de fluxo e interdependência necessária. Entramos neste ponto em terreno inefável, e no tópico simbólico que o estudioso do imaginário Gilbert Durand batizou de “abstração antifrásica”, ou a “negação da negação”; traço marcante da obra de Cecim, vide a presença da mesma em outras instâncias da obra, e que veremos ao longo dos capítulos, como nos casos da idéia da Queda (X PÁG), e do seu estilo particular de Iconografia Naturalista (PÁGZ). As personagens e as indagações na obra oscilam entre as noções e sensações de nada e vazio. Ora experimentando a Angústia do Nada, como nesse exemplo: “Andara às vezes não é nada. É só uma estrada aonde uma sombra longa de homens, de pó, vai passando “... Ora contemplando e percebendo o nada como vazio (grifo nosso): “Cheio de


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espanto já não persiste em si e se amplia em não-ser. Diz-se disso. Serdespanto caindo para o pó” (CECIM, 2001, p. 104). A despeito das dúvidas na obra, para o autor Vicente Franz Cecim, conforme defende no referido ponto da entrevista, é o vazio e não o nada que circunscreve a vida. Atualmente, mesmo nos círculos científicos é sabido que o lugar do vazio é, também, o lugar da energia. Por isso, os “vales que se enchem graças ao vazio” no Tao Te Ching são da mesma natureza que leva à pergunta desafiadora, quase afirmativa, do livro Ó Serdespanto: “Por que não semear de mãos vazias?” (CECIM, 2001, p. 210).

3.2 O SILÊNCIO: falar sem boca

Silêncio do grão agora. Silêncio humano e vegetal. Enquanto na árvore se abre uma flor de silencio. Vicente Franz Cecim

A Escritura de Cecim tangencia explicitamente com o Silêncio absoluto, nominalmente e nas muitas páginas quase brancas de cada um dos seus livros. É por isso que o Silêncio, junto com o Invisível e o Vazio, é um dos três “pilares transparentes” da obra. A angústia frente ao inominável absurdo, que encontra catarse oblíqua nas palavras, é sugestão constante na obra. A limitação ontológica das palavras se mostra no rumorejar e indagações das personagens e seus sentidos que erram entre conceitos, mostrando quão insuficiente pode ser a linguagem para exprimir o inexprimível, e, ao mesmo tempo indispensável quando se trata de qualquer obra ou vida. No livro Viagem a Andara (CECIM, 1988, p.327), a metáfora “cascas de palavras” expressa a limitação do significante na distância muitas vezes abissal dos significados mais profundos. A palavra também pode ser veículo para transportar interstícios como o silêncio eloqüente, no qual repousaria simbolicamente a essência. Cecim faz menção ao silêncio quando o refere nominalmente ou quando o abarca no todo da espacialidade do texto, com poucas frases esparsas a cada página, e nas quais o silêncio por vezes é um convite palpável e uma dádiva: “Haverá trigo e mel no silêncio do instante se nesses anos nós colhermos em silêncio.” (CECIM, 2001, p. 87). No ensaio filosófico que aborda a capacidade humana ancestral de fabulação mítica, cujo título é Mitologia, o acadêmico português Eudoro de Souza diferencia silêncio de simples ausência de palavras. Para ele, o que chamou de O Grande Silêncio, “está para a


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linguagem como o Ser está para os entes que o ocultam, quando nos entes se revela”. Para Souza (1984, p. 20) “O Grande Silêncio é como a noite cosmogônica, a Grande Matriz da linguagem. A linguagem das múltiplas palavras é a negação-afirmativa do Silêncio- Um como o Mundo das múltiplas coisas é a negação-afirmativa do Um- Deus”. É de acordo com esta noção que Cecim intitula o seu segundo livro de Silencioso como o Paraíso. Isto é, silencioso como antes do pecado original, principalmente, antes da perda da unidade. O caráter ontológico e idílico do silêncio, o rareamento das palavras e a recorrente evocação metafórica ao Grande Silêncio (SOUZA, 1984) são como pegadas na areia em Andara: “Que ela, ave, não seja vítima das víboras deste texto que fez seu ninho entre ruínas de linguagens, que se partem. Em silêncio, ouvem?”. A palavra partida é um refugo da eloqüência una do silêncio. Na palavra há multiplicidade, mas o silêncio é um só. Se tomarmos a metáfora do trecho, a ave, símbolo ascensional, não se quer engolida pelo rumorejar estilhaçado da linguagem. Mas é no texto que a ave faz seu ninho. Além do inevitável paradoxo, a ave é a utopia autoconsciente de transcendência da linguagem na linguagem por meio da compreensão secreta que informa sobre o Grande Silêncio. Ainda com relação às negações negadas (antifrásicas), o silêncio, mesmo quando não nomeado, ou mais diretamente sugerido, pode também se mostrar em outras palavras e coisas, na própria expressão. Na obra, é significativo que haja menos ações e substantivação freqüente (“música do sangue das estrelas”), e um povoamento de imagens, elementos naturais, animais, vegetais e coisas inanimadas, freqüentemente recombinados entre si árvore, estrelas, rio, céu, terra, fogo - simulando um dar lugar, e em alguns casos até mesmo voz, ao que não fala. Ilustrativo disso é a árvore falante de Ó Serdespanto, “de longos braços humanos”. No livro, é o Ser que há na planta a “falar”. O simbólico episódio da árvore falante remete a um poema de Hermann Hesse (1984, p. 12) em que “o sol fala com a luz, a flor com aroma e cores, o ar nos fala com a nuvem, chuva e neve”. Assim como tudo contém a utopia do Grande Silêncio, inclusive as palavras, os silêncios aparentes das coisas também são “falares“ da vida. A pura expressão também é linguagem. A vida é uma linguagem misteriosa, e nesse sentido, forma de linguagem silenciosa. Cecim sintetiza poeticamente a percepção próxima à de Hesse com as expressões: “bichos-caligrafia, Homens-caligrafia, céu-terra caligrafias” (CECIM, 2001, p. 277). No penúltimo trecho de Ó Serdespanto, em “às estrelas: Falar sem boca”, Cecim reforça a percepção da linguagem misteriosa que supera a funcionalidade das palavras, e evoca o espírito da linguagem que há em tudo, e que muitas vezes se mostra por meio do silêncio uno. Diz: “Falar sem boca não é fazer perguntas ou dar respostas e que estas se


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derramam por toda parte, sobre a vida, soterrando a vida” (CECIM, 2001, p. 266). No entanto, ao propor um mundo silencioso nesse sentido preciso, o impasse se lhe advém e pergunta: “Depois dela, quando Ela essa boca passe a existir, quem ainda poderia falar sobre isso?” (CECIM, 2001, p. 270).

3.3 ANDARA: o livro invisível

A harmonia invisível, a visível supera. Heráclito

Se as portas da percepção se abrissem. Nós veríamos o mundo como ele realmente é. William Blake

E O- além- do- real, o invisível? A Pergunta supracitada, do livro Ó Serdespanto, destaca uma idéia associada à obra ceciniana: a condição de invisibilidade. O Livro Invisível é não apenas subtítulo do livro Viagem a Andara, o livro mais festejado de Cecim, mas um conceito-chave da obra total. Na escritura do autor paraense, bem como para algumas teorias místicas, a imaginação do Invisível é algo viável. Contudo quando o assunto é abordado pelo âmbito estritamente conceitual, fica clara a entrada em terreno movediço. Isto porque não nos é dado pensar num “invisível puro” como sugerido. O invisível só pode ser pensado na relação com o visível. A própria palavra é uma derivação da última e, portanto, a imaginação do invisível está contextualizada no visível, na visão, seja para negá-la, seja para declarar a sua insuficiência. Quando Oscar Wilde (1961) escreve em Retrato de Dorian Gray que o mistério do mundo não está no invisível, mas no visível, ressalta esta argumentação que, no entanto, não nega necessariamente a afirmação inversa, pois o que está em questão é um senso peculiar de visão, do "visionário" que é capaz de conceber um invisível que não seja mera ausência de objeto visível, e o objeto visível como Epifania. Wilde apenas situa o problema para o seu contexto irradiador: a visão. Isto também parece validar a observação de Foucault em As Palavras e as Coisas. Para o filósofo francês nenhuma descoberta surge sem que haja um referencial visível para tal, ainda que por vezes difuso. Para ilustrar, Foucault (1999) menciona Paracelso, o alquimista, místico e precursor da ciência moderna, para quem o mistério punha pistas e marcas visíveis na natureza.


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Ainda seguindo o raciocínio de Oscar Wilde, o que se coloca é que a visão é o próprio mistério, pois poder ver não significa compreender ou abarcar o mistério. A visão é percepção sensorial limitada e não compreensão última. Embora seja referencial aparentemente seguro, um sentido valorizado e importante, é superestimado, pois a visão não explica a si mesma e é limitada na compreensão total do mistério da vida. Deus não é a única fantasmagoria cognitiva do homem. É o próprio homem uma fantasmagoria cognitiva... Por isso Cecim entoa “uma espécie de canção de desamparo... E eis a fábula Que se chamasse, se chamaria: todos que olham sem ver” (CECIM, 2001, p. 22). Isto resume a sensação dos personagens, por assim dizer, cientes que estão “cegos” por falta de “vidência”. E apesar da limitação expressa na fala do narrador, o Livro Invisível de Cecim se aferra ao conceito da idéia do Invisível que excede a analogia com a visão a ponto de tornarse imponderável, ou seja, de um invisível enquanto instância em si, e não apenas a configuração de uma ausência ou mero “contrário” da visão. Simbolicamente, portanto, a idéia do Livro Invisível sintetiza a impossibilidade da escritura, o horizonte que Blanchot definiu em seu Livro Por Vir como um fundo de céu que descortinasse o vazio para além dele. O Livro Invisível é a meta, mas ainda que assim se nomeie, contém estes problemas conceituais por que a meta é um limite inefável. Mas a rarefeita Andara é o ponto onde visível e invisível tangenciam-se nas visões e cegueiras próprias a ambos, não existindo, pois, hierarquia evidente entre ambos, como existe, por exemplo, no próprio conceito de Livro Invisível e no mito Hindu de Maya, para o qual o mundo visível é tido como a Grande Ilusão. Em Ó Serdespanto, a hierarquia do invisível sobre o visível do mito hinduísta se mostra, por exemplo, nessa passagem: “Contra esses olhos todos que nós temos em nós, humanos, esses mil olhos que tudo vêem e nada vendo?” (CECIM, 2001, p. 52). Entretanto, se mostra precisamente com uma dúvida. Cecim cita Novalis - um dos seus poetas preferidos- em entrevista: “somente a precariedade dos nossos sentidos nos impede de ver que estamos num mundo feérico”. Aqui, novamente, o invisível em relação à visão. Ainda que seja referência a um mundo mais amplo descortinado pela percepção antes limitada, também está contextualizada com a visão, outra visão, é certo, mas não à ausência de toda visão ou meio de percepção evidente. O livro invisível alude a essa visão, a de um visionário incomum, a de um estranho visionário, que “vê o invisível”, descortina o desconhecido ou o percebe. O Livro Invisível quer, enfim, transcender as limitações da visão meramente óptica. “A vida não é levar as pedras do caminho nos olhos” (CECIM, 2001, p. 238).


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Visível e invisível são entidades da obra, o primeiro figurando com sua ausência presente, e o segundo, com sua presença misteriosa. Os estares de Ó Serdespanto, fluidos, espectrais, são objetos de uma ausência, miragens, e, portanto, dialogam com o mito hindu de Maya. No entanto, o autor, por assim dizer, os retrata, e a partir desta apreensão a visão não se restringe mais a mera mirada sensória. Fabrício Carpinejar escreve no seu Biografia de uma Árvore, como a validar a utopia do Livro Invisível: “até a ausência tem direito a um corpo”

4. O ELEMENTO MÍTICO. A história de Andara não tem fim. O mito não só uma vez precedeu o logos, mas sempre o precede. Eudoro de Souza

4.1 O ETERNO RETORNO, O TEMPO CÍCLICO

O tempo é a imagem movente da eternidade. Platão.

O tempo é meu único contemporâneo. Nietzsche.

Aspecto marcante da obra de Vicente Franz Cecim, as questões sobre o Tempo assumem formas em Andara, como a sintética imagem mítica da serpente Ouróborus. Símbolo alquímico que representa o tempo cíclico e o eterno retorno, a serpente que come a própria calda pode ser encontrada, por exemplo, literalmente ilustrada no centro do livro Silencioso como o Paraíso, selando este ao meio, onde convergem os dois pontos extremos, sem começo e final, de cada metade do livro, reforçando com isso a idéia de continuidade e não linearidade da narrativa. Quem sabe da história? O tema do tempo cíclico também está presente nas referencias à Esfera, pela história de Andara recontada em todos os livros, e por idéias metafísicas como em Viagem a Andara (1988), onde se afirma que “a memória é um retorno sobre os mesmos passos aonde quer que se vá”. Ou em perguntas metafísicas como a lapidar “através de Andara não se irá à parte alguma?”. Cecim menciona a possibilidade do Eterno Retorno na macro-história e na obra, mas também pergunta se não existe nada além da visão perturbadora da repetição infinita,


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uma vez que para o homem não é revelada a verdade, engendrado que se (des) encontra na virtualidade do tempo. Só é lhe dado saber da viagem “entre dois pontos que não existem”. Está sonâmbulo no tempo círculo sem saber qual o propósito do movimento. Tal como o Processo de Kafka, personagens passam o desenrolar da história buscando o sentido de estar sendo “processados”, ou ainda “castigados”, a propósito que a serpente está associada também ao mito do pecado original. Podemos conferir, por exemplo, nessa passagem: “a serpente aprisiona como corda ao corpo” (CECIM, 2001, p. 23). Ou seja, o templo cíclico seria uma espécie de encantamento ou castigo, e os questionamentos incluem como libertar-se disso, do próprio tempo, como transcendê-lo. Independentemente da angústia que o mito levanta, o tempo do eterno retorno é presença nítida de Andara, e as passagens que o referem são constantes, como neste exemplo: “Eu Palavra desconhecida dos homens que dormem, Não sou o dia claro sobre o túmulo de um rei que sobrevive Entre o centeio negro Ainda poderia dizer, sem os lábios que perdi Numa noite de sol, Tudo O que esqueci, se aguardasse a pele nova Da serpente” (CECIM, 2001, p. 200). O sexto verso – poderia dizer sem os lábios que perdi – descreve a consciência que transcenderia a materialidade e deduz-se a própria vida após a morte. Este Eu que é palavra desconhecida dos homens que dormem seria a consciência maior do Eu, para além dos limites humanos, ou a de Deus? Os homens que dormem são os homens que não tem a consciência de que são deuses, ou não conhecem a Verdade, ou não conhecem Deus. Este Eu, é a porção divina do eu, ou um Deus extrínseco que falasse, possivelmente não em forma direta, antes de uma “nova” vida, com “a pele nova da serpente”, a ressurreição divina ou a renovação encerrada na repetição? Para Gilbert Durand no seu As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1997), os “símbolos cíclicos” do tempo são a forma de, pelo simbolismo, dominar o devir, domesticando-o. E polemiza ao afirmar que:

Os arquétipos e esquemas que se polarizam em torno dessa ambição fundamental são tão poderosos que chegam, nas mitologias do progresso, nos messianismos e na filosofia a ser tomados como realidade objetiva, como moeda validada do absoluto e já não como resíduo concretizado de simples estruturas singulares, de simples trajetos da imaginação. (DURAND, 1997, p. 35)

A história se repete incessantemente na forma de pergunta, e tal como na vida, na metamorfose da serpente a história permanece na forma de enigma. Cecim suspende certezas, mostrando os limites de nossa compreensão sobre o enigma do tempo e desta parte ao mesmo tempo tangível e abstrata da vida. Porque a desculpa de Deus é não existir (Nietzsche).


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4.2 O CAMINHO DA SERPENTE de Fernando Pessoa e Vicente Franz Cecim.

Não há paraíso sem serpente. Goethe.

Nesse ponto mostraremos aproximações conceituais entre o Livro Invisível de Vicente Cecim e o projeto místico de Fernando Pessoa O Caminho da Serpente - O livro que o não é. As semelhanças começam com as seguintes premissas. É o “não ser” que escreve ambos os livros, de Pessoa e Cecim. E tal como na obra do poeta português, a serpente assume papel importante na fantasmática ceciniana, dualizando com a asa e formando a díade arquetípica mais importante de Andara. As pesquisas intensas do poeta português sobre matérias herméticas influenciaram as suas convicções sobre a arte, inclusive na sua invenção mais notória, a heteronímia. Esta influência dá-se a ver no espólio do poeta, em fragmentos de ensaios, especialmente nos esboços de O Caminho da Serpente. Nestes Pessoa escreve (CENTENO, 1985, p. 22) sobre a simbologia da serpente: “A sua fuga é o seu mistério. Mas ela não sabe nem do seu mistério nem de todos os mistérios, porque conhece tudo, e conhecer é não existir”. Escreve ainda: “ela não conhece os mistérios, mas os envolve” (CENTENO, 1985, p. 34). De modo semelhante ao verso de Cecim sobre o eterno retorno (tópico anterior) e o transcurso do tempo, a serpente do não – livro de Pessoa é a guardiã do mistério. Pessoa escreve que “a serpente atravessa tudo, satã, Deus, e deixa igualmente a tudo com a pele largada”. Conforme já abordado, a imaginação cíclica suscita polêmicas e impasses, que não roubam, no entanto, o poder de inspiração dos não-livros de Pessoa e Cecim, pois “de cada coisa, ao seu redor na vida, como da serpente que passava, agora ele tira o motivo. E canta”.


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5 O VERBO TRANSCENDENTE. UMA CABALA PARTICULAR

5.1 CONFLUÊNCIAS ENTRE O MITO DE BABEL E O RIO DE HERÁCLITO, OS ESPELHOS, OS OLHOS E OS NÍVEIS DA CRIAÇÃO

E os espelhos são a invenção mais impura. Herberto Helder

Com versos e imagens à maneira de oráculos e axiomas filosóficos, o pensamento sintético é característico do autor, que imprime longos discursos em frases poéticas e períodos relativamente breves, a exemplo do trecho (CECIM, 2001, p. 204.): “Esses rios têm espelhos partidos, e tudo o que foi submerso é um caos perdido”. Veremos que a citação alude às confluências entre Obra – o Mito de Babel, da criação; e obra – de arte, especialmente a escritura. Bem como ao Hermetismo e aos Simulacros platônicos. O rio ceciniano, uma metáfora da vida e do discurso humano, nasce da intertextualidade com Heráclito, o filósofo pré-socrático que utilizou o rio como metáfora icônica da mutabilidade da existência; e se une às demais metáforas: espelho submerso e caos perdido, compondo a impressão particular do autor sobre o contexto da obra literária e da escritura. Por sugestão e metonímia os espelhos representam a imagética e a visão humana, não apenas pelo fato de tecnicamente “refletirem imagens”, mas porque simulam a visão, aludindo com isso às implicações embutidas neste ato. Por essa razão, estudiosos do imaginário como Durand (1997) apontam que, arquetipicamente e em algumas civilizações, o espelho é tido como uma espécie de “objeto mágico”, cujo caráter simbólico está relacionado ao misticismo. Literalmente partidos no rio, os espelhos de Cecim ilustram o aspecto fragmentário e falho dos conceitos e faculdades mencionados, e de um modo mais profundo, do olhar místico e propriedades transcendentes que estes metaforizam. Estendendo a análise, expressam as “possibilidades” da visão mística não diretamente atestável, à semelhança de postulados Herméticos como este: “a luz única e intangível do uno-onipresente acaba por se estilhaçar em múltiplos reflexos por intermédio do prisma do espírito” (BURCKHARDT, 1991, p. 5). Os fragmentos de espelhos refletem, contudo, imagens inteiras. Apesar de “partidos” fazem supor que são partes de um grande espelho, e por isso, na frase subentendem unidade,


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ou derivação difusa de uma “matriz”; tal como o conceito platônico de Idéia, a teoria da existência de espécies, imagens únicas intuíveis – as Idéias, que em tese são modelos excelsos, matrizes perfeitas das coisas existentes – os chamados Simulacros, reflexos truncados, incompletos ou turvos destes modelos. Em Parmênides, contudo, o grego coloca em dúvida a existência de Idéias correspondentes aos elementos naturais (fogo, água e outros), assim como questiona a existência de uma matriz – Idéia – para o Homem. Quando refere o caos perdido, a metáfora de Cecim mostra afinidade com a mesma incerteza. A noção de escritura/Escritura está condensada na metáfora do profundo e vasto (dis) curso do rio (vida). Os espelhos são a metáfora dos olhos e das palavras do Homem, que refletem a opacidade e a translucidez-cega da vida, ou seja, a evidência da vida e da própria língua, mas a obliteração da sua origem, porque estas estão misteriosa e encantatoriamente auto-encerradas: “Porém, os homens esqueceram a tua Voz onde deixaste um espelho” (CECIM, 1988. p. 44). A Escritura está saturada do mistério não desvelado da Origem: Em O Nome de Deus, A teoria da Linguagem e Outros Estudos de Cabala e Mística, Scholen (1999, p. 229) escreve: “Totalidades são transmissíveis somente de forma velada. O Nome de Deus é acessível, mas não pronunciável. Pois somente o fragmentário nele presente torna a língua falável. A verdadeira língua não pode ser falada, não mais do que o concreto absoluto pode ser realizado”

Segundo o Mito de Babel, as palavras são fragmentos esfacelados de Deus. A língua como herança divina truncada é representada pelos fragmentos do espelho que subentendem a Totalidade perdida. O Mito da Origem judaico está intimamente imbricado ao mito da própria linguagem, a ação divina fundadora pela linguagem. E um espelho em certo sentido também se faz ”imagem e semelhança”, como o Homem de Deus. Por isso, na passagem referida da obra, o espelho adquire o simbolismo de um portal virtual inefável, do vislumbre do mistério e da Unidade perdida. Platão, por exemplo, falou a respeito da grandeza e da multiplicidade que podem ser abrangidas com um único olhar: “o que faz supor que o grande é uno”. Emersos, os espelhos refletem o firmamento e o apreendem como horizonte-limite, ultra-exterior. Imersos, refletem as águas, a vida submersa, ultra- interior. Os que refletem a vida (o rio) têm o foco na imanência, e os que refletem o firmamento, na transcendência. Mas sob determinada ótica são dois lados de um


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mesmo enigma, e apenas focos. A metafísica vira, então, miragem, porque o “olhar” do espelho é virtual. Reproduz a visão, mas não “vê” em sentido literal. A frase total de Cecim, tal como na Cabala, tem “expressividade enigmática” (SCHOLEN, 1999, p. 224), haja vista que “O alegórico pode ser sempre expresso por um modo diferente, é sempre traduzível, sempre relacionável a outra coisa existente no mundo. Os símbolos numa compreensão mais exata dizem respeito aos fatos que se revelam e comunicam não em si mesmos, mas exclusivamente na transparência em outros objetos, em outros fatos. Os símbolos não podem ser traduzidos. Eles expressam algo que não é exprimível, que se esquiva da comunicação lingüística em forma direta... E um simbolista, nesse sentido exato, é uma pessoa para a qual o mundo se torna transparente em sua interioridade fechada”. (SCHOLEN, 1999, p. 73).

A implicação da imagem simbólica é um dos aspectos mais importantes da obra de Cecim. Como na pintura zen, ou na linguagem mítica, uma imagem sugere cosmogonias. No rio de Ó Serdespanto, vê-se a ilustração dos dois aspectos referidos por Scholen (1999): o simbólico e o alegórico. O componente alegórico do rio de espelhos é utilizado para refletir nos diversos primas sobre a essência simbólica da vida. Afinal, dentro do (dis) curso do rio, há o “transcurso” dos espelhos:

Interstício entre o texto primeiro e o infinito da interpretação. Fala-se sobre o fundo de uma escrita que se incorpora ao mundo; fala-se infinitamente sobre ela, e cada um de seus signos torna-se, por sua vez, escrita para novos discursos, mas cada discurso se endereça a essa primeira escrita, cujo retorno, ao mesmo tempo que promete, desvia (FOUCAULD, 1999, p. 57).

Portanto, a frase de Cecim levanta questões em torno da leitura e exegese das Escrituras Sagradas ou ainda do mito da origem da linguagem, e sua derivada mundana, secularizada, a escritura poética. Para os místicos e poetas “simbolistas” (na acepção de Scholen), uma Escritura não é apenas alegoria, embora assim se apresente sob determinada ótica. O rio é a alegoria da vida, mas a vida está prenhe de espelhos, isto é, de símbolos que se esquivam de uma compreensão direta e última. Citando a Torá, Scholen (1999) menciona que a mística judaica vê nas Escrituras (e aqui mais uma correspondência com o rio de espelhos) “a luz resplandecente, infinitamente multifacetada, na riqueza de sentidos infinitos, que agora possibilita a descoberta de novos níveis de significado, a introvisão simbólica nos segredos do ser divino” (SCHOLEN, 1999, p. 74).


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Comumente definido “escritor hermético”, xamã da literatura brasileira, cabe, porém, evitar o equívoco de uma interpretação de cunho místico literal da obra, que é, sobretudo, heterodoxa, revisitando as questões existenciais básicas: de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Em entrevista Cecim menciona a diferença fundamental entre “artistas que praticam a arqueologia da história da arte” daqueles que “praticam a arqueologia da própria vida”. O rio de espelhos partidos exemplifica a segunda categoria. Acerca do problema da leitura na escritura poética, o rio de espelhos também metaforiza a fluidez da interpretação possibilitada em textos desta natureza radicalmente diversa. Os espelhos (da obra) no qual se miram os leitores podem alterar a percepção total da obra. O rio de espelhos com sua introvisão é tão poderoso e exuberante quanto (o mito grego de) Argos, o rei que possuía “cem olhos”, dos quais, alternadamente cinqüenta se conservavam abertos, enquanto o restante repousava, e, que por uso indevido destes sentidos, Hermes, o mensageiro dos deuses, sob ordem do deus supremo, os transformou em “olhos” da calda de um pavão. Como que a dialogar com este mito e retomar as questões do rio de espelhos, pergunta o narrador a si e aos leitores: “São esses mil olhos que tudo vêem e nada vendo?” (CECIM, 2001, p. 52).

5.2 OS SIMULACROS. Na penumbra Andara, diálogo com sombras. 1

Os nomes das coisas são pedras nas sombras. Vicente Cecim.

No presente contexto designamos “simulacros” às palavras e as sugestões na obra a um pensamento, palavra ou forma de linguagem na sua impossibilidade de transcendência. O conceito de simulacro no sentido literal de cópia imperfeita, deriva da hipótese filosófica da Idéia de Platão: suposição de existência de uma espécie única intuível e perfeita na multiplicidade de objetos. Aristóteles, que impôs outro paradigma, negava da teoria da Idéia platônica a “unicidade e o valor”, mas reafirmava-lhe o sentido de essência, de substrato. A segunda é uma perspectiva telúrica, sensível, enquanto que a primeira é do domínio do inteligível e do transcendente. Cecim pensa a palavra como simulacro, posto que esta, quando quer transcender a si própria ou encontrar sua essência própria esbarra na sua dimensão limitada. A sombra é a metáfora principal deste pensamento. Na virtual semelhança com a Palavra – a hipotética transcendência, as palavras turvam-se e não informam sobre a sua própria origem. “Os


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homens procuram a tua voz onde deixaste um espelho” (CECIM, 1988, p. 44). A aspiração pela Palavra, que é substituída pela noção de simulacro, é onipresente em Ó Serdespanto: “O nome do Nome Um dia passou coberto de eras, Sem haver vindo Quando vier o tempo bom renascerá da semente o Bosque sem paixões O nome do fruto eu não digo Tu não dizes O nome do fruto O nome do fruto nenhum de nós dirá Bosque sem paixões [...]” (CECIM, 2001, p. 224).

A idéia de simulacros é substituída pelas metáforas sombra, coberto, cascas. Coberto de heras, coberto de sombras, cascas (de palavras), alienado no próprio espelho, envolto em neblinas, brumas... As metáforas de simulacros compõem, juntas, uma espécie de tautologia da tentativa de superar a palavra. Por isso escreve mais adiante:

A palavra Palavra não grita o nome das palavras cravado nos lábios durante o sacrifício. Longo leito de areia para ti também lá o centeio negro não é o Centeio Negro. O centeio branco não é o Centeio Branco. Lábios não se abrem pra nós dizer o nome da árvore, o nome Do homem, o nome Daquilo que um dia virá Sem achar o caminho da voz Que dirá o nome da Árvore, o nome Da Estrela, o nome Daquele que ainda não veio, E está passando coberto de heras, O Nome [...]. (CECIM, 2001, 225).

No último trecho de “Lua dos que choram”, escreve: “má sorte é ter nascido sem saber jogar com as sombras melhor será dormir abraçado às garras de um deus” ou ainda “e é um sonho ser um homem até os ossos e suas canções do corpo que nenhum ouvido ouve que nenhuma boca canta ou só a boca de uma sombra cantará”. (CECIM, 2001, p. 125). Além da palavra, também encontramos a imagem do próprio homem como simulacro, tentando enlevar-se, e a consciência da limitação mundana: “O homem de pó deixou a sua sombra na estrada” (CECIM, 2001, p. 253). “Música com sombras. Porque te vestes de sombra é que eu te espero onde os dias morrem para sempre Escuta é a voz humana Essa areia sufocada em tua garganta: isso, a areia Soprada por um vento, É a coisa que os homens chamam a voz humana A nossa voz Ah Dela, nada dizer calar na bruma Porque tu vestes de sombra” (CECIM, 2001, p. 233). E ainda em Música das estrelas, finaliza: “não é a voz humana, nem ao menos murmurando” (CECIM, 2001, p. 235).


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5.3 CECIM E A ICONOGRAFIA NATURALISTA

A prosa poética de Vicente Cecim apresenta objetos e elementos naturais de modo profundo e muito particular... Primeiramente, há pouca ou nenhuma menção a artefatos, exceto pela referência ao “livro”. No cenário de Ó Serdespanto, os elementos apontados são em sua grande maioria naturais:..animais, vegetais, minerais, cósmicos. Mas ao contrário do descritivismo da natureza morta e do paisagismo, encontramos uma natureza pulsante, tal como na natureza divinizada do paganismo ou na concepção de Iconografia Naturalista. Termo cunhado por Gilbert Duran, a Iconografia Naturalista é definida pelo retratar de um dado objeto de forma aparentemente naturalista, mas com tal força expressiva que revela e subverte a mera descrição naturalista. Os objetos são retratados de modo a evidenciar imanências e seus sentidos insólitos subjacentes. No exemplo dado por Durand, o estranhamento proporcionado por Vicent Van Gogh com uma simples cadeira, um quarto prosaico ou um ramo de girassóis. Este recurso, ainda segundo Durand (1997, p. 277): “conta mais com a intensidade expressiva do que com a vastidão decorativa”. A herança da “iconografia naturalista” remonta aos monges budistas e sua reflexão pictórica sobre, principalmente, paisagens. Para os monges este tipo de pintura refletia eloqüências profundas que a própria imagem dava a ver, sentir, saber. Refletidas através deste tipo de olhar e contemplação “demorada”, as imagens são, paradoxalmente, naturalistas e enigmáticas (ícone). Durand sublinha que este tipo de minimalismo está impregnado de intenções antifrásicas1, numa definição poética, pretende dar a ver o universo no grão de areia. Os exemplos citados por Durand (1997) de iconografia naturalista são a pintura dos monges e os jardins em miniatura feitos pelos orientais (ikebanas), porém adaptamos o conceito pela semelhança com a simbologia do texto ceciniano. Certamente, para cada uma das formas, pintura e escrita, o efeito obtido para não é idêntico, uma vez que mesmo isolando objetos na narrativa à 1

Pode falar-se também de antífrase quando se tenta atenuar uma idéia negativa, utilizando palavras mais optimistas. Na Grécia antiga, as Fúrias eram designadas por Euménides, isto é, “benévolas”. Exemplo semelhante registra-se na história nacional com a antífrase de D. João II, quando mudou o nome do Cabo das Tormentas para Cabo da Boa Esperança. Esta acepção da antífrase pode fazê-la confundir com o eufemismo. A diferença está em que a antífrase exagera o eufemismo quando inverte o sentido original das palavras (CEIA, 2005).


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maneira de uma partitura imagética (como o faz Cecim), os elementos e objetos quando combinados não podem ser “cristalizados” da mesma maneira que na pintura em função do fluxo narrativo. A iconografia naturalista, portanto, se dá no fio narrativo, se encontra em cada contextura, palavra ou imagem do texto. Em “Ó Serdespanto” existem as expressões ossos de textos e Minérios e Memórias, isto é, metáforas do pensamento essencial e o que há de universal e altamente significativo nos signos, não da simples redução de elementos na espacialidade do texto, um minimalismo, mas da volta ao essencial, um retorno aos símbolos atávicos, àqueles que o psicanalista austríaco Carl Jung chamou de “arquétipos” e que veremos a seguir.

5.3.1 A ICONOGRAFIA NATURALISTA, UMA EXEGESE ARQUETÍPICA. “As palavras que aparecem mais amiúde num texto delatam a obsessão do poeta” (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, 1991, p. 12). Tomando de empréstimo a percepção precisa de Charles Baudelaire, demonstraremos as palavras chave da obra para desvendá-la mais um pouco, na sua microestrutura que é a palavra. Em razão da influência dos mitos na obra ceciniana, baseamo-nos na classificação de arquétipos e estudo do imaginário, de Gilbert Durand (1997), e a partir do referido enfoque listaremos as imagens de maior ocorrência na obra com os seus sentidos genéricos correspondentes. Em destaque na obra de Cecim a ampla presença dos símbolos ascensionais: a montanha, a ave, o pássaro, as asas, que constituem, pela metonímia, o anjo e não o pássaro. Da pureza, os correlatos: céu, a luz, o sol, o vento, as estrelas e a água. O pó, o sangue, as cinzas, os ossos, a carne (a “carne de sonhos”, “Serdespanto caindo para o pó”), representam a corporeidade finita e o tempo terreno. As limitações corpóreas também estão nas ocorrências constantes da sombra e da pedra. E do tempo, considerado mais abstratamente, nas figuras do deserto, da areia, da semente, do fruto e da noite. Imagens místicas, metafísicas ou do mistério: a serpente, a esfera, os olhos, o lago, o espelho, a noite. Do sagrado: a voz, a fonte. E os adjetivos: a alvura, o mal, o negro, o alto, o altíssimo, também são arquétipos de cosmicidade.


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6 “ÀS FLORES VISIONÁRIAS DO AR”

6.1 ANDARA E O SEM-DISTÂNCIA

A cosicidade do vaso não reside, de modo nenhum, na maneira de que ele consiste, mas no vazio que contém. Martin Heidegger

Em Ó Serdespanto um homem experimenta ao longo de um caminho a própria “carne tão próxima e mais distante do que as estrelas”. No trecho seguinte inscreve-se a possível complementação da imagem: “um céu de carne”. Na percepção do ser enquanto linguagemespaço e relativização das noções de proximidade e distância, encontramos proximidades com Martin Heidegger. Em toda a sua obra, o filósofo alemão concebe o espaço em sua vinculação ontológica com a noção de lugar, considerando este último em sentido mais tangível, de lugares originários do mundo: a ponte, a casa, a poesia, a jarra. Para ele o pensamento do Ser era também um pensamento do espaço. Não no sentido da “criação de um espaço” pelo ser, mas do espaço como resultado da “conformação do ser no seio da facticidade de um lugar”. Entretanto, o “Desein Heideggeriano, literalmente, o “ser-aí”, jamais se encontra dentro ou fora de algum lugar, mas ele mesmo espacializa. Rompe as fronteiras entre dentro e fora e é ele mesmo esta abertura (PÁDUA, 2008). Assim como a noção do tempo não é apenas cronológica, mas também psicológica, a relação do Desein com os lugares não é delimitada apenas no que toca a “mensuração” de distâncias e proximidades, ou conteúdos e continentes, porque o ser, na dinâmica com os lugares os converte em “espaço” próprio, ele mesmo espacializa. As supracitadas passagens de “Ó Serdespanto” expressam um sentido próximo ao pensamento Heideggeriano posto que é o ser que está no eixo das espacialidades, no caso, de céu e corpo. A figura poética não tem conotação de “criação de um espaço”, do espaço céu de carne, um “terceiro lugar”, mas traduz poeticamente o sentido do desein, o ser-aí. No entanto, o espaço heideggeriano corresponde ao que existe de "fechado e prontamente reconhecível dentro da referencialidade, familiaridade do mundo”. Por isso, devido a presença do impasse metafórico de topografia ou corporalidade oblíqua – corpo


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próximo e mais distante do que as estrelas – a idéia se aproxima ainda mais adequadamente do conceito de “Sem-Distância” do filósofo, que pergunta: “[...] que se passa, então se, ao suprimir as grandes distâncias, tudo ficar igualmente próximo e igualmente longínquo? Que é este equiforme (gleichforming) em que tudo, não estando nem perto nem longe, é por assim dizer, sem-distância?” (SOUZA, 1984, p. 54). E discorrendo sobre este estranho estado de além-aquém da percepção no qual “tudo flutua juntamente”, indaga o equiforme -semdistância “não é ainda mais terrível do que uma interfissura de todas as coisas?” (SOUZA, 1984, p. 54). Na frase de Cecim um hiato flutuante “une” os extremos cabeça/céu; narrador/narrativa; carne/céu- estrelas. Na flutuação desta topografia-atópica, o personagem Serdespanto, como o próprio nome sugere, habita simultaneamente cindido e ciente da sua cosmicidade, o ser-aí que “encontra as estrelas”. Ou seja, a anteriormente ilustrada permeabilidade espacial do ser-aí, na visão poética torna-se a própria armadilha, encontra (barreiras para) a transcendência no espaço. O corpo da personagem, podemos dizer, que também assume o papel da Coisa heideggeriana, isto é, algo que contém um lugar ou lugares. A carne ou corpo contém o céu e as estrelas, e o caminho pelo qual anda o homem, é como a imagem da ponte heideggeriana que reúne homem e firmamento. E a poesia a todos estes espaços... Como a maioria dos personagens em Andara, as citações expressam um buscador cindido em saga mística não satisfeita. A impressão é reafirmada na frase “corpo com estrelas apagadas” (CECIM, 2001, p. 42). Estas passagens contrastam com o verso da escritora Hilda Hilst (2002): “E o peito era maior do que o céu aberto”; sobre o sentimento – peito, preenchimento, íntimo – de integração cósmica, ou mesmo da experiência do amor tornado transcendente. A imagem de Hilst é virtualmente “centrípeta” e leve, enquanto que a personagem de Ó Serdespanto teme ou aspira a transcendência no espaço que resulta atópica. Em outras palavras, neste episódio de Ó Serdespanto não é consumada a Unio Mystica expressa por Hilst. A personagem, ao contrário, demonstra a percepção do “equiforme-semdistância” a que está submetida, uma vez que (ainda citando A Coisa do filósofo alemão): “Pequena distância ainda não é proximidade. Grande distância ainda não é lonjura” (SOUZA, 1984, p. 250). A despeito da não consumação da Unio Mystica, a personagem ceciniana "sentepercebe" as fronteiras e ligações inefáveis entre si e o cosmos, entre ser e entorno, no limite em que os espaços (não) permitem. Para Heidegger o limite do espaço não era o extremo ou o fim, mas o início, a origem, o começo da essência. Mas o cosmos no corpo, simbolicamente o


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ir além do ser-aí, na matéria da personagem é um holograma, percebido apenas em sentido metafísico cognitivo, daí a menção à cabeça, em contraste ao peito do verso de Hilst. Em Psicologia e Religião Oriental, Carl Jung (2001) comenta que o materialismo não passa de outro nome utilizado para designar o princípio supremo da existência. Ao desconstruir o conceito de materialismo, Jung pondera que o paradigma cientificista que fetichiza a matéria, e a coloca como alicerce e princípio de tudo, é, na verdade, apenas uma fronteira ou base formal para o insondável mistério da existência. Em Cecim encontra-se a tradução poética: a carne tão próxima e mais distante do que as estrelas. Mais adiante, em Para Obter Um Animal Sem Asas, em mais uma combinação metafórica de distâncias externas- internas (Horizonte-Sonho), os céus (cosmos) desabam como conseqüência aterradora da percepção total, mas ainda permanece um centro, o eixo sutil do ser que a tudo reúne. “E ainda mais vasto que os desmoronamentos do céu, sempre vemos em nossos sonhos horizonte e olhar severo olha pra dentro: o lapso distante” (CECIM, 2001, p. 236).

6.2 A FACE ONÍRICA DE ANDARA- APROXIMAÇÕES COM RENÉ MAGRITTE

Sonhar. Aí está o obstáculo. Hamlet. Willian Shakespeare Sonhar é acordar-se para dentro. Mário Quintana

Denomina-se onírica a faculdade de sonhar, a construção de imagens pelo Inconsciente. O tema se ampliou a partir dos estudos da Psicanálise e da experiência Surrealista, contudo, abordaremos apenas um recorte do mesmo: as semelhanças entre a imagética ceciniana e a do pintor René Magritte, um surrealista sui generis. No Manifesto Surrealista, André Breton defende, sem concessões e radicalmente, a livre expressão das motivações inconscientes sobre a “racionalidade burguesa”. O preceito, contudo, tem uma contradição inerente, uma vez que pela própria conceituação só pode haver “arte” se deliberada, também, pela consciência, mesmo que através da especulação de um “imaginário puro”. Salvador Dali definiu a questão brilhantemente ao comentar que a única diferença entre ele e um louco é que ele não era louco.


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Ainda que o Surrealismo pretenda a não-interferência da consciência, seja com a escrita automática, seja por meio de manifestações pictóricas ou performáticas supostamente literais de fenômenos do Inconsciente, a interferência se dá, no mínimo, com o reconhecimento de tais processos de forma extrínseca ao sonho, isto é, no uso da técnica (pictórica, literária) que reproduz as imagens oníricas. A transposição em arte requer mediação da consciência, e mesmo quando fiel às imagens, o processo de feitura e reflexão posterior ao ato da criação as transformaria em coisa distinta do inconsciente puro. Ou seja, do próprio postulado surrealista. Apesar de nitidamente influenciado pelo Surrealismo, Cecim enfatiza a contradição por vezes questionando a validade ampla das visões oníricas pela voz das personagens. O sonho impera, mas dele é questionada a natureza e o sonho é posto como ilusão possível em Andara. Em passagem de Ó Serdespanto, por exemplo, mencionam-se as “possibilidades absolutas da Esfera”, imagem grandiosa que reuniria a tudo no Uno. Comentando a imagem metafísica problematizada por Plotino e outros pensadores, o narrador indaga: “quem sabe é apenas um sonho em que me sonho na Esfera?” (CECIM, 2001, p. 186). Perguntando se as visões do Uno, ou de transcendência são apenas sonho, o sonho é contraposto a (também hipotética existência da) Verdade. Na pergunta se o sonho seria apenas uma ilusão, a tentativa é de libertar-se da aparente arbitrariedade do mesmo, nos quais restos de imagens, muitas vezes desconexas, ecoam sem dizer da sua origem para além do Homem truncado. Na obra de William Shakespeare consta a famosa citação de que somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Mas é ele mesmo quem complementa na afirmação em Hamlet: Sonhar. Aí está o obstáculo. Em Ó Serdespanto, o que predomina é a especulação filosófica sobre o mistério da Psique, e sobre a interdependência dos conceitos de “sonho” e “realidade”, um em relação ao outro. A realidade considerada consensual é, pode ser também um sonho, uma ilusão? O sonho é mais real ou outra forma de realidade paralela? Tudo é sonho? O que é afinal a realidade? Qual a Verdade para além da ilusão? Não existe Verdade? A despeito de todas essas dúvidas, Cecim afirma em seu Manifesto Curau: Flagrados em Delito Contra a Noite, de 1983: É preciso tocar o calcanhar de Aquiles do real. Lá onde ele é sensível espera impaciente o acontecimento total que o transfigure. Ou seja, a chave do mistério está não num caminho fácil para o sonho, mas num ponto oculto e nevrálgico da própria realidade (no sentido fenomenológico), na qual o sonho também se encontra.


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Quando o escritor, considerado onírico pela maioria dos críticos, levanta as questões acima, aproxima-se do infant terrible “surrealista” René Magritte (1898-1967), o pintor belga que, rompendo com os dogmas surrealistas, nos deixou imagens “ilusionistas” de teor filosófico. Questionado sobre se suas pinturas eram surrealistas, o belga respondeu que pintava o resultado dos seus pensamentos. Pensamentos como sonhos despertos, ou sonhos que se auto-questionam. Um estudioso observou que Magritte produzia “palavras-pintadas”. Cecim produz “paisagens-escritas”. Das duas maneiras a imagem está associada à busca de um sentido metafísico, especulativo, não ao circunscrito propósito da catarse onírica. Na história da pintura isto remonta conceitualmente ao precursor do Surrealismo e maior influência de Magritte, o pintor de sombras George de Chirico, cujo estilo é definido como “metafísico”. Cecim sublinha a imagética que subjaz na mente humana, do sonho como realidade impalpável, e do real como epifania, não o onírico historicamente circunscrito (surrealista ou fantástico). Para o escritor Inconsciente e Consciente, sonho e realidade, são duas faces de um mesmo e belo enigma.

6.3 A ANTÍFRASE E OS ABSOLUTOS

Escreve com sangue que verás que sangue é espírito. Nietzsche

Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim. E é assim que tu verás um S nesses dias cegos. A frase de Cecim, extraída da epígrafe de Viagem a Andara, postula um descobrimento afirmativo para a vida a despeito da evidência da morte. Chegar ao Sim nesse contexto é a negação da negativa da morte. Esta antífrase é como um axioma da obra total, pois resume a vocação de Andara de ser lugar de concepções do Absoluto, e de “não ter fim”. Além da frase axial da obra, estão presentes em Andara noções distintas do Absoluto e é esta fusão que a define. Além do Absoluto próprio do autor, resultante da soma de suas referencias, e que se encerra no nome Andara, encontramos citações diretas de teóricos do absoluto, algumas delas nominais. Caso de Mestre Echkart (1260-1328), o teólogo medieval que ficou conhecido por fundir Teologia Ocidental e Budismo. Outro exemplo, o racionalista Imanuel Kant, também faz sua “aparição” como uma ave em Andara com as suas “duas formas puras de intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori: “O espaço e o tempo” (CECIM, 2001, p.


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57). E noutra passagem menciona-se “as razões puras Kantianas – Belas aves de pedra sob o céu de Andara (CECIM, 2001, p. 52). As diferentes noções de absoluto de Mestre Echkart e Kant, se encontram em Andara com o absoluto trancendente pessoal cristão, onde Deus não é nomeado, mas está implícito nas menções ao Pai, ao Verbo e outros símbolos bíblicos. Como neste exemplo: “[...] para encontrar lá no alto outro homem como ele. Disse disso: espelho do pai e do filho” (CECIM, 2001, p. 35). A Imagem e Semelhança bíblica na citação também implica um dado biográfico. A frase, que trata da morte e seu desenrolar seguida de ressurreição faz alusão a morte do filho de Vicente Cecim, Franz, cujo nome o autor adotou posteriormente ao fato. Em entrevista e por seus relatos, Cecim comenta acreditar que a incorporação do nome do filho é uma forma de metonímia mágica, e que com o ato, o filho passara a viver no escritor a partir de então, de uma forma que se assemelha ao cabalismo da magia pelo nome: “o V que vela o caminho para o Eu grande, e um Z que zela o caminho para o Eu pequeno”. Outra forma de absoluto, nesse caso pela palavra. O Absoluto racionalista, o absoluto pessoal transcendente judaico-cristão, a magia pelo nome, também podemos encontrar a imanência budista, e a epifania poética que tudo amalgama. A errância espiritualista é uma das marcas mais fortes e o estado que a tudo reúne: “Pois é o Eu vendo O Eu na vida vivendo Que cessa a luta dos Eus, Entre asas negras e brancas O Eu grande e o eu pequeno Se unem no Eu um, E um Que é ex-sou serei sido sendo Sendo Lá sido Aqui foi onde fluí, e não fui” (CECIM, 2001, p. 112).

A idéia de absoluto também se evidencia em Andara pela quantidade de arquétipos cósmicos (ver no capítulo a Exegese Arquetípica), e pelas palavras em letra maiúscula que subentendem Idéia platônica. E pelo constelado corpo do livro como firmamento, que se projeta no cosmo e no absoluto: “Enquanto a noite cai sobre Andara. E estrelas bem altas negando o céu negro vão surgindo. É lá onde o humano não é mais o humano”. Apesar da quase ânsia pelo absoluto, a dúvida existencial é outra onipresença em Andara, que ainda se mantém “firme na pedra de sermos”: “E o que é, hein, lá entre as estrelas? E aqui, o que é, hein”.


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6.4 SIMULTANEIDADE: a origem

A voz existe a noite sagrada e nela eu estou, no fundo dos céus que não existem como uma criança em seu berço velado velando Do fundo dos céus, do fundo da noite sagrada que não é noite eu cintilo A luz Que envolve e anima a vida. Eu sou a origem. Eu estou lá na origem de tudo. (CECIM, 2001, p. 109)

Os versos de A voz remetem a simulação do pensamento de uma divindade criadora, paradoxalmente cônscia e alheia a si (do fundo da noite sagrada eu cintilo), tal como na concepção oriental de ser divino. E de modo mais direto, é a metáfora da criação artística através do prisma do devir. Em A Voz a criação artística tem caráter subjetivo, e dá vazão a um mundo material em parte inconsciente, como uma criança prenhe de vida, velada, velando. Mas igualmente assume um caráter sagrado, pois a criança que “vela” é uma referência não literal a Jesus como “o filho de Deus”, ou seja, é a metáfora de uma centelha da divindade representada pela idéia do(s) filho(s) de Deus e do ser divino. Com estes versos metalingüísticos de viés metafísico, Cecim sustenta poeticamente que o ato de criar e o mito da Criação não apenas se espelham, mas “se tocam” por razões misteriosas. É nesse momento ou a partir desta percepção que acontece a narrativa do devir, em que a criação mimetiza a Criação, que está sempre se dando (Eu, aqui, estou lá), “como uma criança em seu berço”. Um tipo de Eu privilegiado - seja ele o Eu superior oriental, seja o Deus ocidental, a metáfora da criação que quer transcender-se ou do próprio criador cônscio de todas essas possibilidades - está no aqui, no instante do verso, que se presentifica na dimensão do texto, ao mesmo tempo estando lá na origem de tudo. A percepção aproxima-se do conceito de Instante de Soren Kierkergaard, que o considerava “a inserção subitânea da eternidade no tempo”. De modo parecido Platão entendia o Instante como interstício entre o agora e a eternidade. Sem conotação religiosa o Instante também foi tomado como forma de absoluto por outros pensadores como Jaspers (ABBAGNANO, 2000). A Voz resume que a experiência da criação, no instante em que se dá, é uma forma de absoluto.


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Maurice Blanchot (1984) define o que chamou de Narrativa Pura como um tocar um céu que descortinasse o vazio além das estrelas. Cecim escreve de modo similar: “Eu estou lá no fundo dos céus, que não existem”. O absoluto do eu do criador aparentemente sem um Deus (céus que não existem), mas sendo por isso o seu próprio deus, ou o deus nada por que não pode ser verbalizado. Cecim em entrevista comenta “no início era o verbo. O verbo está em nós. Não nós que estamos nele” (CARPINEJAR, 2002, p. 5). A consciência da dimensão mítica e/ou sagrada da palavra quando capturada em pleno ato da criação tece o verso A voz. A palavra é um mistério que está em nós, permanecendo um mistério, mas que quando evocada reproduz o momento de sua Criação misteriosa. Portanto, em A Voz, não há o apenas a menção ao mito da palavra divina, mas como esta se dá pelo prisma do Instante ou da simultaneidade. Disse um estudioso do budismo (TOKUDA, 1989) que Deus criou o mundo, mas que o criou está no passado, e que, na verdade, ele está criando agora, nesse momento: a criação está sempre se dando. E completa à maneira de Heráclito: tudo vai mudando sempre: isto é criar. Por isso, o verso A Voz sugere que a criação artística remete de forma vívida ou ritual ao momento da Criação que está sempre se dando.

6.5 A QUEDA: além do homem hiperbólico

Morrer é mudar de corpo como os atores mudam de roupa. Plotino Deus não é o princípio, nem o fim, é sempre o meio. Clarice Lispector O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua queda que irá descobrir sua leveza. Vicente Franz Cecim.

O mito da Queda de Adão do paraíso, que transforma o Homem em mortal, é o ponto de partida para a imaginação da Queda na obra de Cecim, que ganha sentido mais complexo que o castigo divino per se, posto que é tomada como forma de ascensão (adquirir asas). A figura de linguagem da Queda ceciniana é um oxímoro, figura poética que ultrapassa a antítese, unindo mais intimamente que esta última duas sentenças díspares, a fim


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de revelar que a conciliação de contrários é possível, por vezes indispensável para exprimir a verdade. Este recurso permite ”intensificar, ainda mais do que a antítese, a junção paradoxal”, e o confronto na força expressiva desperta o efeito epigramático (CEIA, 2005). Esta imaginação específica da Queda, além de aludir ao mito bíblico, faz menção ao pensamento hermético clássico - o que está embaixo é como o que está em cima, uma vez que possui conotação, por assim dizer, de “ascensão invertida”, queda como meio de ascensão. Diferentemente, por exemplo, da idéia maniqueísta de “Homem Hiperbólico” de Charles Baudelaire (FRIEDRICH, 1991), que habita na tensão entre extremos, sagrado e profano, ascensão e queda (Deus e Satã). Baudelaire defendia que era necessário dar vazão ao aspecto das paixões terrenas, “satânicas”, esgotando-as para “dar lugar” ao sagrado. O homem hiperbólico precisaria esgotar um para atingir o outro. Cecim, por sua vez, seguindo o mesmo raciocínio, pelo lado avesso, sublinha o lado divino por meio da figura da Queda. Deixar-se cair é poder vivenciar a experiência da Queda adâmica mítica, quando da ocasião da simbólica punição, mas na mesma proporção elevar-se como um Titã Prometeu – que roubou o fogo sagrado para dá-lo aos homens. Se auto-imputar a punição é iniciar a redenção, e ousar assumir o lado humano como valor à parte, também sagrado. “Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco, lançando sobre ele clarões e sombras para que finalmente veja: A terra lá no alto, o céu embaixo de si [...]” (CARPINEJAR, 2002, p. 7). A Queda de Andara é forma de absoluto negativo e entre-mundos simbólico. Imaginação do ponto ou lastro de intersecção dos antípodas. A Queda do castigo se converte em re-experimentar a Queda primordial, responsável pelo lampejo da consciência sagrada (entre “clarões e sombras”). Cair deliberadamente representa a entrega radical a vida ou a morte. Alquimia de polaridades não estanques, imaginação da imanência, encerrada dentro de transcendências inauditas, uma vez que o movimento da Queda é apenas o que é dado saber de um contexto maior, além de. A Queda primordial, portanto, torna-se fundamento alegórico da existência e parte do movimento vital. A metáfora da Queda ceciniana não está entre o preto e o branco, maniqueísta, mas na infinita gama de matizes do cinza, que se propagam e espraiam transparentes até os respectivos extremos, os quais, de acordo com a figura do oximoro se anulam mutuamente. Por tais características, pode ser definida como um “símbolo de inversão” que, segundo Durand (1997), é todo símbolo que representa o “abandono do regime da antítese”: “Essas imagens conservam, apesar da forte intenção de antífrase, um traço de sua origem terrificante ou, pelo contrário, anastomosam-se curiosamente às antíteses imaginadas pela ascese


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diairética” (DURAND, 1997, p. 51). Os símbolos de inversão, de acordo com esta classificação, pertencem ao Regime Noturno da Imagem, categoria que compreende os símbolos de fusão, imaginações microcósmicas, antifrásicas, e de imanência, enquanto que o Regime Diurno compreende antíteses, dualismos, símbolos de transcendência, paradoxos. Durand se refere aos símbolos de inversão como pertencentes ao Regime Noturno da Imagem, porém com esta peculiaridade: se anastomosam curiosamente as antíteses imaginadas pela “ascese diairética”, isto é, aos símbolos de transcendência do Regime Diurno. Para Durand (1997), os símbolos de inversão são imagens representativas da “dialética do retorno”. A queda adâmica, representação do Homem finito, mas também da Queda iniciática, morte como iniciação filosófica, ou a incorporação do lado misterioso da vida. A Queda ceciniana traduz-se em abandono e domínio, catarse e revelação. A queda arquetípica como condição própria de humanidade e não apenas castigo e destituição de um valor maior. Para além do desamparo da queda mítica, um ato de revelação, iniciação para a vida: “A música. Seus outros cantos. Vendo a terra que subia longe para o céu, ele cantou para aquele que cai. Depois veio o Tempo, Flor das mais estranhas [...]”. A teoria de Durand defende que a imaginação humana representa simbolicamente a angústia humana diante da finitude e da certeza da morte. Desta forma, cria imagens que triunfam sobre ela, revelando esquemas primários fundamentais. Por exemplo, no simbolismo que adquire a “descida” de eufemização simbólica da Queda (DURAND, 1997), que por sua vez já é eufemização da morte: “Declarar ao mundo que ali ainda um anjo, ali onde desceste um dia, espera soluçando, negro e espiando a vida” (CECIM, 2001, p. 197). A imaginação da queda ceciniana exalta o valor do Homem que “triunfa sobre a morte”, se imortaliza, mesmo sendo uma semente caída, “nunca será essa coisa de homens semeados em campos de prantos e colhidos por ninguém” (CECIM, 2001, p. 197).

7 A ANTIESTRUTURA DO TEXTO. SERDESPANTO, O HERÓI NEOPLATÔNICO

Moro na possibilidade. Casa mais bela que a prosa. Emily Dynckinson Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro, acorda. Carl Jung


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Em Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin (1997) se ocupa do problema do herói romanesco. Pois é na perspectiva do estruturalista russo que focalizaremos o “herói” Serdespanto para esmiuçar a obra homônima de Cecim. Segundo Bakhtin (1997), de modo genérico, são pontos importantes para definir um herói: a descrição da compleição corporal, sua configuração espacial, a exteriorização de sentimentos e pensamentos por meio de seus atos. Em resumo, a sinergia do herói com o “exterior” na trama. Ainda observa que cada tipo geral de herói (iluminista, romântico, entre outros) deve estar em consonância com o propósito da obra para realizar a ambos plena e mutuamente. Para Bakhtin (1997) o herói é a “personificação” da obra, que em geral se norteia por questões estéticas, éticas ou religiosas (descarta a psicologia e a filosofia naturais nas motivações do herói). Pela ótica estruturalista, o herói também reflete certo contexto histórico, já que resume um conjunto de forças entre interior e exterior (elementos da consciência e aspectos sociais), e é esse conjunto de forças que lhe dá forma:

Dentro de si mesmo o homem adota uma postura ativa no mundo; sua vida consciente é sempre um ato; atuo mediante o ato, a palavra, o pensamento, o sentimento; vivo, venho a ser através do ato. Contudo, não me expresso nem me determino de maneira imediata pelo ato; se o ato realiza certo significado do objeto e do sentido, não realiza a mim mesmo enquanto objeto determinado ou que se determina: apenas o objeto e o sentido podem ser contrapostos ao ato. A autoprojeção da pessoa atuante está presente do ato que evolui num contexto objetivo significante [...]. (BAKHTIN, 1997, p. 54)

Os heróis na visão de Bakhtin (1997) são personagens delineadas, personalidades. Em sentido generalíssimo, são egos ou entidades. Mas Serdespanto, segundo propriamente nomeado, é um ser e não uma entidade, e por isso não se enquadra nos requisitos que definem um herói típico. O herói acabado possui limites que a sua exterioridade ou alteridade preenchem e esta condição é incipiente na personagem Serdespanto e no livro onde tudo é volátil. Por esta razão de exceção, mesmo de transgressão às formas estruturantes, é possível aproximar a personagem Serdespanto do conceito de Bakhtin de Herói Neoplatônico, classificação que alude a Plotino e a escola neoplatônica. O neoplatonismo foi o último esforço do pensamento clássico de superação do dualismo platônico e racionalismo grego, por meio do monismo estóico, integrando a filosofia à religião e unificando o racionalismo grego (forma) ao misticismo oriental (conteúdo). O mais destacado pensador do neoplatonismo é Plotino, para quem Deus era o Uno, não tido


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como o conhecimento ou o ser, mas a fonte inefável e “inconsciente” de todo o ser e de todo conhecimento. O herói neoplatônico de Bakhtin é definido com os seguintes traços: a “consciência pura”; a dissolução corporal; o EU engendrando o outro em si mesmo. Bakhtin pontua que é o neoplatonismo que vai mais longe na negação do corpo concebido como corpo próprio, razão pela qual o valor estético como motivação da obra desaparece quase que totalmente. Validando este raciocínio, em entrevista Cecim comenta: “em Andara já não há personagens, coisas, acontecimentos: há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersos em rarefeitas Neblinas” (AZOUGUE, 2005, p. 5). Nuvens são tênues, informes e por isso permitem e prometem todas as formas. Serdespanto está só e povoado, mas sem forma exata por que diluído no todo. A presença de outra coisa ou outrem se mostra sem corporeidade precisa, nomeadas apenas genericamente: crianças, adultos, a mãe, o pai, o escravo. Embora Serdespanto não tenha voz em primeira pessoa, todos os demais acontecimentos, coisas ou seres orbitam em torno deste personagem que mantém, conforme observa Bakhtin sobre a especificidade do herói em questão, uma relação pura consigo mesmo: “A idéia do nascimento vivo, a idéia do alter, é substituída pela autoprojeção do EUPARA- MIM, numa cosmogomia em que engendro o outro no interior de mim sem sair dos meus limites, permanecendo assim, ainda, solitário” (BAKHTIN, 1997, p. 71). Ainda sobre o herói neoplatônico, cuja definição aproxima-se de Serdespanto, Bakhtin escreve:

Impõe-se a teoria da emanação: penso-me, MEU EU pensando produto de minha auto projeção se separa de MEU EU pensante; opera-se um desdobramento, cria-se uma nova pessoa que, por sua vez, se desdobra graças a sua auto projeção, e assim por diante; todos os acontecimentos se concentram em um único EU-PARA-MIM sem que venha introduzir-se nele o novo valor do outro [...] (BAKHTIN, 1997, p. 72).

Ainda segundo Bakhtin (1997), esta relação pura consigo carece de quaisquer princípios estéticos, e por isso só podem ser éticos ou religiosos. Num ensaio de sua autoria chamado “O Monge da Abóbora Amarga” Cecim (2002) defende que a arte deveria se nortear por princípios éticos, filosóficos, ontológicos e não por motivações estéticas ou técnicas. Daí que seja possível deduzir que a sua personagem principal seja uma propositada forma escape, mais um fruto da sua literatura fantasma, que mesmo quando vista pela ótica estruturalista, não tem estrutura. Personagens do livro se perguntam acerca dele: “É um homem? É um espírito? É um animal? Fosse um homem?” (CECIM, 2001, p. 39).


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A “consciência pura” de Serdespanto engendra em si todas as coisas, e as insufla de vida. Caso da árvore falante de “longos braços humanos”, que conta uma parte da história. As outras presenças voláteis estão curiosamente amalgamadas, fundidas ao Ser de Serdespanto, que numa metáfora direta representa a “tentativa” de unidade na dispersão. Ou em outra metáfora possível, a consciência presente no livro é um organismo unicelular onde os elementos da trama são identificáveis, mas livres de membranas, estão plasmados ao tecido coloidal, compondo um organismo primitivo onde todo o potencial de vida está condensado e não discriminado. Tal procedimento ou estilo narrativo difere, por exemplo, da Polifonia do romancista Fiódor Dostoiévski (BAKHTIN, 1981) que se caracteriza pela autonomia e peso conceitual equivalente de todas as vozes da narrativa. Em Ó Serdespanto, o múltiplo se dissolve e se iguala, se reúne no uno que, por sua vez, está apenas na fronteira da idéia do Uno ou de Deus, pois ainda contém partes, ainda que não completamente dispersas como na polifonia Dostoiévskiana. Plasmadas num único eixo orgânico, o Uno é uma utopia que se comunica na obra de Cecim: “Toda essa presença de corpo em nós: Estrelas, insetos, árvores, a água, o fogo, os outros homens, o sangue, os ossos, respirações, os Olhos, tudo isso vivendo, como se vivesse”. (CECIM, 2001, p. 12). Apesar de próximo do modelo Bakhtiniano do herói neoplatônico, Serdespanto é menos um herói sui generis, e mais a ilustração de uma demanda de vida. Serdespanto é o não herói da narrativa coloidal, e não o de um romance passível de aferição estruturalista. Serdespanto é o personagem de uma narrativa pura, em que a “frivolidade ficcional é substituída por um acontecimento que contém uma metamorfose” (BLANCHOT, 1984, p. 16).

8 A OBRA NO CONTEXTO HISTÓRICO

8.1 O REGIONAL, O UNIVERSAL, O UNO E O MÚLTIPLO

Isto é uma fábula com mãos humanas, que se estenderão, se estenderão [...]. Vicente Franz Cecim


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A fusão, alquimia de gêneros narrativos é característica da obras de Vicente Franz Cecim. No entanto, a qualidade desta alquimia não configura um amálgama “barroco” de referências, mas o oposto. Na obra ceciniana há a redução, condensação em direção a uma estrutura elementar. Esta que parece ter sido de onde partiram todos os tipos de narrativas, por um lado, e para onde desaguarão as narrativas modernas, por outro. Um efeito singular obtido com uma estrutura aparentemente pequena e simples, senão ausência de estrutura. Situada no âmbito da arte contemporânea, a chamada pós-modernidade com a soma de diferentes tradições e referências, a exaustão dos conceitos e fim das escolas artísticas, a obra de Cecim, porém, não resulta de demandas culturais globalizadas, de uma reflexão absorvida de fora para dentro. A arte de Cecim conserva o viço tanto da tradição milenar, quanto do pensamento moderno, e não tem o peso da hiper informação, nem a auto-imposição da atualidade, e talvez exatamente por isso se revele intemporal. Intemporal na acepção de universal, e que por sua vez sempre é mítico. Diz-nos Eudoro de Souza (1984, p. 22) que o “mito não só uma vez precedeu o logos, mas sempre o precede”. Cecim se despe da História para mostrar a sua base mítica. E não se situa no contexto da pós-modernidade das artes, ele dá um passo além da exaustão, quando, por exemplo, propõe soluções para a aridez pósmoderna com a reconciliação com o sagrado, mas numa perspectiva diacrônica, unindo as tradições do passado, como o culto do sagrado na arte, relendo-as na sua obra e de acordo com as necessidades do seu próprio tempo.

8.2 MANIFESTO CURAU. UMA ANTROPOFAGIA DECANTADA

Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor. Vicente Franz Cecim

Nesse tópico aproximaremos dois importantes manifestos para a arte brasileira, o primeiro mais conhecido e fundamental Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade e o Manifesto Curau, de Vicente Franz Cecim, de 1983. O Manifesto Curau de Cecim, apresentado no Congresso no CBPC é nitidamente influenciado, tanto pelo Manifesto Surrealista de Andre Breton, quanto pela antropofagia de Oswald de Andrade. No entanto, o texto de Cecim se depreende da deglutição xenófoba de Oswald, e ganha em liberdade e autonomia maior quanto à história e a tradição literária e


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artística estrangeira, a qual Oswald de Andrade (1982) denominava, ironicamente, de “catequese” (colonialismo e aculturação). A liberdade maior de usar todas as referências – locais e mundiais – faz com que Cecim alcance o universal sem os sobressaltos andradianos, superando o complexo de colonizado que ainda subjaz na arte brasileira. O complexo de colonizado se demonstra por uma vertente que assimila e às vezes “macaqueia” tendências estrangeiras, modismos e conceitos (como no próprio caso da Semana de 22), e a outra vertente que é o seu oposto, a de um regionalismo parcial, que se insurge contra esta tendência, mas a reproduz de forma invertida: na forma de um panfletário recalque. Do Modernismo, que culminou com o tropicalismo, movimento contemporâneo de suas primeiras obras, Cecim possui muitas referências conceituais, como o livro de filosofia da história de Joham Huizinga, o Homo Ludens, texto amplamente citado por Oswald de Andrade, assim como por Cecim em suas entrevistas. Sob influência do Homo Ludens, o Manifesto Curau discorre sobre a consciência estrangeira que se impôs em detrimento da consciência lúdica em tese superior que havia na Amazônia. Ambos os manifestos dos brasileiros, bem como o manifesto surrealista, propõem que esta consciência, esse estado onírico volte a vigorar. Mas para Oswald a reação possível é xenófoba, ou no mínimo nacionalista, por que ironizada pela metáfora do antropófago, figura tão combativa e tendenciosa quanto a imagem do próprio colonizador. Apesar do referencial comum (modernismo europeu e, posteriormente, o brasileiro), Cecim aprimora o manifesto antropófago ao ir além das querelas nacionalistas e reabilitações patriótico-culturais. Cecim é aquilo que se costumou chamar “cidadão do mundo” e não (pós) moderniza a Amazônia, o Brasil, mas vivencia a identidade nacional e também a partir desta, numa postura contemporânea e menos dogmática. A heterodoxia Ceciniana, reabilita, inclusive, a ortodoxia européia e seus conservadorismos; e nesse sentido comete heresias em relação ao Manifesto Antropofágico, que pregava “contra as sublimações antagônicas, trazidas nas caravelas”. No Manifesto Antropofágico, há mais contradição, em Cecim, mais dialética. A referência primordial do Manifesto Curau é a Amazônia, mas esta é alegoria rica e não dogma ou símbolo nacionalista. A Amazônia é, metaforicamente, mais universal e receptiva, e tão positivamente selvagem e insurgente quanto a figura do antropófago. Por esse motivo, talvez, Cecim esteja fora dos padrões da chamada literatura regional ou brasileira, pois não demonstra traços evidentes de nenhuma delas. Entretanto, é notória a relação afetiva com a floresta, sua referência maior, um espaço sagrado segundo o escritor. A floresta não é o


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estereótipo regionalista de certa literatura, pois nela está contida Andara, região que transcende a topografia. Sendo o regionalismo uma atitude demagógica ou uma ideologia reacional que reflete o “complexo de colonizado”, tal postura facilmente, e de forma perversa, mistura-se aos discursos de um poder político local vigente. Por isso, a atitude de Cecim é política. Não é a de uma insurreição (à moda de Oswald), mas de uma política de “transgressão”, esta no sentido etimológico de “passar ao largo”, de uma assertividade oblíqua. O Manifesto Antropofágico ainda é o principal parâmetro para a reflexão sobre a arte brasileira. Coube mostrar, por isso, em quais medidas existem concordâncias e dissonâncias iniciais entre um marco conceitual da arte moderna brasileira, o Manifesto Antropofágico, e o Manifesto Cural, de um autor da envergadura de Cecim, que também reflete acerca das questões regionais e brasileiras na arte, mas por outro prisma.


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9 FIM DE Ó SERDESPANTO?...

A história de Andara não tem fim. Vicente Franz Cecim

Nosso objetivo foi cumprido ao mostrar em linhas gerais o pensamento Ceciniano e suas afinidades com alguns autores e pensadores, bem como mostrar parte do seu estilo, enfocando, principalmente, a obra Ó Serdespanto, importante obra literária do autor. Constatou-se que a obra é uma indagação sobre o Ser e a estupefação que se lhe segue, e, por isso, é um tema inesgotável. Também a reflexão sobre a arte está na obra embutida na reflexão sobre o Ser. E pelo exposto, reafirmamos a necessidade de aprofundar o estudo, seja por mim em outra etapa, seja por outros leitores de Cecim e deste trabalho. Esperamos permitir aos estudantes e leitores, senão uma introdução completa, uma reflexão interessante acerca da literatura de Cecim. Finalmente, concluímos com uma frase de Mestre Tokuda (1989): “Às vezes eu minto, apenas falo o que aprendi, mas o importante aqui é tornar-se as palavras. Isto significa que aquilo que estava oculto aparece, mostra-se, revela-se. Esta é a função das palavras.”


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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE

O VÔO DO CURAU/ ENTREVISTA

Vicente Franz Cecim fala da transfiguração da Amazônia em Andara e do Manifesto Curau em defesa da região

- Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse a circunstância fatal de eu ter nascido lá, talvez não houvesse Andara. Certamente, não: não haveria Andara. Então, Andara começou se nutrindo da Amazônia. Da Realidade da Amazônia. Mas da Realidade Onírica da Amazônia.

Realidade Verbal/VFC

Enquanto Flagrados em delito contra a Noite/Manifesto Curau, o Manifesto I, de 1983, foi uma Palavra para Todos, o que falou após ele vinte anos depois: No Coração da Luz/Segundo


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Manifesto Curau, ou não é uma Voz que se dirige, com menos ingenuidade, objetivamente céticoestóico-Sêneca apenas às Gerações Futuras. Nesse sentido, houve, em relação ao que o anterior propunha, uma redução de expectativas ou um des-iludir-se como libertação das falsas esperanças: - Como creio que as Mutações das Consciências se darão lenta e impura mente mescladas aos vícios mentais acumulados nas gerações passadas, tendi a inclinar minha esperança para um Dom da Vida: a Fugacidade dos Homens e das Coisas. E louvar que nada, em baixo, se mantenha o Mesmo - sim, Heráclito - embora tudo, no alto, permaneça o Uno - sim, Parmênides. Pois parece um Bem e uma Graça que os homens, enquanto Entes da Vida Visível, a manifesta, sejam Efêmeros e as coisas mutáveis, e que os frutos antigos desmoronem e se desfaçam, mas semeando Sementes. Eis, estão : - Se essas Sementes vierem contaminadas por Aquilo, oculto, que levou o Fruto à decadência, estão estaremos perdidos. Sonho esta Utopia, no foradentro da VidAndara: Sonho que, Se, florescerem duas gerações inteiramente inter-rompidas com o passado, nascidas que Milagre, ó ser de espanto - sem antecedentes - isso limparia, lavando e queimando, a Vida humana de seus Vícios públicos e privados. E assim entendo que metáforas como Dilúvio & Apocalipse são, especificamente, essa Fugacidade que possa vir nos libertar das cadeias. No duplo sentido, de elos e prisões.

Dom Fugaz/VFC Belém, junho de 2009

Como surgiu o Manifesto Curau? Vicente Franz Cecim: A criança das cigarras – de que vai se falar mais adiante neste inventário arqueológico, mas não rigorosamente cronológico, dos passos dados ao longo da viagem a Andara – havia se tornado um homem jovem que oscilava entre a Contemplação e a Ação diante das coisas que testemunhava e vivia. E vivíamos em uma Ditadura. Milhares de pessoas haviam vindo para Belém e iam realizar o congresso da SBPC no coração da Amazônia. E eu sentia a suspeita de que aquilo fosse uma farsa coletiva, sem conseqüências fundamentais para a região. Então escrevi, jorrei com denúncias e exigências poéticopolíticas o Manifesto. E na cerimônia de abertura do congresso no Teatro da Paz, com as autoridades civis, militares e eclesiásticas presentes como que emergidas de um filme de Buñuel, invadi o palco no meio do discurso do Governador do Estado, interrompi e entreguei o Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau a ele. Grande silêncio. Disse algumas palavras. Grande silêncio, constrangido. Mas eu ria, contente, consciente de que estava fazendo o que devia ser feito. Foi assim. Anos depois, o Manifesto saiu em páginas inteiras de


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dois jornais grandes, A Província do Pará, em Belém, e A Crítica, em Manaus, e em livro editado pela Funarte sobre o congresso Um Olhar Amazônico, feito em Manaus.

Você nasceu e vive na Amazônia. E após ter iniciado os livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível disse em uma entrevista que a Amazônia é para você o que a Floresta Negra deve ter sido para Heidegger. Ainda sente o mesmo? VFC: Sim e não. Porque à medida que a Amazônia, de região natural, foi se transformando na região verbal de Andara, Andara cresceu tanto que hoje como que contém todo o Universo, certamente parte do Visível nos livros que escrevo, mas todo o Invisível no livro que não escrevo. E hoje eu diria que Andara é para mim o que o Uno foi para Plotino. Ou o Tao para Lao-tsé e Chuang-tsé. Lembremos nesta escavação de declarações passadas algo que eu também disse: - Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse a circunstância fatal de eu ter nascido lá, talvez não houvesse Andara. Certamente, não: não haveria Andara. Então, Andara começou se nutrindo da Amazônia. Da Realidade da Amazônia. Mas da Realidade Onírica da Amazônia. A Amazônia é um tecido infindável de lendas, fábulas. Lá, aqui, parece não haver fronteiras muito nítidas demarcando onde termina a Realidade e começa o Sonho, e vice-versa. Em Andara também é assim. Mas não falo da Amazônia que aparece, mimetizada, na Literatura de Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras: falo da literatura Oral da região. Dessas raízes é que foi nascendo a não-árvore de Andara. Árvore que se iniciou como Árvore


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de Palavras, mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje é: uma não-Árvore de Palavras. Árvore Invisível. Esse tipo de Árvore, ninguém pode incendiar e reduzir a cinzas com fazem com as árvores da Amazônia. Fale mais de como se deu essa transformação da Amazônia em Andara. É válido perguntar: Andara é a Vida ou apenas Literatura? VFC: As duas coisas, numa só. Também já falei longamente sobre isso. Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é essa Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Só que em Andara pode acontecer ainda mais acontecimentos e seres transreais do que acontece na Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada: em Andara, árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os animais da terra, há muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos. Também é grande a presença de serpentes em Andara. Pois o que está no Alto é como o que está Embaixo, como disse Hermes Trimegisto. Andara é lugar de sonhar, em Andara tudo é possível, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme. Fazer literatura assim é ampliar o ilusório. Heráclito, que entendia dessa Obscuridade, já nós advertiu há quase 25 séculos atrás: - Vida ama se ocultar. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, com essa tradição que quer nos reduzir a criadores de uma literatura superficial, anedótica, supérflua, com raras e parciais exceções. Quais? Só cito nomes quando chegar o Dia do Juízo Final, então os bons serão separados dos maus, segundo as Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi uma opção muito solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim, hoje também escritora, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas encantadoras, no sentido de Encantamento, de Andersen, que faz Magia e é todo


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ele um escritor deslumbrante, mas umas histórias delirantes da região, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural.

Foi essa então a genealogia de Andara. Há nela muito da sua infância na Amazônia? VFC: Mas eu devo repetir, ainda uma vez, aqui, que não se pode dizer que essa Andara que se criou através de mim é a Amazônia, não é a verdade. E dizer que a Amazônia é Andara, também não é a verdade. Não há uma verdade única nesse caso. Onde está a verdade, então? Se se olhar com olhos de alquimista, que são os únicos que interessam, vai se perceber que o que se dá é uma transmutação: a Amazônia é a matéria prima, Andara é o resultado. O que sobra, fica de fora: é o que os alquimistas chamavam resídua. A transmutação da Amazônia em Andara deixou muita resídua, material imprestável para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da criação literária não é diferente, para entender o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo Lúlio: - Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação, os espíritos que se evolam (...) condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para o outro como nuvens. Essas são palavras misteriosas, mas não há outras melhores para se iniciar na transfiguração da vida pela arte. É por isso que, como eu disse: Andara é lugar de sonhar. E eu digo: A viagem a Andara não tem fim. E depois de mim, outros, que vierem, poderão dar continuidade à viagem a Andara e habitar seu território, com outros livros, outros sonhos, outros seres de espanto.


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Os Manifestos mostram você ativo, interferindo na realidade e na História. Mas quando se trata de Andara você diz que Livro Invisível é uma forma do autor se ausentar e deixar que unicamente a vida escreva, sem mediação. VFC: Mas na Literatura a Ação é essa Inação. Wu Wei, diz o Budismo. Uma ação não ativa. É sempre a vida que nos escreve, nós não escrevemos nada, é o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós: somos o Lápis que Escreve o Livro que escrevemos vivendo. Os livros escritos são também apenas cópias mal feitas desse Livro, e nossos lápis têm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber por que. Na verdade, não canta: é ela: Ela: quem através dele canta, a Vida real oculta em nós, em tudo. Mas lá encima já falei errado de novo, preciso corrigir isso: eu não quis dizer Nada, essa palavra eu deixo à deriva no Ocidente, eu quis dizer Vazio. Eu quis dizer: - O Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara e Viagem a Andara oO livro invisível, esse não-livro, ia se formando: nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência. Andara me escreve, por isso escrevo Andara. Se eu fizesse literatura apenas - o que não serve para nada, ou para muito pouco - e não deixasse a Literatura de lado para me dedicar, dedicar toda a minha vida, a praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser de Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria. Andara, sabe o que é Andara: é um Serdespanto geográfico. Já a Amazônia é - poderia dizer: só, para deixar bem claro - uma geografia espantosa. Mas é a Amazônia, a Natureza Sagrada, que torna possível essa impossível Andara. É a parceria do Real que nos Sonha com os nossos Sonhos do Real.


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Leo Gilson Ribeiros, Antonio Hohfeldt e outros críticos, inclusive o português Eduardo Prado Coelho, quando seu livro Ó Serdespanto foi lançado em Portugal, evocaram Guimarães Rosa escrevendo sobre você. Há uma relação entre Andara e o Grande Sertão, entre a sua literatura e a dele? VFC: O que eles vêem talvez seja que são literaturas de invenção de linguagem, ou porque minha escritura tem a mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão - e o próprio Manifesto Curau já falava sobre isso - a mesma coisa que eu tento fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas da vida. No Manifesto de 1983 eu digo: - Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo do Sertão de João Guimarães Rosa. (...) Em sua geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região.


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De fora da Amazônia se poderá entender Andara? E ter plena consciência das exigências dos dois manifestos Curau, considerando também o Segundo que você apenas como que esboçou, atualizando o primeiro? VFC: Para isso elas, as pessoas, terão que penetrar muito profundamente não apenas na Amazônia, ou viajar através de Andara. O que puderem vir a compreender virá das perguntas que fizerem às suas próprias vidas. Perguntar, peregrinar, pelo mundo, por si mesmo, pelo Visível e pelo Invisível. Através do tempoespaço. É a mesma coisa. E Andara parece vir disso, de Andar, do verbo andar. – Nossa Tribo Peregrina por Todos os Recantos do Real e dos Sonhos, lembro que uma vez eu disse isso sobre Andara. Andara provém do verbo Andar? Afinal, é Viagem, não é? É a Viagem a Andara. É Peregrinação, Lugar de Peregrinações através dos livros visíveis que escrevo e do Livro Invisível que não escrevo e vai se formando como Livro Neblina a partir dos livros escritos e só pode ser lido em Imaginação. Eu falei sobre isso bem no começo da Viagem, abrindo os livros de Andara. Lá está escrito: - Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade para que Andara, a viagem ela mesma, possa existir como pura ilusão. Então, disso nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro espaçotempo que não mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua fazendo, desde seu início até hoje, é a de uma Abolição de qualquer Espessura. Sob essa pressão, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os sem-limites dela, os sem-limites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara pudesse se dar, não se dando, e falar não se falando, entre o Invisível e o Visível: o Tempo da Hipótese. Sem habitar o Tempo da Hipótese, na Vida como na Arte, não se entende nada. Abolições, hipóteses, peregrinações sem limites. Uma abertura para tudo. Isso é Andara? VFC: Sim. Vivo repetindo isso. Essa Abertura Total. Andar leva a ando, andei, andarei. Andara nunca quis a Imobilidade. A Quietude, sim, mas nenhuma imobilidade. Andara se move como as Águas da Amazônia, incessantemente. Pergunta e Peregrina. Andara quer o Sonho Verbal dos sendo, fosse, estaria, haveria de, houvesse, enfim, do:


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Andara. Eu Andara, tu Andaras, ele Andara. Por onde andaríamos, andássemos todos quando andamos em Andara, através de Andara, através dos livros visíveis de Andara? E andando através de nós, sempre, o Livro Invisível de Andara? Mas através de Andara, ah, não se irá à parte alguma. Pois o sentido da Viagem a Andara é a Viagem em si mesma. A si mesma. Através de Andara vamos, de alguma forma vamos. Sim. Ou não vamos? Nunca fomos, nunca iremos? Também parece que Sim. Mas vamos num ir sem ir, num ir ficando, e permanecemos num ficar indo, a meta esteja atrás, ora adiante. Ora meta alguma, ora todas as metas. Quais? Mas quais? A meta sem meta com meta, por isso, Andara é a Viagem ela mesma, em si. Em Andara, estejamos indo, sempre, inapelavelmente, não há remédio, através de Luzes, através de Sombras. Neblinas humanas através da Neblina de Mundo. Andara? Para tentar dizê-la de uma só vez e mais uma vez, claro que inutilmente, pois ela nunca se entrega inteiramente, Andara é, enfim: Demanda de Penumbra: Demanda do Graal dessa luz crepuscular e ao mesmo tempo dessa luz de Aurora, dessa entreluz onde já nenhum Sol exterior brilha mais ocultando a Luz ao mesmo tempo Natural e Sobrenatural que todas as coisas, tudo, emite de Si, e disso já falava Paracelso, e é um Saber dos Alquimistas, se dando a perceber, se dando a conhecer em suas Identidades Veladas. Em Andara, estamos cegos para ver. Ou, talvez, fiquemos cegos por tanto ver Clarões na Noite em que tudo é Chama Oculta. Por isso eu disse no começo da nossa Entrevista: Andara já não é mais o que um dia foi a Literatura, como certa Tradição, se espessando em nós, nos acostumou a aceitar. Teve que ser um outro tecido mais fino de Escritura para poder se fazer desvio ontológico, introspectivo, em relação ao homem e em relação à vida inteira, a Manifesta e a Oculta. Em relação à Literatura, como prática da palavra designativa, palavra nefasta que cada vez mais se instala entre nós, Andara só sabe falar a Voz das Perguntas, muitas perguntas. Mas de um certo jeito que quase abole a necessidade de respostas. As respostas já estando contidas nas perguntas, ao serem formuladas. Um homem lúcido sabia disso: Krishnamurti. E um outro sabia a pergunta certa: Ramana Maharsh, que recomendava o Vichara, a Inquirição. Andara é Vichara, é toda ela Escritura de Pergunta, mas que se inventa mundo, mundo verbal, não só após ter recebido as respostas, e sim no próprio ato de perguntar. De se perguntar suas respostas à Vida. A Surda que nos Ouve. Quem está disposto, sem Temor, a imergir assim em indagações? Ah, é a Andara que eu pergunto: - O que eu sou? É a Pergunta Certa. Os Manifestos Curau, I e II, não lutam apenas pela integridade da Natureza amazônica, também lutam pela integridade do Imaginário da região.


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VFC: Na Amazônia, um Real Imaginário é como se fosse uma Segunda Natureza. Os homens na Amazônia tanto vivem quanto contam histórias. Em relação à Literatura, não há nada demais em contar histórias, ainda. Eu sempre conto histórias, quase Contos de Fadas, nos livros de Andara. O homem ainda está no estágio de ouvir histórias, de se contar histórias. A Amazônia que nossa mãe Yara nos contava para nos fazer dormir me ensinou isso: a amar e respeitar isso, as histórias dos seres, dos homens, da vida. Eu ia adormecendo e mergulhava nessas histórias da Infância, me tornava também personagem delas. Se apagava a fronteira entre a Vigília Diurna e o Sonhar Noturno. Isso também nutriu, certamente nutriu muito Andara, quando eu ainda nem suspeitava que ela me viesse um dia, como acabou vindo. A própria Vida talvez não seja mais do que uma História que vivemos como personagens de um Autor desconhecido. Isso é ainda Medieval. E tantas vezes a Vida parece ser aquela “história cheia de Som e Fúria, contada por um idiota, e que não significa nada”, como disse Shakespeare. Mas tudo oscila. Estamos num pêndulo. E não devemos fazer definições definitivas sobre nada. O mesmo Shakespeare disse que “somos feito do mesmo estofo de que são feitos os sonhos”, outra percepção da vida muito medieval. Andara, eu digo: é uma coisa bem medieval. E de certa maneira eu sou um homem medieval. Tenho uma Segunda Natureza Imaginária, como a Amazônia. A Idade Média, com suas Visões alucinadas, como em Bosch, Breughel, Platinir, junto com o mundo dos chamados présocráticos, foi o que no Ocidente sempre me atraiu. E então, houve todos aqueles antigos autores, como John Bunyan, Jonathan Swift, Baltazar Gracián, Cervantes, Laurence Sterne, contando histórias, eles são precursores do que hoje surge como uma Literatura de Escritura, a caminho, e eles vêm de longe, antecipando, preparando – e fazem isso contanto histórias uma compreensão sempre mais e mais libertária da Literatura como Simulacro da Viva Vivida, às vezes revelador, às vezes mais velador da vida ainda. Esses escritores, com suas histórias, grandes encenadores de Alegorias, Fábulas, Parábolas, mestres da Metáfora viva mais viva que a Vida Vivida, agentes iniciatórios na conscientização do Sermos o Sonho de Sermos, rompedores dos grilhões da Mimética, superadores do homo faber no fazer literário pelo homo sapiens, superadores do homo sapiens no saber literário pelo homo ludens, povoadores do Onírico, transeuntes do humano ao que eu já chamo de: o Umanoh, Nosso denso Ocidente e, ah, ainda sabemos tão pouco do mais sutil, do Oriente.


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Não vê contradição em defender a integridade da Natureza amazônica e, ao mesmo tempo, transfigurar a região na Natureza Onírica de Andara? VFC: A integridade da Amazônia deve ser entendida como deixar a região em si mesma, com a sua Natureza livre, para que ela prossiga em suas metamorfoses. Nenhuma interferência humana, que é sempre uma violência não autorizada pela Vida. Como Andara, a Amazônia também é um território de mutações, mas nascidas delas mesmas, não impostas de fora. Esta nossa investigação arqueológicas recuando nesses últimos 30 anos de Andara nos mostra, aqui, o que uma vez eu respondi a isso assim: - Andara, o que ela parece mais querer, é o Advento de uma Literatura Fantasma. Fantasma como são os seres de Neblina que a percorrem. Mas ainda mais sutil que eles. Andara, os livros escritos, os livros visíveis de Andara, ainda pudessem ser lidos por quem assim quiser, ou não puder mais que isso, como Literatura Fantástica. Mas o Livro Invisível de Andara, aquele que não-é escrito, aquele que já é não-livro, ou nunca será, esse: Isso, já é Literatura Fantasma. Literatura de Ausência. Está para a Literatura como os números trans-finitos de Georg Cantor, talvez eu pudesse comparar, que se iniciam ali, seja Onde isso for, onde os números finitos se acabam. Literatura Fantasma é Literatura de Ausência de Literatura. De Ausência até mesmo da Presença Rarefeita da Escritura, por mais rarefeita que ela seja. Está num além em nós. Nietzsche perguntando pela voz de Zaratustra: - O homem é coisa ultrapassável, o que fizeste para ultrapassar o homem, o que fizeste para atingir o Além do Homem? O Nazismo quis fazer o mundo ouvir Nietszche dizendo: - Super-Homem. E ele disse: - Über mensh, e isso é dizer: - Além do Homem. Zaratustra, em seu profundo desprezo generoso pelo homem e suas tolices era o oposto do desprezo cruel e pervertido do Nazismo pelo homem. Esse mesmo


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Nazismo que se apossou da sabedoria da Suástica Ariana, a mais perfeita síntese ancestral do Universo e sua Origem e Sentido, e a usou como Signo do Mal na Terra praticado por homens de Má Vontade. Mas para além disso tudo, essa é uma visão ocidental, a visão ocidental de Nietzsche. Andara se desampara é no Tao. Andara quisesse fosse as Outras três partes do discurso que se mantém secretas, não são postas em movimento, mencionadas pelo Hino do Rig Veda, que diz que só conhecemos a quarta, que é a língua dos homens. Andara não busca nada assim, como neste trecho de Nietzsche, com um sentido único de Ida: Andara busca, no homem, tanto o - umanoh quanto o - umano, tanto o além quanto o aquém do homem. Preferentemente, o Aquém.

Voltando bem atrás, antes do aparecimento de Andara: Quem era Vicente Franz Cecim? VFC: Estamos escavando ainda mais fundo, então? Vamos adiante, recuando. Desde que abri os olhos, me senti um ser de espanto. O Serdespanto somos todos nós, para isso basta ter nascido. Mas um ser de espanto pode vir à tona da Vida de duas maneiras. Que eu vejo assim: se alguém ao nascer se assusta, está perdido. Vai viver no Medo. Mas se em vez de se assustar se Encantada, então começa a viver a Viagem a Andara. Tudo surge para os olhos da Curiosidade, do Estranhamento fascinado. Esses jamais dizem: - Estou na Vida. Esses sabem e dizem: - Eu sou a Vida. A diferença é imensa. Todo o desastre humano parece se dever a essa diferença entre se sentir um estranho de passagem ou se sentir tão íntimo da Vida quando uma árvore, peixe, estrela, inseto, o Fogo, a Água. Esse Temor é para sempre, irreversível? Gostaria muito de dizer já sem nenhuma Hesitação: - Não. Mas avancei pouco


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em relação ao que antes disse sobre isso: - Cada um é um serdespanto à sua maneira: uns, mais ser no serzinho humano e menos no Ser de Tudo, outros mais sendo no Ser de Tudo e só um serzinho de nada em si mesmos. É uma questão de despertar o pequeno s para o grande S ou não. Mas haverá mesmo essa diferença? Possivelmente, não: somos sempre o grande S contido, Oculto, no pequeno s que somos. Isso é ser no foradentro. Você está esquecendo a Criança da Cigarra, que depois viria a invadir o palco do teatro lançando o Manifesto Curau sobre a platéia. Ela ainda existe, ainda viaja em Andara?

VFC: Sim. Há muitas crianças em Andara, elas aparecem por toda parte. Comecemos a retornar ao Agora. Essa Criança viveu uma experiência que já contei outras vezes e nunca esqueço. Experiência que me revelou estranhamente o que talvez sou: lá pelos 4 anos, morava num casarão antigo em Belém com muitos, muitos tios, tias, primos e os meus pais e minha avó, mas fugia do tumulto feliz da grande família para ficar sozinho na rua sempre deserta ao lado onde passava o muro imenso para aquela Criança e compacto de um cemitério já então só habitados pelos mortos, o Cemitério da Soledade, onde ninguém mais era enterrado fazia anos. Era sempre no crepúsculo isso, e enquanto a luz ia se esvaziando na Terra que adormecia, as estrelas se esboçando no céu, e a lua branca, a que aparece para nos alucinar de dia, de olhos abertos, ia cedendo seu lugar à lua amarela, que aparece nas


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noites para nos alucinar de olhos fechados, e o Silêncio ia se instalando em tudo com sua presença sagrada de ausência dos sons: pois pense nos anos 50, um tempo lento e vazio das agitações modernas numa cidadezinha lenta como Santa Maria de Belém do Grão Pará: então, nesses crepúsculos melancólicos, como eu ia dizendo, as cigarras começavam a me chamar das gigantescas mangueiras enfileiradas ao longo do longo muro da Soledade: Ce cim Ce cim Ce cim. Foi a primeira vez, que me lembro, que pressenti o que eu fosse, o que eu era. Não o que parecia ser. O que depois se tornou aquela compreensão de que já falamos: Despertar o pequeno s para o grande S. Entender a possibilidade de sermos o grande S contido, Oculto, no pequeno s que somos. Enfim: Ser no foradentro. Entre a infância e o presente, cabe aqui perguntar: o que é o Tempo para você, já que Andara se dá no Tempo da Hipótese. E saltando para 1983, o ano em que você lançou o primeiro Manifesto Curau. De que maneira as idéias contidas nele refletem a Amazônia daquela época? E a de agora? VFC: Estamos no Tempo, falando do Tempo. O Tempo contém Mutações e sua própria existência é Unidade. Há o Ser Móvel de Parmênides e o Ser Móvel de Heráclito, em todos nós. Em tudo. No Todo. Não tenho ilusões quanto a isso. A Consciência pode mudar num vislumbre. Iluminação, Satori. Mas as Ações humanas se arrastam, se essa Iluminação não acontece. Assim se dá com a Civilização, agora como antes, na sua relação com a Natureza. Mas quanto ao que mudou ou não sobre a relação do mundo com a Amazônia, o Segundo Manifesto já fala disso, não preciso repetir aqui. Fiquemos no Tempo. Eu tenho, mais do que uma impressão, uma Sensação profunda da superfície das coisas e só ela se deixa dividir dessa maneira - Futuro, Passado - mas no fundo do Profundo alguma Coisa é in-divisível. O Imemorial é que tudo está, sempre, se-fazendo e se-des-fazendo. Este Presente é um ir-e-vir de algum lugar para lugar algum. Nisso estando a nossa perdição? Nosso extraviamento? Ou nosso desvio pelo Saber. Ou a nossa imensurável libertação - não digo libertação do Homem, não é isso, mas a libertação do Humano, através do que, em Andara, eu chamo de o umanoH. É assim mesmo, como já disse, a des-obstrução do nosso possível U de sermos já sem fragmentações: no Uno. Nem sub nem sobre - mas através. A Aspiração mais elevada, de se situar num ponto de vista em que todos os tempos, todo tempo, são tempos atuais. O que seria o mesmo que dizer: imemoriais. É esse o Senso - não exatamente o sentido - da literatura Visível & Invisível de Andara.


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Suas lutas na Literatura são as mesmas que na Vida? VFC: Parece que sim. Aqui fora, são mais densas. Nos livros, mais intensas, mas mais sutis. A Vida, porém, ainda que se ocultando, quando se deixa ver me mostra alguma coisa que a torna mais Secreta e mais Bela que a Literatura. Mas porque a Literatura quer a amplidão, ela tudo amplia e provoca estranhos milagres nas fronteiras das impossibilidades da Vida imediatamente dada. No entanto, é precisamente nela, Vida, vivendo, nos vivendo em nós, e certamente também escrevendo, que se corre o risco de obter a Revelação essencial: a de que o natural é sobrenatural e sua versão refletida num espelho: a de que o sobrenatural é natural. Essa consciência é o alimento, o Único, que devesse nos nutrir enquanto seres e enquanto criadores, e o que dá sentido à Literatura. Andara é essa busca de amplidão. É essa mesma amplidão que você insiste em preservar manifestada na Amazônia imensa? VFC: O sentimento da Amplidão nos leva a buscas. E o que a gente busca, nos acha. Ouve o chamado. Aprendi isso numa Visão que tive. A Amplidão vem a nós, ao nosso Encontro com ela. E a Amplidão guarda revelações que não estão imediatamente diante de nós. A Amazônia já um uma manifestação da Amplidão, em si mesma. Mas para se dar a essa Busca, Andara tinha que ser, e nisso se tornou, Lugar de Nenhum Lugar, o que equivalesse a dizer Lugar de Todos os Lugares.


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O que habita a Amazônia também habita Andara? VFC: São miragens e realidades semelhantes, embora de outras consistências. Na Amazônia, além da Natureza, há homens. Homem que se tornam personagens, na Literatura. Mas em Andara já não há personagens, coisas, acontecimentos: há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersos em rarefeitas Neblinas. Como aquele Serdespanto. Coisa aérea entre Céu e Terra, imerso em Perplexidades, as nossas Perplexidades de Existirmos em Homem. Haja, também, as Perplexidades das coisas em se existirem em Montanhas, Peixe, Centopéias, Estrelas, Galáxias e das Sombras em se existirem Sombras. Pois eu sou Serdespanto. Como tudo é. E sou também Os animais da terra, do livro que escrevi com esse título, todos os animais da terra. E também sou a Asa e sou a Serpente. Em Andara, sou, somos, sempre Queda e Ascensão, Ascensões e Quedas. Novamente relacionando Andara aos Manifestos. Neles você quer como que erguer a Amazônia a uma estatura acima da Civilização, por sua condição de Natureza Sagrada. Mas seus personagens estão em perpétua queda. Todos os 15 livros visíveis de Andara estão como que marcados por uma negação, embora neles se veja tantas asas no ar, de aves, anjos e até de seres humanos alados. O que impede a ascensão? Você elegeu como uma espécie de meta de Andara a frase: - Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim. A pergunta é: - Até quando atravessaremos para chegar ao sim?


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VFC: Mais uma vez, só posso repetir o que já disse antes, literalmente: - O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo, sim. Entre o Sagrado e o Profano. Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele Clarões e Sombras para que finalmente veja: a Terra lá no alto, o Céu embaixo de si. Eu disse que gosto de falar com as palavras das imagens. As palavras são ressequimentos, belos ressequimentos, mas nas Imagens ainda há o viço. E é com esse viço que eu convido. - Imagina: que estamos no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria: e então aí alguma coisa vibra imperceptivelmente: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é: uma semente: um caule: a luz do Sol e desabrocha uma Flor: que se vive, e depois vai murchando, fenecendo: uma parte se curvando, retornando à Terra, mas a outra: a Outra: o seu perfume, se evolando


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e ascendendo aos céus: sempre ascendendo, passando pelas aves que voam sob as nuvens e mais adiante já pelas Aves que voam por sobre as nuvens, e diz-se disso: Anjos?: e sempre subindo o perfume da Flor indo em sentido inverso à flor coisa fenecível, então irremediavelmente fenecida, e já deixando as Aves mais altas para trás e agora passando pela luz das estrelas, tantas Galáxias a ultrapassar, eis: o perfume penetra, também irremediavelmente atraído, como a flor fenecida pela Terra, na Luz que deu luz às estrelas: que agora também ficando para trás: é a Pura Luz que chama, Chama onde mergulha e na qual se funde o perfume: o Perfume: indo cada vez mais fundo através dessa Luz até tocar a Semente Sem Luz, a Semente que nem Luz é ainda: diríamos: a Semente sem semente: agora estamos no Coração do coração sem coração das coisas: e aí, eis: então alguma coisa vibra imperceptivelmente ainda não coisa: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é uma semente: a Semente que está, sempre esteve nascendo no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria. Ponto final. Eu te pergunto: saímos do mesmo lugar? Não. Esta não foi uma viagem entre dois pontos, foi uma viagem entre um ponto e ele mesmo. Não há dois pontos e um espaço entre eles a percorrer. Só a viagem: a Viagem. Só ela acontece. Só a ela é dado acontecer. Andara é essa viagem, entre dois pontos que não existem. Andara é o Lugar de Nenhum Lugar, por isso é o Lugar de Todos os Lugares. Para poder tocar essas dimensões, Andara não é mais Literatura, é Escritura e desvio onto-introspectivo, em relação à Literatura. Eu só creio na Literatura praticada como ontologia e na Palavra praticada como vida. Em relação à Literatura e à Vida, Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres. Que permitem ver O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda não haviam sido deformados como oposições que se excluem mutuamente. No Segundo Manifesto Curau você passa às gerações de amanhã a responsabilidade pela Amazônia. Como quem diz: - Agora caberá a vocês zelar para que ainda exista o Sagrado na Terra, ou não. E quanto a Andara, qual será o Futuro de Andara? Você não se inquieta que Andara seja mantida à margem do grande mercado editorial e quase inacessível aos leitores, numa posição marginal semelhante a da Amazônia em relação à Civilização? Qual seria o destino final de Andara? Um destino mítico?


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VFC: Bem, isto já é uma Arqueologia do Futuro. Sobre isso eu volto a dizer: - Os livros de Andara sempre terminam, devessem terminar com a frase: A viagem a Andara não tem fim. Admitir que os livros escritos de Andara pudessem ter um fim, isso seria como admitir que a vida visível pudesse tem um fim. Não peço que ninguém me acompanhe nisso que agora vou dizer, se não foi chamado pelas cigarras, se não teve a experiência do Homem em flor, que eu tive e contei em outro lugar, mas dela aqui não falei, se não recebeu e tem guardado um pássaro dentro do peito como o que um dia entrou no meu e nele até hoje habita. Para ter um fim, uma coisa precisa existir. E os livros visíveis de Andara existem, a vida visível existe? A vida, a visível, escrita ou vivida, é da natureza das miragens. É isso que oscila entre o Florescer e o Fenecer. Ser de empréstimo, transeunte. Seu encanto é sua natureza de passagem. Suas palavras favoritas são Sonho, Efêmero, Fugaz. Existe é o transbordamento do Vazio, o vazio no centro que faz toda a roda girar. Existe é Vida invisível, mas dessa: Dessa: como falar a propósito dela a palavra Fim? Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de existir um dia, e o Sol, a Terra, a Amazônia e talvez os homens como hoje são conhecidos – quando tudo o que existe deixar de existir, a Viagem a Andara oO Livro Invisível que não é escrito continuará existindo em sua existência de não-livro. Com Andara se deu o Gênesis dos caminhos vegetais, ao longo desses anos todos de surgimento do livro invisível: Andara começou como uma Semente: era apenas um bairro esquecido à beira de um rio indolente da cidade de Santa Maria do Grão habitado pelos


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mortos de um cemitério esquecido e a floresta ia retornando sobre a Civilização, recobrindo tudo: depois Andara se tornou um Arbusto: foi quando ela, crescendo, se expandindo, se tornou a Amazônia inteira: depois, eis Andara Árvore, e dando seus frutos: foi quando sua expansão a levou a se tornar uma região-metáfora da vida inteira: agora, nos últimos livros escritos de Andara que vão nutrindo o não-livro invisível, eis Andara Floresta: ela pulsando lá, no bairro esquecido inicial, mas já vai indo desse pequeno bairro esquecido da cidade do Grão até as distantes Galáxias, imensas. Andara sempre quis e o que mais quer é ir do Visível ao Invisível. E isso não é o caminho para um fim, que é sempre uma Queda, mas um percurso para a origem: a Origem de Tudo, o que é uma Ascensão. Aquela Alquimia em que tudo cesse suas vidas separadas e se funda no Uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em Escritura, insetos e homens, o Visível e o Invisível, o dito e o não dito, o Silêncio e a Voz, a página branca e a página escrita, o sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que abra a Fenda por onde tudo se reencontre na Unidade Original. Andara tem um secreto sentido, mas não está onde parece estar sendo buscados pelos leitores, pela crítica especializada em Literatura, porque não é um sentido simplesmente literário: a Chave para Andara só pode ser achada na própria Vida, é inútil buscar nela como apenas Literatura. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e, aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me foi transmitida por aquela florzinha que bebeu a água dos meus olhos quando eu era criança. E então se lerá Andara. É essa Alegria que escreve Andara. Não eu, que sem ela provavelmente jamais escreveria nada. É ela, como já disse, que através de mim inscreve o Vazio em Andara. Mas não é tão preocupante assim que Andara esteja um tanto fora do Mercado de Livros. Na verdade, não está. Como poderia, se o Mercado de Livros, como os insetos e as estrelas, já está dentro de Andara? A Imaginação é a nossa maior boca de perguntas, contém tudo. Em Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore, e darei frutos? Se o Vento se pergunta: que Pulmão me emite como voz sem palavras, por que às vezes cesso, e é como se nunca houvesse existido? Se o Homem se pergunta: a minha sombra é mais real que eu? Todas essas perguntas deixam de ser perguntas no momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Então, o que é e o que não é e o que será e jamais será, ou já foi – tudo se absorve em Andara, que, reconhecendo a ignorância humana, é Terra de Hipóteses. Melhor assim do que a arrogância tola de um Saber que ainda não temos. Mas vê que eu não sou o que se chama de um pessimista: eu disse: - Um Saber que ainda não temos.


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ContĂŠm Fonte dos que dormem, livro de 2009 com cantos/poemas de Andara


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