oliberal
Belém, domingo, 15 DE setembro de 2013
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Conversa com Manoel de Barros Me responda em zero linhas, Manoel: - O que foi que o Oceano disse para a água dos olhos?
R
Nós somos homens invisíveis. Depois de nascidos, visíveis. Entre o início invisível e o invisível final, nós somos os homens visíveis. Aproveitemos para ver-nos Foi o fim das minhas resistências: eu tinha que mandar O livro invisível para você ver. E mandei uns dos livros visíveis do Invisível. Sabemos que leituras são nutrições tão íntimas. Daí o meu temor de violar o seu desejo, direito ou fome de escolher aquilo que você quer ler. Então, é preciso que muitas convergências atuem nesta ação: regiões se inclinando umas para outras, textos em que se aproximam vontades de abolir o texto, e: a cotidiana intervenção: a mão humana, de alguém, no caso a do meu amigo, se movendo para unir o que até então estava vivendo inocentemente separado. Ah, que Mão Oculta aproximará os homens separados, hein Manoel? Sendo as mãos humanas só um vestir de carne os gestos aproximativos dessa Mão sem mão?
umorejante & remoto Manoel de Barros,
agora as minhas águas estão fluindo daqui da Amazônia em direção às suas, aí no Pantanal. E esta conversa vai à deriva para você Mas vamos por escamas, uma a uma. [Ainda não sei o motivo disso querer começar assim tão liquidamente, pois veja: quantas palavras úmidas neste início] Talvez se trate do fenômeno chamado encontro das águas. Pois: Você avançou até chegar no seu Livro para nada Eu comecei por um Livro invisível Você, desde que lhe entendo, é escrito, mais do que escreve, por uma região: o Pantanal Eu, desde que me desentendi de mim, venho sendo escrito por outra região: a Amazônia Issos, essas navegações, já seriam um começo de conversa entre nós, Manoel, se dando à distância, sem que soubéssemos? E a origem da Umidade inicial desta conversa? E o Pantanal e a Amazônia são duas coisas? Ou uma só é a Face da multidão das coisas? Sei bem que não lhe espanto, Manoel: e eu, por mim, já estou espantado há muito tempo para me espantar com um novo espanto. Será? Sermos Seres de Espanto? E nem sei se isso é uma conversa ou um anzol, ou uma brisa de rio que está indo lhe tocar no vento Estranhos são os caminhos. E se eles se encontram, e se nos encontrássemos aqui, seria porque só há um caminho: O Caminho? E o difícil não seja se achar – mas se perder um do outro? Ó esfera, ó severas circulações aéreas Ó espelhos, ó seres se buscando enquanto há tempo, Manoel. Nós, Uróboros? Só sei que esse meu gosto pelas Ausências me deu o Dom de falar de mim, sem Pudor, como de um outro, o que é bom Seus livros eu já tendo quase todos, ou todos – então, seguindo o Tao e sua Determinação: enviei os meus para você. Foi quase tudo o que contém a Viagem a Andara oO livro invisível. Na verdade, uns enviei – mas a maioria dei mesmo foi na sua mão, na sua casa em Campo Grande. Revelo isso, mas me calo sobre as vertigens daquela nossa conversa. Sei lá se você quer que outros saibam o que nos dissemos e espreitamos por aqui e por ali sobre a vida revelada e a vida oculta. Mas eu disse, mais acima - Meus livros? - Seus livros? Que conversa mais estranha, não é? O que acharia dessa linguagem de egos o poeta do Livro, Jabès, pois ele dizia: - Tu és aquele que escreve e é escrito Com o que Jabés não eliminava a primeira hipótese: a de sermos autores dos livros que escrevemos, mas introduzia uma segunda: a de os livros serem os nossos autores. Então nem meus nem seus, eis os, apenas digamos, nossos livros se encontrando
Da Amazônia ao Pantanal
Com quem se poderá falar dessas coisas, senão com nossos próprios livros, desses véus a serem erguidos com delicadeza - e às vezes com fúria de tudo ver logo de uma vez daquilo que está por trás da Vida: o Véu? Olhe, Manoel, às vezes me pergunto se devemos mesmo ultrapassar nossas fronteiras, certos limites do bicho que habita no homem em nós. Devêssemos? Permanecermos miúdos como os insetos da Terra? Nos ampliarmos até o Lá das estrelas? As estrelas também nos escrevem, Manoel? Os insetos também nos escrevem, Manoel?
Vicente Franz Cecim
Espero que se entendam bem e acho que, sim, se darão bem como as nossas florestas-também-de-verbos, seu Pantanal e minha Amazônia, pois se os livros que o escrevem amam o mínimo e os que me escrevem amam ausências. Na verdade, nem eu nem você tomamos a iniciativa de um encontro entre nós, que só se deu e foi crescendo no tempo porque um Agente de Ligação surgiu, oh, assim tão aparentemente circunstancialmente involuntariamente, taoisticamente – isso sim, e gerou aquele primeiro mero roçar, mas fatal, entre nós: seu nome,
Manoel de Barros
Carlos Verçosa, autor de Oku, Viajando com Bashô. Ele encontrou você na Bienal do Livro em São Paulo, lhe deu o livro dele, lhe falou um pouco de mim, e você me mandou por ele o Livro sobre nada com uma dedicatória escrita depois deste diálogo: Manoel: - De onde o Vicente é? Carlos: - De Belém do Pará. Manoel: - É paraense? Então é poeta. E assim foi que a dedicatória veio com Para o poeta etc Quando meu amigo me deu seu livro, na Bahia, onde então eu decorria um tempo da minha vida, só posso
lhe dizer, Manoel, que minha alegria nasceu diretamente de para mim você já ser a nova alegria da língua portuguesa, a alegria de termos agora você deste lado do Atlântico e eles Fernando Pessoa lá do outro lado. Mas eu, amigo das ausências, e você, amigo do mínimo, fiquei foi muito tempo sem responder pelo seu livro com um livro meu. Até que um dia o meu amigo Carlos me acusou de ser um mal-educado – na verdade era timidez - e, golpe fatal, de incoerência, pondo diante de mim a primeira página da Viagem a Andara e me fazendo ler o que nela havia escrito:
O Livro sobre nada Manoel de Barros l
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. l Tudo que não invento é falso. l Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. l Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. l É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. l Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia. l Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário. l A inércia é o meu ato principal. l Há histórias tão verdadeiras
que às vezes parece que são inventadas. l O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito. l A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. l Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos. l Por pudor sou impuro. l Não preciso do fim para chegar. l De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península. l Do lugar onde estou já fui embora.
O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas dele. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.
Para mim, escrevem. E as pedras também. Sobretudo quando nos atingem musicalmente a Fronte aquelas pedras que rumorejam à sombra das Fontes, fazendo literatura oral. As dos desertos têm estilos áridos? E os ditos mortos, Manoel, continuam nos escrevendo do passado? E por que não, se há do outro lado a Caligrafia do futuro de tudo o que ainda está por vir nos falar, por enquanto apenas pulsando nas páginas ainda em branco dos amanhãs? Às vezes acendo um fogo à noite, Manoel, para tentar me iluminar sobre essas coisas – e claro que é o mesmo Fogo que na floresta Andara acendem os personagens que surgem nas páginas dos livros visíveis que vão escrevendo o jamais escrito não-livro invisível. E aí, ao lado desse meu foguinho humano, aceso à noite sob estrelas, no dorso peludo da Terra, espero que me falem as vozes da Amazônia, como certamente falam com você as vozes noturnas do Pantanal. E é bom que sejamos habitantes de regiões-falantes, onde ainda podemos ouvir o que a Natureza tem a nos dizer, longes dos bramidos urbanos. Como o Rosa do Sertão. E quando elas nada nos dizem, pelo menos falamos sozinhos com a gente mesmo, como os fugidos dos hospícios pelas ruas nas cidades. Você, Manoel, se dizendo através das páginas do Livro sobre nada: - Tem mais presença em mim o que me falta O João Guimarães Rosa se dizendo através das páginas de Tutaméia: - Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo E eu, em eco com as vozes de Estrelas de vocês, com a minha voz de inseto saindo das páginas de Silencioso como o Paraíso: - A gente tem é saudade de voltar a não ser nada