Belém, domingo, 29 DE setembro de 2013
oliberal
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Sobre Homens Clarões Por que tu vigias? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí. KAFKA
C
ertos homens são como um farol, surgem no mundo como um Clarão na escuridão. Sem que eles façam suas Aparições, em todas as épocas, sobretudo nas mais carentes de Luz, como um relâmpago que o Cosmos semeia na Terra, o rebanho humano mal conseguiria vislumbrar o seu caminho. Leonardo da Vinci é um desses raros homens de luz. Um desses vagalumes humanos que cintilam aqui e ali através das mil e uma gerações anônimas, projetando do passado no presente seu rastro luminoso para nos guiar em nossos obscuros caminhos, a nós, os vagueantes do Universo, os arrastados na dança das Galáxias daqui para Lá – esse Lá oculto que não se sabe Onde fica e o que nele nos espera – através do visível em que fomos depositados, aqui, na bela esfera azul e verde semeada pelo Invisível. Nas cintilações de Leonardo, todos os que vieram depois, trazendo também suas luzes, nutriram suas chamas. Um deles foi Freud, o criador da Psicanálise, que disse de Da Vinci: – Ele foi um homem que acordou cedo demais na escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir. Alguns desses homens luminosos chegam anunciados por uma Estrela fulgurante, como a que guiou os Reis Magos até Belém de Judá – embora eles só tenham encontrado um Menino envolto em trapos no meio de animais, numa manjedoura, a quem dar seu Ouro, Incenso e Mirra. Outros, como Leonardo da Vinci, não são anunciados e apenas fazem sua aparição discretamente, também na penumbra das manjedouras mais humildes – e desses nascimentos obscuros começam a jorrar sua luz sobre a Humanidade. No caso, uma inversão do chamado nascer em berço de ouro pois é a criança quem traz o berço de ouro, de onde o adulto mais tarde vai jorrar suas riquezas, dentro de si. Leonardo nasceu em 15 de abril de 1452, na terceira hora da noite, a chamada Hora do Lobo - quando mais se nasce e mais se morre, no vilarejo de Anchiano, na comuna italiana de Vinci, na Toscana, no vale do rio Arno, território na época dominado por Florença. Filho ilegítimo de messer Piero Fruosino di Antonio da Vinci, um notário florentino, e de Caterina, camponesa que teria sido escrava trazida do Oriente Médio. Leonardo nem tinha sobrenome, da Vinci significa de Vinci, seu lugar de nascimento. Seu nome completo de batismo era Leonardo di ser Piero da Vinci, que significa Leonardo filho de Messer Piero de Vinci. O próprio Da Vinci mais tarde assinaria suas obras apenas como Leonardo - ou Io Leonardo: Eu, Leonardo. A partir desse ponto obscuro, ele se lançou. E não houve um só recanto da Imaginação e das atividades humanas da sua época, o Renascimento, em que não se veja a sua Presença inquieta e inquietante, inovadora: foi Pintor, Escultor, Arquiteto, Engenheiro, Matemático, Químico, Botânico, Geólogo, Mecânico, Anatomista, Fisiologista, Escritor, Poeta, Músico, Inventor – nessa área, o precursor da Aviação e da Balística, e abrangendo tudo isso – se fez grande Luz que o tempo só tem intensificado. Por que e de Onde nos veio esse outro Menino? O próprio Leonardo, que dizia só lembrar de dois momentos da sua Infância, nos indica o que considerava presságios: Parece-me que sempre fui destinado a me interessar muito profundamente por falcões, pois me lembro como uma de minhas primeiras recordações que, quando estava no berço, um falcão desceu sobre mim e abriu minha boca com a cauda, e me bateu
muitas vezes entre os lábios com ela. E nos conta o segundo presságio, que conteceu quando brincava nas montanhas da região: Depois de vagar por alguma distância entre as rochas projetadas acima, cheguei à boca de uma imensa caverna, diante da qual me quedei por algum tempo estupefato, pois ignorava a sua existência (…) e após ficar ali algum tempo, de repente despertaram dentro de mim duas emoções — medo e desejo — medo da escura e ameaçadora caverna, desejo de ver se haveria alguma coisa maravilhosa lá dentro. Eis, então, o próprio Menino nos dizendo de onde e para o que veio: de onde vem todo ser de espanto ao se ver nascido no Desconhecido, na forma de um Homem: da oscilação entre o temor & a curiosidade. Leonardo se desviou do Medo e tomou o caminho da Curiosidade. Avidamente. Tão avidamente que jamais saciou as exustivas tentativas de enquadrá-lo dos estudiosos e historiadores. Estonteados e arrebatados, suas tentativas sempre culminaram na pura admiração e permanente espanto - como aconteceu, por exemplo, com a estudiosa da sua obra Helen Gardner, que após anos de investigação minuciosa teve que se contentar com a conclusão: - A profundidade e o alcance de seus interesses não tiveram precedentes e sua mente e personalidade parecem sobre-humanos para nós, e o homem em si nos parece misterioso e distante. Mas Leonardo escreveu uma frase que, quem sabe, seja a Chave de que precisemos para entender como, a partir de um Leonardo, ele se multiplicava em tantos Da Vinci: A natureza benigna providenciou de modo que em qualquer parte você encontra algo para aprender. Leonardo está falando, aqui, objetivamente, de qualquer coisa que você encontra do lado de fora de si. E, por dentro, subjetivamente, como ele via esse homem que vai pelo mundo encontrando as coisas em seu caminho, e como Leonardo dialogava com elas? Assim: Quando ouvimos os sinos, ouvimos aquilo que já trazemos em nós mesmos como modelo. Sou da opinião que não se deverá desprezar aquele que olhar atentamente para as manchas da parede, para os carvões sobre a grelha, para as nuvens, ou para a correnteza da água, descobrindo, assim, coisas maravilhosas. O gênio do pintor há de se apossar de todas essas coisas para criar composições diversas: luta de homens e de animais, paisagens, monstros, demônios e outras coisas fantásticas. Tudo, enfim, servirá para engrandecer o artista. Foi dessa forma de se postar ampla e profundamente perante as coisas que nasceram os Da Vinci em Leonardo. Para dar conta de tanto, ele se fez muitos. E se fez, sobretudo, mais do que apenas um inventor, um: Vidente - porque esses Da Vinci, em Leonardo, anteciparam muitas coisas que ainda estavam por vir e, primeiro surgindo para ele, só se manifestaram para todos os homens séculos depois que ele passou por nós. Uma dessas antecipações foi a enunciada no que ele disse acima, quase meio milênio antes de uma das conquistas mais insurrectas da Arte do século XX. Quando diz: - não se deverá desprezar aquele que olhar atentamente para as manchas da parede – Leonardo se tornava já o surrealista Max Ernst, o criador da frotage na Pintura. Ernst um dia, sonolento, no banco de uma velha estação de trem, caiu na fenda entre os estados desperto/adormecido e começou a ver imagens, seres, cenas nas manchas das taboas gastas do assoalho da estação. Aplicou folhas de papel sobre elas, e esfregou, frotou, com um lápis, o papel sobre a madeira e depois fez
vir à tona, visualizando as sugestões de imagens esboçadas no papel que vira, com pincel e a tinta, em seu estúdio, alguns dos seus quadros mais perturbadores – como Europa Depois da Chuva. Para ser muitos, para ser tantos, Leonardo não apenas concebeu um outro ver humano, em profundidade, esse – um ver capaz de ver no apenas entrevisto. Ele também abandonou a certeza de um ponto de vista único, fixo, intuiu um olhar móvel, e, nesse sentido, fez outra antecipação de algo que igualmente ainda estava a caminho para se manifestar só nos nossos tempos – praticamente antecipou o olhar da física quântica através do princípio da incerteza, formulado por Heisenberg. Em seu Tratado sobre a Pintura como que já ouvimos Einstein
falando da sua Teoria da Relatividade, quando Leonardo diz: Uma mesmíssima atitude se revelará infinita, pois pode ser vista de infinitos lugares. Outra antecipação de Leonardo: o papel transbordante da Mente, além da dimensão física do Cérebro, descoberta feita através dos cérebros mortos a que estavam limitadas suas investigações sobre Anatomia. Um dos Da Vinci viu como esse cérebro avança e se estende por todo o corpo, através da espinha dorsal, se ramificando através das terminações nervosas – isto é: viu que o cérebro ocupa todo o corpo - o que só hoje soube a Neurociência, mas já observando cérebros vivos através das modernas tomografias computadorizadas. Em um livro de 2005, Michael O’Shea, neurocientista, volta a Leonar-
Kafka: O Timoneiro “Não sou o timoneiro?” – exclamei. “Você?” – disse um homem alto e escuro e esfregou as mãos nos olhos como se espantasse um sonho. Eu estive ao leme na noite escura, a lanterna ardendo fraca sobre minha cabeça e agora vinha esse homem e queria me pôr de lado. E já que eu não me afastava, ele calcou o pé no meu peito e me empurrou para baixo devagar enquanto eu continuava agarrado aos raios do leme e na queda o tirava completamente do lugar. Mas o homem o pegou, colocou-o em ordem e me empurrou dali com um tranco. Eu porém me recompus logo, corri até a escotilha que dava para o alojamento da tripulação e gritei: “Tripulantes! Camaradas! Venham logo!Um estranho me expulsou do leme!” Eles vieram lentamente, subindo pela escada do navio, figuras possantes que cambaleavam de cansaço. “Não sou o timoneiro?” – perguntei. Eles assentiram com a cabeça, mas seus olhares só se dirigiam ao estranho, ficaram em semicírculo ao redor dele e, quando ele disse em voz de comando: “Não me atrapalhem”, eles se juntaram, acenaram para mim com a cabeça e voltaram a descer pela escada do navio. Que tipo de gente é essa? Será que realmente pensam ou só se arrastam sem saber para onde sobre a Terra?
Narrativas do espólio Tradução: Modesto Carone
do em 1500, para prestar a ele o seu reconhecimento: – Da Vinci iria fazer algumas das mais importantes observações sobre o cérebro. Tendo sido o primeiro a usar injeções de cera líquida na criação de moldes para estudar as cavidades internas do cérebro e outros órgãos, até mesmo o coração, ele determinou com exatidão a forma e a extensão das cavidades cerebrais. Mas dizer apenas isso não diz tudo da visão todo-abrangente de Leonardo do conjunto integrado mente-cérebro-corpo. Ele escreveu: As mãos e os braços, em todas as suas ações, devem exibir a intenção da mente que os move, até quando for possível, porque, por meio deles, quem tiver um bom julgamento mostrará intenções mentais em todos os seus movimentos. Nos seus escritos sobre os princípios que seguiu na Vida e na Arte – além de em suas obras – há pistas para entendermos o homem em si misterioso e distante que Leonardo nos parece ter sido, origem dos muitos Da Vinci que foi. Leonardo realizou essa multiplicação de Si seguindo alguns princípios básicos, fielmente. E alguns deles foram: Que o teu trabalho seja perfeito para que, mesmo depois da tua morte, ele permaneça. Que o teu orgulho e objetivo consistam em pôr no teu trabalho algo que se assemelhe a um milagre. Uma das visões mais belas da missão a que se doam inteiramente, em todas as épocas, esses Homens Clarões como Leonardo Da Vinci foi feita por Kafka, outro deles, em um fragmento que nos deixou com o título À Noite. Nela, Kafka descreve, para si mesmo, a sua missão. Ei-la, traduzida do original alemão e inserida no livro Narrativas do espólio que acolheu postumamente coisas que foram escritas por ele aqui e ali e achadas em seus cadernos: Afundado na noite. Como alguém que às vezes baixa a cabeça para meditar, totalmente afundado na noite. Em torno as pessoas dormem. Uma pequena encenação, um inocente autoengano de que dormem em casas, em camas firmes, sob o teto sólido, estirados ou encolhidos sobre colchões, em lençóis, sob cobertas, na realidade reuniram-se como outrora e mais tarde, em região deserta, um acampamento ao ar livre, um número incalculável de pessoas, um exercito, um povo, sob o céu frio, na terra fria, estendidos onde antes estavam em pé, a testa premida sobre o braço, o rosto voltado para o chão, respirando tranquilamente. E tu vigias, és um dos que vigias, descobres o mais próximo pela agitação da madeira em brasa no monte de galhos secos ao seu lado. Por que tu vigias? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí. Essa vigília, embora quase sempre sobre as espreitas da Dor, Leonardo a praticou, também, à sua maneira lúdica, assim: Faça sempre suas figuras de tal modo que o tronco não esteja orientado na mesma direção da cabeça. Deixe o movimento da cabeça e dos braços ser suave e agradável, valendose de diferentes giros e torções. Sejamos gratos a esses homens vagalumes, como Leonardo da Vinci, como Franz Kafka. O que seria de nós, vagueantes da Penumbra, sem seus Clarões?
Alguém precisa vigiar. Alguém precisa estar aí.