oliberal
Belém, domingo, 3 DE novembro de 2013
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Nasrudin: O Tolo Sábio Nasrudin perdeu seu burro, e saiu gritando: - Graças a Deus! Graças a Deus! Perguntaram: - Graças a Deus por quê? - Eu não estava montado nele, se estivesse também tinha me perdido!
O
que você acharia de um dia dar de cara com Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança numa rua de Belém, saídos das páginas do livro de Cervantes, já em si assombroso como Imaginação e criação literária? Pois foi o que aconteceu comigo na Espanha. Um tarde, já indo para as sombras do Crepúsculo, na praça principal de Madri. A praça estava cheia de gente, pois os espanhóis madrilenos acordam tarde e mergulham longamente em noites animadas atravessando as madrugadas. E de repente, no meio daquela multidão de rostos desconhecidos, vi dois que conhecia de longas datas. Mas era estranho: eles eram rostos de conhecidos desconhecidos. Como os crepúsculos são sempre enfeitiçadores, em qualquer parte do mundo, e este, especialmente, lançava sobre a praça de Madri seus mais poderosos encantamentos – pois no Céu permanecia intensamente o Sol e já uma grande Lua amarela havia surgido, envolvendo tudo na luz alucinante dos Eclipses - achei que estava sonhando acordado, ali, no meio daquela gente toda. O que se confirmou em seguida, pois todos ao meu redor, de repente, se tornaram miudinhos como formigas. E aquele dois conhecidos desconhecidos, que já pareciam muito grandes vistos à distância, sob o efeito das sombras do poente, inversamente cresceram
mais ainda. Bem, sendo um sonho, pensei, não há o que temer. E avancei destemidamente para seus enormes vultos, mais temíveis porque embuçados pelas sombras – tomando o cuidado de não pisar naquelas formigas humanas que estavam em meu caminho, entre eles e eu – que, curiosamente, era o único que continuava do meu tamanho humano. O que levantou em mim a suspeita de que elas, as pessoas na praça de Madri, é que estavam sonhando, e eu havia penetrado no sonho delas. Mas logo me tranquilizei, porque já havia visto isso acontecer em vários contos de Borges. Ora, essas coisas são normais, me disse. Para imediatamente voltar a ficar inquieto, quando ouvi a voz de um espanhol, que passava por mim conversando com um amigo, dizer a ele: - Pero esto no és un cuento de Borges. Fui em frente, cheguei ao pé dos altos monstros embuçados e erguendo os olhos da minha mera estatura humana para os seus dois rostos vi um só Rosto diante de mim: o de Gustav Doré. A esta altura, fascinado por todos esses acontecimentos feéricos mas também já doido para voltar para Belém, onde essas coisas – infelizmente, devo confessar - não acontecem, o Sol se pôs, o Crepúsculo se foi, as Sombras se desfizeram na praça e a grande Lua enfim dominando sozinha o Céu lançou sua luz cristalina diretamente sobre o vul-
Nasrudin: Estátua em praça de Boukhara tos, e os desembuçou. Vi seus rostos, enquanto as pessoas deixavam de ser formigas na praça e voltavam ao seu tamanho de gente. E eram eles: - Dom Quixote e Sancho, conforme os reconheci das gravuras que Doré fez para ilustrar antigas edições de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha de Miguel de Cervantes Saavedra, tomos I e II. E não estavam sós, mas com seus companheiros inseparáveis de loucas aventuras: Dom Quixote montado em Rocinante e Sancho no seu burrinho. Olhei ao meu redor para toda aquela
gente passando sem dar a menor atenção a eles, pois suas estátuas de tanto ver já não viam, apenas para delas se desviar, e disse a mim mesmo: - Mas como é que eles não ficam espantados de ver os dois no meio deles, aqui na praça, saídos das páginas do livro? Mas essas coisas são mais comuns do que parecem. E foi o que aconteceu com Nasrudin, o Mullah, o Tolo Sábio Sufi, que também saiu das páginas dos livros e hoje vive no meio da vida cotidiana de todos os povos do mundo árabe. Ensinando pelo riso.
Histórias do Mullah V
I
“Ladrão! Ladrão! Alguém roubou o meu camelo!” gritava Nasrudin.
“Nasrudin, por que as pessoas riem de você?” “Bem,” disse Nasrudin, “pense em mim como um turbante. A natureza da risada não expõe a verdade. Se as pessoas rirem de si mesmas, se sentirão nuas. Portanto, eu lhes sirvo de uma cobertura para a cabeça.”
Finalmente quando a comoção se aquietou, alguém disse: “Mas Nasrudin, você não tem nenhum camelo!” “Ssss...”, disse Nasrudin. “Estou torcendo para que o ladrão não saiba disso e que devolva meu camelo.”
“Mas Nasrudin, elas continuam nuas!”
VI
“Psiuuu,” fez Nasrudin, sorrindo.
O Mullah se gabava por sua força: mesmo tendo envelhecido, ela não havia diminuído.
II O juiz da corte de uma cidade entrou de férias. Pediram a Nasrudin que julgasse, temporariamente, naquele dia. Nasrudin sentou na cadeira do juiz, com um semblante sério, olhando os presentes: ordenou que se iniciasse a audiência do primeiro caso.
“Eu sou tão forte quanto quando era jovem.” “Como pode ser isso?”, lhe perguntaram.
Então, Nasrudin disse ao rei: “Vossa Alteza, como pode acreditar nestes homens? Não lhe parece estranho que não consigam entrar em acordo sobre a natureza de algo que comem todos os dias enquanto são unânimes em me declarar herege?”
VIII O dervixe Nasrudin ingressou em uma recepção formal e se sentou na cadeira principal, a mais elegante. O Capitão da Guarda se aproximou e disse: “Senhor, tais lugares são reservados para os convidados de honra.” “Oh, mas eu sou mais do que um mero convidado”, lhe confidenciou Nasrudin. “Ah, então és um diplomata?” “Muito além disso!” “Sério? Então és um ministro, talvez?”
“Você está certo”, disse Nasrudin depois de ouvir um dos lados.
“Existe uma grande pedra do lado de fora da minha casa. Eu não poderia movê-la no passado, nem posso movê-la agora!”
“Você está certo”, disse Nasrudin após ouvir o outro lado.
VII
“Mas ambos não podem estar certos!”, disse um dos presentes à audiência.
Os três sábios do rei acusavam Nasrudin de heresia: ele foi trazido à presença do rei para ser julgado.
“Oh! Então deves ser o próprio Rei, senhor”, disse-lhe o Chefe, sarcasticamente.
“Você está certo também”, disse Nasrudin.
III Nasrudin estava com seus comparsas tomando um café: Eles discutiam a morte: “Quando estiver em seu caixão e seus amigos e familiares estiverem lamentando sua partida, o que você gostaria de ouvir eles dizendo sobre você?”
O primeiro parceiro disse: “Eu gostaria de os ouvir dizendo que fui um dos grandes médicos de meu tempo, além de um excelente pai.” O segundo disse: “Eu gostaria de ouvir que fui um excelente marido e professor, tendo feito uma grande diferença no amanhã de nossas crianças.” Nasrudin disse: “Eu gostaria de os ouvir dizendo... Vejam! Ele está se mexendo!”
IV Um viajante, passando por uma cidade, se deparou com um gigantesco cortejo funerário. Nasrudin permanecia em uma esquina, observando as pessoas passarem. “Quem morreu?”, o viajante perguntou a Nasrudin. “Não estou certo”, ele respondeu, “mas acho que é aquele ali no caixão.”
Em sua defesa, Nasrudin perguntou aos sábios: “Oh, homens de conhecimento, o que é o pão?” O primeiro sábio disse: “Pão é sustento, comida.” O segundo disse: “Pão é a mistura de farinha e água exposta ao calor do fogo.” O terceiro disse: “Pão é uma dádiva de Deus.”
“Não, maior do que isso também.”
“Maior do isso!” “O que? Maior do que o Rei?! Ninguém é maior do que o Rei nesta vila!” “Chegou onde queria. Eu sou Ninguém!”, disse o Mullah.
IX “Nasrudin, sua religião é ortodoxa?” Nasrudin respondeu: “Depende de qual bando de hereges está no poder.”
Mas quem foi Nasrudin, o Mullah? Isso, exatamente, não se sabe. Dizem que viveu e se foi no século XIII, em Akshehir, perto de Konya, capital do Sultanato de Rum Seljuk, na atual Turquia. De lugar para lugar e de língua para língua árabe, transbordando para línguas próximas, o seu nome sofre variações: é Nasreddin Hoca, em turco otomano, Nasraddin Juhã, em urdu, Nosiriddin Xo’ja, em uzbeque, Nasreddin Hodja, em bósnio e muitas outras mais. Uma única coisa não muda: ele é o Mullah, o Tolo Sábio que pelo riso se tornou o mestre popular de todos os povos do Oriente Médio e adjacências. E sete séculos depois, cinco dias são dedicados a ele na Festa Internacional de Nasreddin Hodja, entre 5 e 10 de julho, em sua cidade natal. O que ele de fato fez e disse e o que inventam e contam que lhe aconteceu e viveu já não faz a menor diferença. Todo dia pode aparecer alguém contando uma nova história do Mullah, enquanto outros continuam repetindo suas histórias já de todos conhecidas. Ele está nos livros, teatro, filmes, televisão, histórias em quadrinhos, circos e nas praças dos mercados árabes como boneco de ventríloquos conversando com adultos e crianças. Todos riem. E rindo tiram do Mullah e suas aventuras e ensinamentos muitas lições úteis para aplicar nas suas vidas. Nasrudin, o Mullah, fez o percurso inverso de Dom Quixote. Enquanto Dom Quixote foi deixando de ser Personagem e se tornando real para muita gente, que acredita que ele existiu mesmo, Nasrudin foi deixando de ser real para se tornar Personagem de uma criação coletiva do povo árabe. Que tal também aprender rindo com o Mullah? Como propôs Roland Barthes em sua famosa aula inaugural no sisudo Colégio de França, com um mínimo de saber e um máximo de sabor?