Belém, domingo, 29 DE dezembro de 2013
oliberal
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Sonhos da Lua Branca Eu devo estes papéis à lua branca, e agora eu lanço eles no vento para que o vento leve até vocês Da VIAGEM A ANDARA
O Sonho
F
oi olhando a lua branca que eu adormeci um dia. Era também num fim de tarde. E nesse sono, colhi estes papéis Foi do fundo do olho que a lua branca me fez ver, nela, homens numa praia, e esse sonho então quis se tornar estes papéis - Deixe eu lhe contar agora o que a lua branca me fez, dizia um dos homens. A lua branca. A que só aparece de dia, ele disse. Eles eram dois, estavam sentados em volta de um fogo, e numa praia. Era num fim de tarde. E no alto a lua ainda era visível, esperava a noite chegar para sumir no céu. O que falava apontou para ela. Disse: - Olhe. E ela. Você sabe, a lua branca. Não a amarela, a que alucina, a que se vê à noite. A branca, se alguém olha para ela como eu fiz um dia, estava dizendo, vai adormecendo, adormecendo, e tem um sonho. Foi o que aconteceu comigo. O outro ficava em silêncio. Veio um vento, agitou de leve a areia. A praia toda deserta, só aqueles dois ali. - A lua branca, dizia o que falava, ela é uma outra vertigem. Não a amarela, dizia. A branca nos alucina de olhos abertos, nos força a fechá-los. Por isso só aparece de dia, para que tudo seja mais real. O outro ouvia. Uma ave passou por eles, e foi embora, a única coisa que aconteceu durante um tempo em que o homem que falava ficou olhando a lua no fim da tarde, e as primeiras estrelas iam começando a aparecer. - Veja, ele disse. É de olhos fechados que lhe conto isso, o mais real. E nesse sonho que tive, depois de olhar a lua branca, me vi numa praia, assim como agora estamos aqui nesta praia. Lá de cima ela deixava tudo sob uma luz pálida, irreal. Aquela praia me apareceu assim toda como num sonho, já que era mesmo um sonho isso. Há o mais real no que lhe falo. Pelo menos me pareciam reais aqueles dois que vi, longe, nessa praia, sentados na areia, e também conversavam em volta de um fogo como estamos fazendo, sem notarem a minha presença ali naquela praia feita de sono que era deles. Contra o mar ao fundo e um céu que ia escurecendo sobre nós, vi aqueles dois feitos de sono como a praia, e me aproximei deles. Mas as estrelas não tendo ainda surgido, a lua branca desapareceu. E perdi os dois de vista quando a noite caiu como uma pedra, de repente, e sobre a praia, a outra, a amarela, veio no alto com sua febre de um ouro que é a forma circular mais exata da loucura, e me fez cambalear. Tropecei na areia que é a nossa vida por baixo, desejei que não fosse assim e não vi mais os dois homens nem a praia. A amarela é assim, disse o homem que falava. E os dois olharam o céu. Ele continuou. - Naquele sonho, tentei várias vezes me aproximar dos homens que via na praia. Muitas vezes. Mas a lua amarela fazia isso comigo. Se eu caminhava para eles na praia, no sonho ela voltava. A branca sumia. Ainda não havia estrelas. E uma maldição amarela me jogava outra vez na areia de joelhos. Quanto tempo aquilo durou, não sei. Vinha a branca, reaparecia, iluminava a praia. E eu os via. Desaparecia. Voltava a amarela. Me jogava na praia de joelhos. E tudo sumia outra vez sob a luz amarela.
- Mas a branca é mais terrível. A que se vê nos dias. Consegui afinal me aproximar daqueles homens na praia. Veja o que vai me acontecer. Foi me aproximando como areia, me deixando ir rolando pela praia, levado pelo vento, insignificante, humilde, um grão, quando já não tentei mais me aproximar por mim mesmo, e agora vinha esse vento e me levava para eles. Cheguei perto e vi: aqueles dois tinham o meu rosto. Não um rosto para cada um como você tem o seu, eu tenho o meu, veja. Um único rosto. Veja o que me fez a lua branca. E me faria ainda mais. Porque naquela praia um deles estava dizendo, Deixe eu lhe contar agora o que a lua branca me fez. Veja, grite, corra daqui antes que eu conte o resto. Naquela praia de sonho aquele homem com meu rosto dizia isso a um outro homem de sonho também com meu rosto. Sim, as mesmas palavras que depois, ainda agorinha eu viria a dizer a você. E numa praia igual, num fim de tarde igual a este, com a branca também por cima dele como está agora sobre nós. Tudo é igual. As rimas. Elas estavam nesse sono em que eu caí por ter olhado um dia a lua branca como fiz. E mais rimas. Porque um deles, o que ouvia, até tinha a curiosidade medrosa que você tem agora me escutando. E essa sua cara de assombro, temendo o que o outro ia lhe dizer, fazer aparecer para ele como esses monstros ou animais de melancolia que temos em nós e às vezes irrompem e quando surgem fazem transbordar algo aterrador e isso é um medo sem remédio. Cada um tem o seu. Veja. Toda a simetria do que havia me acontecido e àquele homem estava no sonho, porque uma tarde tínhamos olhado a lua branca. Mas nessas rimas o medo ainda não era grande como podia ser. Você vai ficar, vai ouvir o resto? Fique, ouça. É no tempo mais remoto da espécie que estamos nesse sono. Ouça. Sentei na praia com aqueles dois. E fizemos os três um rosto só. E esperei. - Avive o fogo. Acredite no fogo antes das cinzas. Dizia o homem na praia. E o que escutava fez o fogo crescer. - Você não fugiu. Ficou. Um medo ainda maior talvez ainda esteja vindo nisso que lhe conto. Veja, sentei na praia com aqueles dois, fizemos um rosto só. E esperei. O homem que falava naquela praia de sonho apontou para o céu. - Olhe. E ela, disse ao outro, você sabe, a lua branca, não a amarela. A que alucina. É a que se vê nos dias. E era como se eu estivesse ali falando. Longe, ouvi um peixe devorando um outro peixe no mar, não me pergunte como, não sei como pude ouvir isso. E lembre-se, não é fácil dizer com clareza o que a lua branca nos faz ver. Enquanto for ouvindo o resto, não esqueça. E aguarde o medo que talvez ainda está vindo na minha voz. O Medo? A lua amarela, estava dizendo o que falava em meu sonho, não foi ela que me fez o que estou lhe dizendo. Foi a branca. Não a amarela, essa que faz as águas terem esse desespero de subir de novo para o céu de onde talvez não se sabe nunca deveriam ter caído para dar forma a este animal peludo sobre as costas dele nós estamos, a terra. A lua branca, dizia aquele homem feito de sono, e dois rostos iguais, o meu e um outro olhavam para ele Nós não a vemos nas noites, dizia. E de dia que ela vem e fica no alto. Não a outra, ele dizia, a amarela, es-
Salvador Dali sa que à noite nos faz como as águas, repetia, querermos com um desespero infantil deixar a terra. Entenda, dizia, trata-se da infância perdida da vida, isso que desapareceu um dia. E um animal, dizia, está choramingando, é bem baixo, mal se ouve, tente, e coberto de lama e soterrado, as costas muito azuis, a terra Tente ouvir, dizia. Ouve? E longe. Ouça.
A História Em Andara iam uma vez um homem e um menino. Não falavam. Iam para onde não saberemos. Nele, no homem, havia uma dor, dura, com clamores. Clarões. O menino aparentemente apenas o seguia. Aparentemente nada tinha a ver com aquela dor, não a percebia e nem a tinha nele. Isso era só aparência. Porque com ele se passava outra e a mesma coisa: visto por fora, como o homem, nem chorava de dor nem ria, e no entanto diferente dele que olhava em volta o caminho, ansioso, selvagem, o menino ia lento e olhava para dentro de si como se buscasse alguma coisa achada nà distração de um sono e sumida corpo adentro, e perdida outra vez. Isso que perdera se mantinha em sua penumbra. Com o que se quer dizer que aquele menino estava descobrindo a vida Enquanto o homem, marcado, ansioso Bem. De todos os modos, iam juntos. O homem na frente e o menino atrás. Mas juntos. E por isso avançavam sob a mesma luz e o menino ia envolvido nos clarões da dor do homem, visíveis mesmo de uma grande distância a olho nu. Se por ali passasse alguém. Por ali porém não passava mais ninguém. E foi então que aquilo aconteceu. O homem parou. Abaixou-se. Pegou uma pedra do caminho. Olhou bem no fundo dos olhos distraídos do menino que andava sem atenção para as coisas em volta. Cai sem um gemido. Empalidece.
Rapidamente aquilo ia acontecendo. E o menino tomba. E a pedra após a fronte volta para o seu lugar no chão, e de novo é uma pedra igual às outras. Fica lá, onde estava. Espesso naquele instante o céu ia para a noite. Era o fim de uma tarde e anoitecia então sobre eles, um caído junto à pedra, e o outro olhando o que fizera. Nuvens vermelhas, fortes, apareciam no horizonte. Depois, ainda ali, o homem espantava uma ave negra que quis provar a carne do menino. Ele, o homem, olhou então para o céu e fez uma ameaça. Ameaça que também não saberemos qual foi, enquanto continuamos sem saber para onde estavam indo o homem e o menino. O homem fez a ameaça. E seguiu em frente pelo caminho, ansioso, selvagem. Agora, só. Sob o monte de terra, ficou o corpo pequeno pois ele o enterrara. Ficava ali. Também só aquele corpo. Ficava para trás. E o homem desparecia lá longe na distância. Mais tarde, a terra se movia. Era um escândalo com sua própria beleza aquilo. Mas ainda ninguém estava passando por ali para ver. A terra se movia depois que o homem havia desparecido misturando os clamores da sua dor aos clamores vermelhos do horizonte. Engolido homem, lá, no horizonte, e o menino nunca mais o viu? Que diriam vocês de uma amizade que terminasse assim? E então se deu: o menino deixou a terra e se elevou na noite. Recém-nascido de novo, órfão e cantava, agora, uma música que também não ouviremos. Na noite em que ele se elevava por cima da terra as aves foram ficando brancas, inteiramente, sob a luz da lua refletida na cicatriz na sua fronte. Essa cicatriz que também embranqueceria se o homem fosse perdoado. A noite durava. E pela manhã o pai voltou. Abriu com as mãos a terra. Não achou o menino ali. Foi a sua vez de afundar-se, de se cobrir de terra até seus olhos se fecharem sob ela.
Anoitecia já então uma segunda vez? Não. Era uma ilusão. E que no céu havia ficado a lua da noite anterior, agora branca e diante dela passavam outras aves. De uma pedra na margem do caminho onde estivera oculto e sentado, talvez rindo e olhando tudo, o menino vira o homem abrindo a terra e se enterrando. O filho salta dessa pedra. E vem. Não. Melhor seria: ele também havia ido ido embora. Teria deixado a terra e ido embora. Agora voltava. Procurava o homem ali. Não. Melhor seria: Nesse instante, o filho abria a terra onde estivera, bem ao lado do lugar onde o homem se enterrava, e ainda viu os últimos movimentos da terra o cobrindo. Cavou também com as mãos. Tirou o pai do buraco no chão, escuro e úmido. Ajudou-o a levantarse, limpou-o minuciosamente. E seguiram em frente. O homem e o menino. E iam para onde nunca saberemos. Iam naquela vertigem, sob a lua branca e um sol no alto outra vez e não falavam. Andavam. E aquilo estava acontecendo novamente. O homem abaixava-se, pegava uma pedra. Agora está olhando de novo no fundo dos olhos do menino. E, na fronte dele, a cicatriz, como das outras vezes, vai desaparecendo, embranquece, desaparecia, vai sumindo até desaparecer completamente. Assim é que em Andara uma vez iam um homem e um menino, diz o vento. Juntos. Para onde, não saberemos. Em sonhos? Na vida
* Esta página, a última do Ano Velho, seria sobre Anjos. Anjos do Ocidente & Oriente Médio & Oriente. Mas o Imanente predominou sobre o Transcendente, prendeu a página no meu computador e quis contar histórias dos Homens sobre a Terra. Os Anjos voarão no Ano Novo