Belém, domingo, 26 DE janeiro de 2014
oliberal
magazine n 11
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Vida Criativa I: O caminho das pedras Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra DRUMMOND
V
ocê é uma pessoa criativa? Em outras palavras: se você fosse Água, seria água corrente ou água estagnada? - Que diferença isso faz, Vicente? Você poderia me perguntar, revidando a minha pergunta. E, conforme esteja em um momento de quietude ou inquietude, até me dar as costas e ir embora desta página Sim de hoje, em que damos um primeiro passo no assunto Vida Criativa. Mas se está disposto a ficar, como não é assunto para meia dúzia de palavras é melhor sentarmos na margem de um Lago Sereno para, sem pressa, começarmos. Um Lago Sereno, assim de repente? Antes de termos decidido sequer se somos águas fluentes ou estagnadas? Sim, um lago sereno – onde não sejamos nem santos nem demônios. E de onde possamos nos ver, digamos, de fora de nós mesmos. Porque oscilamos entre uma coisa e outra tantas vezes durante o mesmo dia, às vezes em apenas uma hora, que não nos manteríamos pelo tempo desta conversa nem somente na quietude nem somente na inquietude. E, apesar de apenas dois, nos tornaríamos tantos, falando ao mesmo tempo, que isso dificilmente seria uma conversa. O convite é para um Diálogo. Aceita? Venha. Não tema nosso encontro no lago sereno. Um lago sereno é como aquilo que Nagarjuna, o mestre criador do budista Sakyamita, chamou de Caminho do Meio. Indo pelo caminho do meio quem sabe poderemos avançar sem tantos tropeços, livres das dualidades, dos julgamento condicionados ou precipitados e nos quais somos jogados pelas circunstâncias do momento. Sentados nessa Margem não estaremos nem fluindo como rios nem estagnados como poças de água. Fiquemos em estado de suspensão. E primeiro vejamos, sem culpas nem medos, sem vaidades e sem desprezos, com isenção, por que oscilamos tanto – o que realmente somos, ou tendemos a ser. E acima de tudo vejamos se queremos e podemos mudar o que somos – se for esse o caso. Se você leu a página do domingo passado certamente irá perceber que, embora não seja fecundo para nós nos envolvermos em uma discussão de muitas vozes, que só aumentaria a confusão em que o mundo está submerso, há um terceiro entre nós: Krishnamurti. Mas Krishnaji será discreto como uma sombra e silencioso como o Uni-
verso antes das vozes humanas brotarem na Terra. Que venha conosco, e seja bem-vindo. E agora, criemos o nosso Lago Sereno para podermos estar plenamente nele: Há vento correndo nas árvores e acariciando as águas diante de nós? Digamos que sim. É uma Aurora ou um Crepúsculo, tempo de passagem da Luz para a Treva, já que Penumbra e Caminho do Meio parecem combinar melhor? Cada um escolhe o tom de vermelho que lhe agradar mais. Aves cantam ao nosso redor? Se você prefere, sim. Eu prefiro o Silêncio. Alguém à vista? Ninguém? Se você quiser, podemos por um pescador solitário no Lago - ali. Apenas uma pessoa, aqui com a gente – o pescador? Bem, não quero lhe assustar, mas não resisto ao desejo de prestar minha homenagem à Imaginação Humana e lhe digo: a esta altura já muitos outros devem ter vindo com suas páginas de jornal – esta que estamos, eu ainda escrevendo e você já lendo – sentar aqui na margem do nosso lago, antes tão deserto. Começamos? - Sim. Eu não sei bem se sou criativo ou não. Mas vai ficando mais claro quando me vejo como água. Posso recordar os momentos em que fluí e aqueles em que fui água estagnada. Diante de uma pessoa, de uma decisão, de uma situação da minha vida. Nós parecemos estar sempre em trânsito, de um estado desses para o outro. Trânsito. Boa imagem, ajuda a entender, porque nos transporta para uma realidade que já conhecemos, não apenas mentalmente, mas vivencialmente. A vida, em nós e para nós, é mesmo esse trânsito, por dentro e por fora, objetivo e subjetivo. Você dirige carro? Se dirige, entenderá ainda melhor. Vivemos nossas vidas como nas ruas: nos aceleramos nos sinais verdes, nos detemos nos sinais vermelhos – embora nem todos. Mas nas ruas, no meio do trânsito, também podemos encontrar o nosso Lago Sereno, ou o Caminho do Meio: o sinal amarelo. Um tempo de decisão. Diante dele, estou em disponibilidade: vou ou fico. - Faço a minha escolha. Mas posso ser empurrado para diante, acusado de estar paralisando o trânsito – da rua e da Vida. As coisas do mundo, dos outros, são jogadas contra nós. É o trânsito objetivo. Trânsito da multidão humana sobre a Terra. No fundo, é bem diferente do trânsito subjetivo, individual.
Max Ernst: “Oedipus Rex”
Max Ernst: “Uma semana de bondade” Max Ernst: “Duas crianças ameaçadas por um rouxinol” Digamos que aqui, em nosso lago, à margem disso tudo, somos por algum tempo donos de nós – vivemos em intimidade conosco mesmo. Uma intimidade natural, com o que naturalmente somos. É o tempo suficiente para nos conhecermos não apenas por fora, também por dentro – profundamente. E sairmos de nós para cumprir os sinais convencionados lá fora, do trânsito e todos os outros, sem nos sentirmos mais mecanizados, apenas peças anônimas de uma engrenagem anônima, homens-coisas submetidos e pré-determinados pelo exterior funcional e convencionado, pela sociedade, pelos outros. Isso que chamamos de Civilização. Onde nem tudo é bom, nem tudo é mau. Mas tudo junto é confuso e insatisfatório – porque o resultado da mistura é uma coisa que conhecemos todos muito bem. - O que? O Medo. Vivemos em um mundo que tememos e que nos teme. Por isso nos controla, nos assegura para si, maneja as rédeas. E nossa rebelião, se é necessária, para libertar esse mundo de suas próprias rédeas, também é enfermidade.
Aqui, agora, na margem do nosso Lago Sereno, no Caminho do Meio, suspensos no sinal amarelo das nossas vidas, decidindo se vamos ou ficamos – que tal encadearmos os elos dessa cadeia que há milhares de anos arrastam os homens e são por eles arrastados? - Ouça. Nenhuma ave canta, até o vento parou. O lago está absolutamente imóvel. Neste momento, nós somos o Homem sobre a Terra, neste canto do Cosmos. O Silêncio Original nos acolhe e cala mais, para ouvirmos só a nossa Voz mais Real. Sejamos essas Águas e ouçamos, então, o que nos diriam de dentro de nós: - Somos rebeldes porque não somos Livres. - Livres para sermos o que naturalmente somos: seres sem Medo. - Seres sem Medo para sermos Criativos. Ouvimos. Você ouviu? - Sim. Mas ainda falta alguma coisa. Para o que? - Não sei. Mas falta.
Ah, você ainda está no meio dos sinais, agora no verde, agora no vermelho, agora no amarelo. É isso? Ainda oscilante. Ora água humana fluindo, ora água humana estagnada. Falta algo para que possa voltar para o meio do Trânsito da Vida sem se ver novamente perdido nele? - Sim. É como o que os muito antigos iniciados chamavam de a Quadradura do Círculo. Sem ela, falta o essencial. E o conjunto não se auto-organiza, não se sustenta. Falta um centro - O Centro. - Que Centro? Olhe, o nosso Lago já é a resposta. Veja como tudo, inclusive nós, se harmoniza ao redor dele. Sabemos, pois o próprio Lago, ou a Vida, nos disse, quais as condições essenciais para convivermos, humanos, com o trânsito do mundo. Você pode repetir? Só para não perdermos o fio da meada que pode nos libertar dos elos da corrente que nos prende. - Sermos Livres. - Sermos Livres para sermos o que naturalmente somos: seres sem Medo. - Seres Livres para sermos sem Medo para sermos Criativos. E para sermos criativos, o que nos falta ainda? - O Centro. E o que é o Centro? Vou ajudar: - O que é o Lago Sereno em Nós? Vejo que você olha para as águas do lago imerso em reflexões, como aquele que está tão perto do que busca que não o consegue ver. Mas, quem sabe, como se diz: já por um triz de achar. Sim, é bem possível: por um triz de achar. E talvez quem sabe nem se trate de achar – mas de criar. Afinal, somos & estamos em um mundo criado – mesmo que por Algo que apenas ainda pressentimos – e parece bem sem sentido viver nele não criativamente. Mas você esta buscando tanto, olhando as águas, que já nem me ouve. Melhor que agora fique só, então. Nos encontraremos aqui na próxima semana? Sim? Para achar ou criar uma Vida onde aprendamos a caminhar, sem tropeçar tanto, neste caminho de pedras? Prometo que mergulharemos fundo, e dessa vez diretamente no centro das águas. E o que ainda falta vai vir à tona. O seu Real, Único e Inabolível Centro.