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Belém, domingo, 16 DE fevereiro de 2014
magazine n 11
magazine
Comdfvuís. Página 8.
sim
vicente cecim
vicentefranzcecim@gmail.com
Vallejo: Ternura & Revolta El tiempo tiene un miedo ciempiés a los relojes O tempo tem um medo centopeia dos relógios CÉSAR VALLEJO
E
eis que um dia me vi diante de um dos crimes mais terríveis cometidos pelos homens contra os homens. E, ao meu redor, zumbiam, grunhiam, guinchavam, zurravam todas as vozes do mundo falando ao mesmo tempo: em alemão, inglês, francês, italiano, espanhol, árabe, japonês, chinês, português, dinamarquês, sueco, tailandês, finlandês, norueguês, polonês, hebraico – era como se eu tivesse escalado a Torre de Babel no exato instante em que a Divindade esfacelou, segundo o mito, o antes único idioma falado pelos homens e destroçou não apenas ele, mas, junto, a ambição da Humanidade de subir através dela até os Céus. Estonteado por essa Alucinação audiovisual – pois os olhos e ouvidos com que eu havia chegado ali haviam sido arrancados pela irrealidade do que viam e ouviam, fui salvo, resgatado, trazido de volta a minha realidade pela lembrança de uma Voz em mim sempre inesquecível. Voz que trouxe com tanta Paixão & Liberdade Inventiva a Vida Vivida para dentro da Vida Verbal que até os insetos – como a centopeia - caminhavam através dos seus Poemas. Me situei. Onde estava? Em Madri, no Museu Rainha Sofia, diante da Guernica de Picasso cercada por uma multidão delirante vinda de todos os lugares do planeta, que sitiava a pintura-mural e a fazia parecer pequena, apesar de suas grandes dimensões: 3m49cm x 7m76cm. E de quem era a voz que me salvara? A do poeta peruano César Vallejo e seu longo poema España, aparta de mi este caliz/Espanha, afasta de mim este cálice. O que havia em comum entre Picasso & Vallejo? O grito de denúncia lançado para o mundo, que haviam sido a pintura de um e o poema do outro contra o horrendo bombardeio - pela força aérea de Hitler, a Luftwaff, apoiando o Ditador Franco e a pedido dele contra o seu povo, durante a Guerra Civil Espanhola em que os republicanos com-
Picasso: “Guernica” bém em 1937. E esta página é dedicada a ele, não a Picasso.
Vallejo? Quem?
Picasso: retrato de Vallejo
batiam a monarquia franquista para libertar o país – que destruiu a cidade espanhola de Guernica – onde Picasso nasceu - e matou todos os seus 7 mil habitantes, em 26 de abril de 1937. Picasso pintou o quadro em Paris, em 1937, ao saber da matança. Em atroz preto & branco. E disse da obra: No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo/Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo. E mais tarde, na Paris ocupada, em 1940, diante de uma reprodução de Guernica, quando um oficial nazista lhe perguntou se havia sido ele, Picasso, quem havia feito aquilo, respondeu: No, fueram ustedes!/Não, foram vocês! Vallejo escreveu seu poema tam-
César Abraham Vallejo Mendoza nasceu em Santiago de Chuco, no Peru, em 1892, e desnasceu em Paris, em 1938, afogado em grande pobreza. Considerado nos países que leem um dos mais importantes poeta do século XX, no Brasil, onde continua desconhecido e ignorado, enfim seus livros de poemas Los heraldos negros/Os arautos negros (1918), Trilce (1922) e Poemas humanos (1939) foram traduzidos pelo poeta amazonense Thiago de Mello, nos anos 80, e publicados. De Vallejo dizia o escritor uruguaio Mario Benedetti que era o mais influente poeta da atualidade nas letras hispano-americanas, juntamente com Pablo Neruda – que por sua vez dizia que Vallejo era melhor poeta que ele, Neruda. O escritor Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, chamava Vallejo de o poeta dos vencidos. Nasceu na pobreza e viveu na pobreza, no Peru, como professor de escolas em pequenas cidades. Mestiço e perseguido por suas posições políticas, foi demitido e preso em sua cidade, em 1920, acusado de instigar a revolta intelectual. Em liberdade condicional, em 1923 foge para a França, de onde não volta mais ao Peru,e em Paris descobre e é descoberto pelos artistas insurrectos que por essa época vinham de todas as partes do mundo e buscavam a ci-
dade como um centro de irradiação de novos movimentos em um mundo que oscilava entre a primeira e a segunda Guerra Mundial, como o Dada e o Surrealismo. Foi onde um dia Picasso fez o retrato de Vallejo, mostrado nesta página Sim. E onde Vallejo conheceu Antonin Artaud e Jean Cocteau, entre outros. Em Paris, quase morrendo de fome, consegue emprego em uma gráfica. Rebelde sempre, adere ao marxismo e vai a Rússia ainda não esmagada, em seus sonhos de Revolução, pela Ditadura de Stalin. De volta a França, já casado com a francesa Georgette Philipart, é preso e expulso em 1930 por razões políticas. Seu segundo livro de poemas, Trilce, é escrito no cárcere. Se exila na Espanha. Quando volta a Paris, apenas com uma mala e as roupas do corpo, a casa onde morava havia sido demolida pela polícia francesa. Durante a Guerra Civil Espanhola, se une à causa republicana. É quando escreve Espanha, afasta de mim esse cálice e o livro de poemas Sermão da Barbárie. Além de poemas,escreveu romances, dramas e ensaios. Thomas Merton, o monje trapista também seguidor do Zen e poeta disse que Vallejo era o mais importante poeta universal depois de Dante.
A formiga e o elefante acorrentado Mas, afinal, o que pode a Arte, que cria, diante da Guerra, que destrói? Os gritos de revolta que foram o
Poemas de Vallejo Um homem passa com um pão no ombro Um homem passa com um pão no ombro - Vou escrever, depois, sobre o meu duplo? Outro senta-se, se coça, tira um piolho do sovaco, mata-o - Com que desplante falar da Psicanálise? Outro entrou em meu peito com um pau na mão - Falar, em seguida, de Sócrates ao médico? Um coxo passa dando o braço a um menino - Vou, depois, ler André Breton? Outro treme de frio, tosse, cospe sangue - Convirá não aludir jamais ao Eu profundo? Outro busca no lodo ossos e cascas - Como escrever, depois, sobre o infinito? Um pedreiro cai de um telhado, morre, já não almoça - Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo? Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês - Falar, depois, da quarta dimensão? Um banqueiro falsifica o seu balanço - Com que cara chorar no teatro? Um pária dorme com um pé nas costas - Falar, depois, a ninguém de Picasso? Alguém vai num enterro soluçando - Como em seguida ingressar na Academia? Alguém limpa uma espingarda na cozinha - Com que desplante falar do mais além? Alguém passa contando nos dedos - Como falar do não-eu sem dar um grito?
Pedra negra sobre pedra branca Morrerei em Paris com aguaceiros num dia de que já tenho a lembrança. Morrerei em Paris - daqui não saio numa quinta-feira, como hoje, de outono. Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira, em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só. Morreu César Vallejo, o espancavam todos sem que lhes fizesse nada; lhe davam forte com um pau e forte com uma corda também; são testemunhas as quintas-feiras e os ossos úmeros, a solidão, os caminhos, a chuva...
Poema para ser lido e cantado Sei que há uma pessoa que, dia e noite, me busca em sua mão, me encontrando, a cada minuto, em seu sapato. Ignora que a noite está enterrada atrás da cozinha com esporas? Sei que há uma pessoa composta de minhas partes,
que eu completo sempre que o meu vulto cavalga sua exata pedrazinha. Ignora que ao seu cofre não voltará nenhuma moeda que saiu com seu retrato? Sei o dia, mas o sol me escapou; sei o ato universal que fez na cama com alheia coragem e essa água morna, cuja superficial frequência é uma mina. Tão pequena é, acaso, essa pessoa que até seus próprios pés assim a pisam? Um gato é a fronteira entre eu e ela, mesmo ao lado de sua malga de água. A vejo pelas esquinas, abre e fecha sua veste, antes palmeira interrogante... que poderá fazer senão mudar de pranto? Mas ela busca-me, busca-me. É uma história! Traduções: José Bento
Confiança nos óculos, não no olho Confiança nos óculos, não no olho; na escada, nunca no degrau; na asa, não na ave e só em ti, só em ti, só em ti. Confiança na maldade, não no malvado; no copo, não no licor; no cadáver, não no homem e só em ti, só em ti, só em ti. Confiança em muitos, já não mais só em um; no leito do rio, não na corrente; nas calças, nunca nas pernas e só em ti, só em ti, só em ti. Confiança na janela, não na porta; na mãe, mas nunca nos nove meses; no destino, jamais no dado de ouro, e só em ti, só em ti, só em ti. Tradução: Thiago de Mello
poema Espanha, afasta de mim este cálice, de Vallejo, e a pintura Guernica, de Picasso, clamaram e continuam clamando na Memória da História e da Cultura. Mas o bombardeiro que matou milhares em Guernica em 1937 não evitou as bombas atômicas que mataram muito milhares mais poucos anos depois, em 1944, em Hiroshima & Nagasaki, nem os outros milhares assassinados com bombardeios de Napalm na Guerra do Vietnã, nem os milhares de mortos da invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América, nem a atual matança de crianças com bombardeios de Armas Químicas na Síria. E as mil vozes misturadas que ouvi na Babel de Idiomas no Museu Rainha Sofia diante da Guernica dolorosa de Picasso – não são tantas vezes as mesmas que silenciam diante dos grandes estrondos do mundo que causa todas essas dores? E as pequenas dores que atingem e devoram silenciosamente, um a um, os que passam todos os dias ao nosso lado já sem sequer terem fôlego para emitir um último gemido – e também sabendo que seria inútil, pois nossa indiferença não ouviria esse Gemido? A Poesia de Ternura & Revolta de Vallejo é a ampliação desses gemidos e insistirá até que um dia eles se tornem intoleráveis para todos os homens – Voz que nos exige ouvirmos, quando o lemos, até a formiga que esmagamos em nossos passos humanos distraídos sobre a Terra. Vallejo, em Espanha, afasta de mim esses cálice, nos diz:
Todos os homens se amarão e comerão, unidos pelas pontas de vossos lenços tristes, e beberão em nome de vossas gargantas infaustas! Descansarão andando ao pé deste percurso, soluçarão pensando em vossas órbitas, venturosos serão e ao som de vosso atroz retorno, florescido, inato, ajustarão amanhã seus afazeres, suas figuras sonhadas e cantadas! Uns mesmos sapatos caberão bem ao que sobe sem vias a seu corpo e ao que desce até a forma de sua alma! Se entrelaçando falarão os mudos, os entrevados andarão! Verão, já de regresso, os cegos e palpitando escutarão os surdos! Saberão os ignorantes, ignorarão os sábios! Serão dados os beijos que não pudeste dar! Só a morte há de morrer! A formiga trará pedacinhos de pão ao elefante acorrentado à sua brutal delicadeza: voltarão as crianças abortadas a nascer perfeitas, espaciais, e trabalharão todos os homens, procriarão todos os homens, todos os homens compreenderão!