Sim 38 o monge que ficou só uma noite

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oliberal

Belém, domingo, 23 DE fevereiro de 2014

magazine n 11

sim

vicente cecim

vicentefranzcecim@gmail.com

O monge que ficou só uma noite Até mesmo se os demônios pudessem esfriar o sol e esquentar a lua, não poderiam obstruir a verdade destas palavras. Quando uma carruagem puxada por elefante se move, poderia um louva-deus bloquear a sua passagem? YOKA DAISHI/CHEN-TAO-KO

Q

ue tal se isso também acontecesse a você? - Isso o quê? Isto: Em uma única escura noite, sob o céu da China antiga, um Clarão se fez dentro de um homem e o iluminou para sempre. O monge do título desta página foi esse homem: seu nome chinês - Cheng Tao Ko, seu nome japonês – Yoka Daishi. Yoka nasceu na cidade do mesmo

nome em 665, DC, se tornou monge aos vinte anos de idade e deixou sua casa em busca dessa Luz. Vagou na escuridão muitos anos, até que alguém lhe disse para ir ao encontro de Huineng, nome chinês de Eno em japonês, que levou o Chan da China para o Japão onde passou a se chamar Zen – e do qual ele foi o fulminante sexto patriarca e aquele que viu, pela primeira vez, a não-mente. Após longos dias de viagem atraves-

sando vales, rio e montanhas Yoka finalmente atingiu o monte Sokei onde vivia Eno. Mas em vez de lhe fazer a saudação tradicional ou perguntar alguma coisa, apenas deu três voltas ao redor de Eno e ficou ali, de pé, calado, o olhando. Se deu então entre eles um célebre Mondo – diálogo iniciático entre mestres Zen, incompreensível e aparentemente sem sentido para mentes não intuitivas e racionalizantes. Eis esse mondo:

Eno: O monge deve personificar exatamente os 3.0000 preceitos, as 8.000 ações e os 3.000 comportamentos. O que você me diz de tudo isso? Yoka: Eu não tenho tempo a perder – a questão da vida e da morte é muito importante. Nossa vida é efêmera, impermanente e sempre em mutação. Eno: Por que você não realiza o princípio do ‘não-nascimento’ para resolver a impermanência da vida? Yoka: Quando se realiza o ‘nãonascimento’, e se compreende o aqui e agora, subitamente, nada mais resta. Eno: É isso, é isso. Yoka fez a saudação de despedida. Eno: Mas você já vai embora tão rápido? Yoka: Como se pode ser rápido se o movimento não existe na origem? Eno: Se tudo é movimento ou nãomovimento, isto é uma questão de

consciência. Yoka: Grato – entendi o que significa o ‘não-nascimento’. Eno: Não existe significado mesmo no ‘não-nascimento’. Yoka: Se não existe significado, também não existe alguém para compreender. Eno: Compreender também não tem significado. Então Eno deu o shiho/a transmissão a Yoka, que permaneceu ainda essa noite com ele e ao amanhecer foi embora. E nunca mais voltou. Imerso no Clarão dessa única noite Yoka Daishi – que desnasceu em 713 sentado em posição de Zazen – mais tarde compôs o canto do qual esta página Sim oferece a você, leitor, alguns estilhaços. Aceite como uma Dádiva.

Shodoka: O Canto da Iluminação Você já viu aquele do caminho? Além da ação e além do aprendizado, está à vontade, não se esforçando contra a delusão nem agarrando a verdade. Vê a natureza da ignorância como sendo a consciência essencial, e a ilusão do próprio corpo como o reino da realidade. Realizando completamente o reino da realidade como sendo sem objeto, encontra a fonte de todas as coisas e nossa própria natureza como sendo a consciência desperta. Os cinco agregados surgem e decaem como nuvens sem meta, as três orientações distorcidas vêm e vão como bolhas na água realizando a talidade, nem o eu nem as coisas existem - em um momento, causa e efeito são liberados. Se qualquer coisa que eu disse for falsa, possa minha língua ser puxada para fora por incontáveis éons. Em um único momento de despertar direto ao Zen da realidade como uma presença contínua, as seis perfeições e os incontáveis meios hábeis estão completos. Os seis reinos da existência são um sonho - ao despertar, em nenhum lugar são encontrados. Nenhum erro, nenhuma felicidade, nenhuma perda, nenhum ganho - você não encontrará estes na natureza real. Tendo deixado de tirar a poeira do espelho, seu brilho é visto completamente visto. Quem é que pensa em não-pensar e não-existência? O não-nascido é realizado dentro do nascido. Um fantoche de madeira pode atingir o estado búdico praticando o não-pensar? Sem agarrar os quatro elementos deste corpo, beba e coma alinhado com a natureza real. As aparências são vazias, tudo é impermanente - Esta é a visão completa daqueles que foram para a talidade. Como um monge verdadeiro, falo a verdade. Se você não concorda comigo, vamos discutir, mas lembre que o caminho da consciência desperta tem como meta a raiz e não está enroscado nos galhos e folhas. A joia que realiza desejos não é reconhecida pelos seres, mas aqui ela está, dentro da matriz da realidade, como uma presença contínua. O funcionamento dos seis sentidos nem “é” nem “não é” e vem da luminosidade nem “com forma” nem “sem forma”. Esclarecer os cinco tipos de visão traz os cinco poderes. Quando você experiência a verdade, você está sem especulação. Você pode ver seu reflexo em um espelho, mas você pode agarrar a lua refletida na água? Sempre andamos sozinhos, mas aqueles que atingiram tudo trilham o mesmo caminho da liberação. Seguindo este antigo caminho, tenha um coração leve. Parecendo selvagem, ossos endurecidos, ninguém o perceberá. A pobreza de um filho do Buda é óbvia, mas esta pobreza não inclui o seu Zen. Os mantos remendados mostram a pobreza, Mas a mente do Zen está além de todo valor. Esta joia sem preço pode ser usada sem hesitação ao cuidar dos seres e amadurecer os potenciais. As três facetas da experiência e as quatro sabedorias estão completas neste tesouro, as seis percepções sutis e as oito liberações são marcas deste selo. Os estudantes excelentes vão direto à vontade. Os fracos e pobres são hesitantes em revelar e abandonar seus véus sujos e orgulhosos de seu esforço externo.

Se as pessoas discutirem com você e o difamarem, deixe-as - estão brincando com fogo, tentando queimar o céu. Quando os ouço, suas palavras são gotas de néctar e me mostram que este momento é livre de conceitos. Palavras abusivas são bênçãos disfarçadas, e aqueles que abusam de mim, bons professores. Esta mente não tem espaço para difamação e abuso e é, em si mesma, compaixão e paciência não-nascidas. Penetre tanto a transmissão quanto os ensinamentos, pratique a harmonia e a iluminação radical com brilho, não-obscurecido por noções de vacuidade. Não estou sozinho neste atingimento que os budas, inumeráveis como grãos de areia, mostraram. Falarei livremente o rugido do leão da realidade que coloca medo no coração das feras. (...) Não perca seu Zen, esteja andando ou sentado - esteja à vontade na fala ou em silêncio, se movendo ou parado, esteja calmo até mesmo quando encarar uma espada e sua claridade nunca será envenenada. (...) O nascimento e a morte seguem-se um ao outro, incessantemente. Desperte diretamente para a realidade não-nascida, livre da alegria da fama e da tristeza da perda. (...) Compreenda que a realidade e suas ações são sem esforço, Diferente das ações da pessoa comum. (...) Vá para a raiz, deixando os galhos, como a lua brilhante refletida em um cristal. Entenda a joia da liberação e a use para beneficiar a si mesmo e a todos os outros. A lua surge sobre o rio, o vento se move nos pinheiros, tudo durante a noite, pureza, calma - o que esta calma significa? Veja vividamente os preceitos da consciência essencial e o selo do solo da mente. Orvalho, nevoeiro, nuvens e neblina são os verdadeiros mantos de nossos corpos. (...) Não procure a verdade ou evite a delusão - ambos são completamente vazios, sem forma. (...) O espelho luminoso do conhecimento reflete tudo o que é mostrado, seu brilho vasto permeia inumeráveis mundos. Tudo o que há, as dez mil experiências, surgem como esta luminosidade além do “com” e do “sem”. Não agarre a “vacuidade” e ignore a causa e efeito - essa confusão precipitada leva apenas ao sofrimento. Rejeitar a verdade e o apego às entidade também é um erro, é como pular em um fogo para evitar o afogamento. Rejeitar a delusão e agarrar a verdade se ajusta perfeitamente à mente do gostar e desgostar. (...) Uma natureza permeia todas as naturezas, uma coisa segura todas as coisas. Uma lua é refletida em todas as águas, todos estes reflexos são uma lua. (...) Um estágio de prática contém todos os estágios, sem forma, sem pensamento ou ação. Em um estalar de dedos, oitenta mil portas são abertas e três grandes éons desaparecem em um instante.

Nomes e categorias, e estar sem elas, nada têm a ver com o conhecimento perfeito. É sem louvor ou culpa, é sem limites, como o espaço. Está em qualquer lugar onde você esteja, está livre da luta e da busca, não pode ser segurado ou solto. Abandone a busca, está aqui, seu silêncio fala, sua fala é silenciosa, sua grande generosidade abre bem a porta. Se me perguntar que doutrina ensino, direi a você, é a vasta consciência. Ninguém pode concordar ou discordar disto e até mesmo os seres brilhantes podem apenas especular. (...) A verdade não se coloca sozinha, o falso não existe sozinho. Quando desaparecem as ideias de ser e não-ser, tudo é vazio. (...) A mente surge com as experiências como seus objetos, sujeito e objeto são poeira sobre um espelho. Livre da poeira, o espelho brilha - a natureza real é conhecida quando a mente e as coisas não surgem. (...) O apego faz surgir o sofrimento, não culpe os outros pelas suas próprias ações. (...) Apenas o sândalo cresce com o sândalo, os leões descansam em florestas escuras, vagam sozinhos e à vontade onde pássaros e outros animais não são encontrados. (...) Este monge não diz isto para criar divisões - é apenas que você deveria saber sobre a armadilha da permanência e o seu oposto. O certo não é certo, o errado não é errado - mas uma polegada de desvio leva a mil milhas para fora. (...) Em minha juventude, acumulei conhecimento, lendo os discursos e comentários. Caí no nome e forma, o que faz tanto sentido quanto tentar contar as areias no fundo do oceano. (...) Percebi quantos muitos anos me desviei e vaguei perdido. (...) Os homens do caminho estreito praticam sem compaixão, os eruditos mundanos têm conhecimento mas não sabedoria. Tolos, com interpretações errôneas, perdem o dedo da mão vazia que aponta. Confundindo o dedo com a lua, sua prática é confusa e fabricam complexidade com os sentidos e objetos. Quando nenhuma coisa é vista, este é o reino da realidade como presença contínua e se é verdadeiramente o vidente soberano. Entenda a verdade e todas as máculas condicionais não são encontrados em lugar algum - não conhecendo a verdadeira vacuidade, você se preocupa com débitos e créditos. Isto é como um homem esfomeado rejeitando uma festa para um rei, ou alguém doente recusando a prescrição do médico. Pratique o Zen neste mundo dos desejos assim como um lótus florescendo no meio das chamas. (...) Entendendo o que é esta joia precisa da mente, agora a transmito a quem quer que a receba. Vendo claramente, não há uma única coisa, nem homem, nem Buda. Os mundos do universo são como espuma sobre o mar, homens sábios aparecem como relâmpagos. Até mesmo com uma roda de ferro quente queimando sobre a própria cabeça, a grande prática realizada não será afetada. Até mesmo se os demônios pudessem esfriar o sol e esquentar a lua, não poderiam obstruir a verdade destas palavras. Quando uma carruagem puxada por elefante se move, poderia um louva-deus bloquear a sua passagem? Os elefantes não podem se ajustar nos rastros de um coelho, a iluminação não pode ser circunscrita. Não abuse do absoluto com visões estreita - se não estiver claro, este canto dá a chave.


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