Sim 42 Diálogos com homens sábios: Bodhidharma

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Belém, domingo, 16 DE março de 2014

oliberal

magazine n 11

sim

vicente cecim

vicentefranzcecim@gmail.com

Diálogos com homens sábios: Bodhidharma O anseio por conhecer se chama vontade de saber quando é orientado para o universal, orientado para o particular se chama curiosidade. SCHOPENHAUER

Q

ual é o seu caso? Atravessar a Vida apenas bisbilhotando com olhos escuros o trivial, ao rés do chão, ou você ergue os olhos, pelo menos de vez em quando, e se indaga face a face com as Estrelas e ao Mais Obscuro que se oculta por trás delas: - O que sou eu? O que é tudo isso ao meu redor? Arthur Schopenhauer foi um dos não tantos ocidentais que viveu rigorosamente se fazendo essas perguntas e as lançou em seu deslumbrante O Mundo como Vontade e Representação, que se abre com esta frase atordoante: - O mundo é minha representação. Claro, então, que para o representar – isto é: para traduzir o mundo para mim, e em mim – não basta a mera curiosidade. É essencial que eu tenha essa vontade de saber o que ele é. E, para isso, devo começar por mim mesmo, embora por avydia – o saber errado segundo os Vedas - me veja como autônomo e dele separado, devo começar pelo: - O que eu sou? Só a pergunta, porém, não é garantia de uma Resposta. E se é uma forma de ambição do eu/ego que pergunta, então – nenhuma chance. Uma certa inocência no perguntar – quase como quem já sabe a resposta – é necessária para se ser ouvido pelo Universo. Tudo se complica, se Spinoza está certo em sua Ética, III, Proposição 2, quando ele diz: A própria experiência ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados. Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites: elas variam, portanto, de acordo com a variável disposição do corpo. Assim, cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem, enquanto aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo menor impulso, arrastados de um lado para outro. Sem dúvida, tudo isso mostra claramente que tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento e explicada por si mesma, e determinação, quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso. E agora? A minha própria existência me ensinou uma coisa, que gostaria partilhar com você. Aceita? Para fazer a sua própria investigação? É assim: Nascer é ser lançado no espanto de existir. Da mãe se cai diretamente em um Lugar Desconhecido: a Vida Visível, e na inquietante pergunta: - Onde estou? O que acontece a partir daí? Se em você predominar o Medo do Desconhecido, provavelmente irá atravessar a vida inteira como que fingindo que não está aqui, vivendo, ou, como se diz, que não está nem aí e nem está chegando. E lá se foi, entrando por uma porta e saindo pela outra, mais uma vida passada em branco, como um fantoche manipulado pelas circunstâncias. E pior: uma vida danosa para os outros, porque essa sua tentativa de evasão com o tempo se torna inevitavelmente uma forma defensiva de invasão. Você se tornou um filho do Medo. E o Medo é mau. Mas se em vez do Medo do Desconhecido a mesma pergunta: - Onde estou? – se manifestar em você como a vontade de saber de que fala Schopenhauer? Então, tudo se inverte. E você penetra na existência com sons de hinos, se anunciando esvoaçante como quem entra em uma Festa: - Ave, cheguei. Os gregos antigos chamaram a isso thaumazain/o espanto de existir. E sobre isso escrevi meu livro Ó Serdespanto. E sobre isso Benedito Nunes – cito com saudade dele – escreveu, falando do livro: Não é por acaso que este livro-poema tem uma origem filosófica que seu próprio nome denuncia. Pois o ser de es-

panto não é senão o thaumazain grego, o espanto que deu nascimento à Filosofia, como misto dos sentimentos de admiração e de estranheza diante do que há. Certamente o que faz uma pessoa nascer como mais um apavorado filho do Medo ou um ousado desvendador de mistérios não se explicará apenas pelo DNA da ciência ocidental. Há também o que orientalmente se chama Karma. Heranças paternas & maternas vêm fisicamente junto com o susto de nascer? Também metafísicas heranças cósmicas? Bem, nascendo para o temor ou para a audácia, devemos nos fazer a seguinte pergunta: - E se fica condenado a viver como se nasceu, do princípio ao fim, assim, imutavelmente? Ou existem maneiras de transformar o temor inicial com que se nasceu, se for o caso, em destemor ao longo do nosso caminho através da vida? A página Sim de hoje trata de um conjunto de condutas que podem nos favorecer, mostra uma Via nesse sentido. Nela vamos dialogar com Bodhidharma. Quem? Bodhidharma: Ele foi um monge budista que viveu no século V e trouxe o Budismo da Índia para a China, onde, a partir de seus ensinamentos, se desenvolveu o Chan chinês, a primeira forma do que depois passou ao Japão com o nome de Zen. Até hoje os mosteiros Shaolin por onde passou o têm como mestre. E um dos diálogos entre discípulos & mestres mais frequentes e constantes no Zen gira em torno dele: Discípulo: - Qual a razão da vinda de Bodhidharma para o Ocidente? Mestre responde: - O cipreste no campo. Como quem diz, mas sem esgotar o mistério: ah, são coisas da vida. E o que Bodhidharma ensinou? Ah, quase nada: apenas o que chamou bìguan/ olhar a parede. Segundo ele: Aqueles que se afastam da Ilusão de volta à Realidade, que meditam nas paredes, a ausência de si-mesmo e do outro, a unidade entre mortal e sábio e que se mantêm impassíveis até mesmo pelas escrituras estão de acordo completo e silencioso com a razão.

Bodhidharma e as Entradas no Caminho Volto no tempo para esta conversa com Bodhidharma, e digo a ele: - A gente se desvia do Caminho – entendido como a Via do Dharma, a Lei que rege o Cosmos, e a via correta para a existência humana - quando, por nossas ações, nesta e em outras possíveis flutuações anteriores e futuras pelo Universo, ativamos karmas negativos – entendendo o processo kármico como causa-efeito. A via do Dharma é o meio de gerar karmas positivos? Bodhidharma: Muitas são as formas de entrada no Caminho, mas podem ser resumidas em duas. Existem a Entrada da Inteligência e a Entrada da Conduta. A primeira é a compreensão da essência dos ensinamentos do Buddha por meio das escrituras, pela qual surge a profunda confiança na natureza verdadeira, a qual é compartilhada por todos os seres sencientes – aqueles que sentem. Ela não se manifesta porque é obscurecida pelos objetos exteriores e os falsos pensamentos. Pelo abandono do falso e a proximidade com o verdadeiro, o homem com mente unificada se senta em meditação, descobrindo que não existem nem eu, nem outro, e que o homem e o santo possuem a mesma essência. Nisto ele coloca sua firme confiança e dela não se afasta. Sendo silenciosamente um com a Inteligência, das palavras ele não é escravo, e é livre da consciência discriminativa. Ele é sereno e se situa além da ação. - Entendi. E a Entrada da Conduta? Bodhidharma: Ela inclui quatro condutas, nas quais estão todas as ações. - Qual a primeira? Bodhidharma: A primeira é Como se livrar do ódio. Quem se disciplina no Caminho, quando encontra condições

Bodhidharma: “Este mundo é como uma casa em chamas.”

adversas, deverá pensar assim: - Por incontáveis eras no passado vaguei por múltiplas existências, me apegando à trivialidade e desprezando o essencial. Criei com isso inúmeras situações propícias ao ódio, à má-vontade e às ações não-saudáveis. Mesmo que nesta vida transgressões não fossem feitas, ainda assim os frutos das ações maléficas do passado se manifestariam. Nem os seres luminosos, nem os homens poderiam saber o que a mim está reservado. De boa vontade e com paciência aceitarei os males que a mim sobrevierem e deles não me lamentarei. Nos sutras é dito que não devo me agitar pelos males que surgem, pois, quando com inteligência as coisas são penetradas, os fundamentos da causalidade são conhecidos. Quando tais pensamentos surgem num homem, com a Inteligência ele estará de acordo, fazendo do ódio o melhor uso possível e o colocando a serviço do Caminho. - Precisamos já quase desesperadamente dessa metamorfose de mal em

bem nos tempos atuais. Qual a segunda conduta? Bodhidharma: É Aceitar o karma. Nos seres produzidos pelas condições do karma, nenhuma substância imutável pode ser encontrada, e a alegria, bem como o sofrimento, são também resultados de ações intencionais do passado. Se vêm a riqueza, o louvor, etc, estes são resultados de ações passadas que, devido à causalidade, afetam minha vida no presente. Esgotada a força das ações, os resultados que agora desfruto se acabam. Por que, então, me alegrar com eles? Ocorrendo o ganho ou a perda, que eu aceite o karma. O coração nada sabe de aumentos ou diminuições. Na harmonia silenciosa com o Caminho o vento do prazer não me abala. Isso é o significado de aceitar o karma. - Ah, lembra o provérbio: Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acaba. A terceira conduta? Bodhidharma: A terceira é Nada desejar. Neste mundo, os homens conti-

Bodhidharma: Gravura do século XIX

nuamente confusos, se apegam sempre aqui e ali. A isto se chama desejo. Os sábios, porém, compreendem a verdade, e em nada se assemelham aos ignorantes. Serenamente seus corações repousam no não-criado, enquanto o corpo se move de acordo com as leis da causalidade. Todas as coisas são vazias e nada vale a pena buscar. Lá onde está o mérito do brilho, também está o demérito da escuridão. Este mundo tríplice, no qual convivemos por tão longo tempo, é como uma casa em chamas. Tudo o que tem um corpo sofre e ninguém sabe realmente o que é a paz. Os sábios nunca se apegam a nada, pois conhecem intimamente esta verdade. Com os pensamentos serenos nada desejam. Assim diz o sutra: Quando há o desejo, há o sofrimento. Com a cessação do desejo vem a felicidade. Sabemos, deste modo, que nada desejar é o caminho para a verdade. Isto é o que significa Nada desejar. - Vivemos nesta casa em chamas, então. Escaparemos dela como? Pela quarta conduta? Bodhidharma: A quarta conduta é Estar de acordo com o Dharma. Significa que a Inteligência a que chamamos Dharma é pura em sua essência e é o princípio da vacuidade em tudo que se manifesta. Está além das manchas e dos apegos. Nela não há nem eu nem outro. Diz o sutra: No Dharma não há seres sencientes, pois ele está livre da mancha do ser. No Dharma não há eu, pois ele está livre da mancha do eu. O entendimento e a confiança nesta verdade tornam as ações dos sábios conformes ao Dharma. - Viver conforme o Dharma é, então, é o essencial nesta Vida - nessa Via. Bodhidharma: A essência do Dharma é o não desejar e, assim, os sábios estão prontos para a generosidade do corpo, da vida e das propriedades. Em nada lamentam e são livres da má-vontade. Sua compreensão da natureza tríplice da vacuidade os leva para além da parcialidade e do apego. Devido à sua vontade de limpar as manchas dos seres, eles se adaptam a eles sem se apegar à forma. Esta é a fase do benefício próprio em suas vidas. Mas eles sabem também como ajudar aos demais e louvar a verdade do Despertar. Como é com a virtude da generosidade, assim também com as outras cinco virtudes. Os sábios praticam as seis virtudes transcendentes afastando os pensamentos confusos sem esperarem pelos resultados meritórios destas ações. - E assim estão de acordo com o Dharma. Bodhidharma: Sim. - Então, digamos junto esse sereno Sim, todos, e, silenciosamente, dentro de cada um de nós.


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