VICENTE FRANZ CECIM
Shitao: a Vida e a Arte como Pincelada Única
Primeiro a mente deve abraçar o Uno para que o coração possa criar e se manter na alegria. Assim a pintura pode penetrar a essência das coisas e até o imponderável.
SHITAO
Shitao: Autorretrato com um bambu 1674
pois tendo estendido para ele a minha mão rude, eis que tenho agora nesta mão aberta e com muitos arrepios de júbilo ando lendo e relendo e me ensimesmei nele como um caracol humano um livrinho raro que com raivosa lucidez nos faz a exigência mais radical que na arte como em tudo um Criador
deve se fazer a si mesmo: A Pincelada Única, do pintor e poeta e calígrafo, que se fazia tudo isso num só ser, Shitao, o Monge Abóbora Amarga, ser esse que mudava de nome a cada Estação de sua vida e também se denominava Sobrevivente da Antiga Dinastia mas na próxima metamorfose já era o Discípulo da Grande Pureza e na seguinte troca de pele de seu uróboros se tornava o Venerável Cego e assim ia sempre cambiante e no entanto eternamente fiel a Si Mesmo em permanente demanda do Si Mesmo onde quer que o Si Mesmo esteja, e ainda que soterrado sob os Fardos da cultura em nossos lombos acumulados de escamas e peles supérfluas, escamas e peles supérfluas essas que Shitao já havia largado pelos Caminhos dos Passos Sólidos quando abandonou seu nome real, Zhu Ruoji, e passou a se chamar Shitao e tomou uma vereda oblíqua e ingressou no Descaminho Que Se Desvia Das Coisas Tropegamente Nítidas e passou a estudar pintura, sim: Pintura, pela dupla via do ser não-ser e não mais pelas falsas vias das pinceladas tão cheias da aparente solidez do ser que não sobra nenhum espaço nem para que aí o ente habite em sua dimensão ontológica pois é mais fora da arte do que dentro dela que o artista acha a vida secreta-em-si, como se sabe um pouco ainda e muito sabia Heráclito, o Obscuro quando dizia Vida ama se ocultar, mas não foi com ele, Heráclito, e sim com um mestre budista Chan, o nome chinês do Zen antes de emigrar para o Japão, que Shitao foi estudar antes de iniciar uma vida de errâncias, viajando e pintando as mais belas paisagens da China, como informa o prefácio do tal livrinho que lança de suas páginas labaredas de Dragão no Iceberg da minha já chamuscada mente ocidental que vai mais e mais se descongelando em seus Caminhos dos Passos Sólidos, graças ao tal livrinho também nos informa que, mas por qual dos mais de trinta nomes que adotou o chamar, Shitao ou Zhu Ruoji ou Monge Abóbora Amarga viveu sua vida nesta Bela Terra Submersa Em Sonhos De Sermos de 1641 a 1720 e é aí que não apenas a serpente troca de pele mas a porca torce o rabo, graças à sua formação budista, taoísta e confucionista: ó hemisfério esquerdo deste grande Cérebro: a Terra, ó Oriente: fez de sua vida artística uma permanente busca, não só em torno de questões técnicas, mas também à volta do próprio mistério da criação artística e do destino do Homem, busca que acabou por o conduzir à Grande Síntese do Corpo-Espírito em Ação, em breves trintas páginas imensas, Espelho do Cosmos, de A Pincelada Única onde nos doou, generosamente, tudo o que aprendeu, e nos diz: Na mais remota Antiguidade, não havia regras, a Suprema Simplicidade não havia sido ainda dividida. Ao dividir-se a Suprema Simplicidade, estabeleceu-se a Regra. Em que se baseia a Regra? A Regra se baseia na Pincelada Única. A Pincelada Única é a origem de todas as coisas, raiz de todos os fenômenos, a sua função é manifesta para o espírito e se encontra oculta no homem, todavia o vulgo a ignora. A Regra da Pincelada Única deve ser estabelecida pelo próprio. A base do método da Pincelada Única reside na ausência de regras que, por sua vez, produz a Regra, assim a Regra abarca a multiplicidade de regras. A pintura emana do Intelecto (1): quer se trate da beleza de montes, rios, pessoas e coisas, ou da essência e carater de pássaros, animais, ervas e árvores, quer dos tamanhos e proporções de tanques, pavilhões, edifícios e pátios, só se poderá perceber as suas proporções e esgotar os seus vários aspectos possuindo esta medida imensa da Pincelada Única. Por muito longe que se vá, por muito alto que se suba, se começa sempre por um simples passo. Por isso a Pincelada Única abarca tudo, até o mais longínquo e
inacessível, e de dez mil milhões de pinceladas, não há uma só cujo início e fim não resida nesta Pincelada Única, cujo controle pertence exclusivamente ao homem. Mediante a Pincelada Única, o homem pode restituir, em miniatura, uma entidade maior sem a diminuir (2), se, em primeiro lugar, o espírito nasce de uma mesma e só visão clara, o pincel chegará à raiz das coisas. Se não se pinta com o pulso livre (3), surgirão erros de pintura, e esses erros, por sua vez, farão com que o pulso perca a sua inspirada destreza. As curvas da pincelada devem ser executadas num só movimento, a untuosidade deve nascer dos movimentos circulares, reservando uma margem para o espaço. O fim da pincelada deve ser claro e incisivos os seus arranques. O pintor deve ser igualmente hábil nas formas circulares e angulares, nas retas e nas curvas, nas ascendentes e descendentes, o pincel vai à esquerda, à direita, para cima, para baixo, brusco e decidido, se interrompe bruscamente, se alarga obliquamente, quer fluindo até às profundezas, como a água, quer se alçando às alturas, como a chama, e todo ele com naturalidade, sem forçar nada em absoluto. Onde quer que o espírito esteja, a regra o refletirá. Se a razão o penetra, poderão ser expressados os mais diversos aspectos. Ao se deixar levar pelos inspirados movimentos da mão, de um só gesto poderá captar a aparência formal, assim como o impulso mistura de águas: ó, Shitao, em nossa língua esse in-pulso me revela que os montes e os rios, as pessoas e objetos já estão contidos no pulso humano interno dos montes e rios, pessoas e objetos, etc, os pintará naturalmente ou aprofundará o seu significado, expressará o seu carater ou reproduzirá a sua atmosfera, os revelará na sua totalidade ou os sugerirá elipticamente. Supondo ainda que o homem não conseguirá captar a totalidade, tal pintura responderá às exigência do espírito. Quando a Suprema Simplicidade se dissocia, se estabelece a Regra da Pincelada Única. Uma vez estabelecida a Regra da Pincelada Única, se manifesta a infinidade de criaturas. Por isso, alguém disse: "O meu caminho é o da Unidade que abarca o Universal" cita Shitao, e diz, se referindo aos mestres que os antecedem, que eles em lugar de se valerem desses pintores se convertem em seus escravos, e acrescenta que o afã desmedido de se assemelhar a um qualquer mestre equivale a comer os restos da sua sopa, demasiado pouco para mim, e, cintilante em seu Si-Mesmo único mas que contém e é contido pelo Todo, e crepitante, diz que eu existo por mim mesmo e para mim mesmo. As barbas e sobrancelhas dos mestres da Antiguidade não podem crescer no meu rosto, nem as suas entranhas se instalarem no meu ventre, tenho as minhas próprias entranhas e barbas, e por fim em meio a muros & muralhas que por toda parte vão ruindo à sua passagem enquanto de sua boca cresce cada vez mais a longa cabeleira que o ata à outra voz também descabelada de Chuang-Tzu ei-lo, este outro cego, o Venerável Cego arrebentando seus últimos grilhões num aparente Paradoxo, mas paradoxo só para quem se mantém isolado na vida do Vários e ainda não se tornou um Pincel Único em-si, na vida Una, que explode nesta afirmação iluminante, de uma insólita sabedoria: Mesmo quando, em certas ocasiões, a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue, e não eu quem o busca, palavras estas com que agora já vou aos poucos interrompendo o desfiar do fio desta meada de palavras para propor que outra meada tenha início, sem palavras, jornada solitária em cada um de vocês que lê isto: é por dentro, ela, da Imaginação de cada um que se dispuser a imaginar a hipótese tão bela de um Diálogo que aconteceria no Tempo-Espaço abolido em que se desse um
encontro (4) entre o Van Gogh das Cartas a Théo que disse podem ir louvando a técnica, com palavras de fariseu, ocas e hipócritas, os verdadeiros pintores se deixam guiar por esta consciência que se chama o sentimento. Sua alma, seu espírito, não estão a serviço de seu pincel mas seu pincel a serviço de seu espírito. Além disso a tela tem medo do bom pintor e não o pintor da tela (5) e o Shitao da Pincelada Única, o Cegado pela Paisagem em Revoada & o Venerável Cego da Paisagem Imóvel, e aqui, nesta Bela Terra Submersa Em Sonhos de Sermos, eu proporia que esse Encontro se desse sob uma Noite Estrelada, num Trigal com Corvos: dentro da palma aberta da mão de Jabès, pois NOTAS 1. Xin, ou coração. A base da criação é, pois, de ordem filosófica e espiritual e não técnica ou estética. 2. Aqui, Shitao cita Mengzi, para dizer que a Pintura está para o Universo como o microcosmos está para o macrocosmos. 3. Xuwan, ou pulso vazio. Também se refere à mão alçada, regra primordial da caligrafia e da pintura. A pincelada resultando em rica em Chi [que o Ocidente precariamente traduz por energia vital], já que o único contato do artista com o papel é a ponta do seu pincel, receptáculo direto dessa energia proveniente do coração. 4. Convergência equivalente a essa já aconteceu: abolindo fortuitamente o Tempo-Espaço para que pudesse ocorrer o encontro de Almas Gêmeas, ela se deu entre Shitao e Zhu Da, o Eremita dos Oito Grandes Horizontes, desde criança voluntariamente mudo, palavra que escreveu num leque que abria quando alguém a ele se dirigia, para que a lesse, zen e taoísta, pintor genial e bêbado sublime, contemporâneo e parente quinze anos mais velho de Shitao. Os dois só souberam de suas existências luminosas e simétricas no fim da vida, trocaram apenas idéias, cartas e quadros. Tudo isso, e nada mais. Mas essa é outra ou a mesma pincelada, que um dia eu lhes contarei. 5. Carta 426. * Este teto foi originalmente publicado na revista virtual Agulha.
Vicente Franz Cecim em templo Zen FOTO Bruno Cecim
VICENTE FRANZ CECIM nasceu e vive na Amazônia, Brasil, em Belém, Pará. Sua Escritura se entrega à abolição das fronteiras entre prosa e poesia, demanda o Silêncio, funde Profano e Sagrado, e partindo da Natureza se lança como sede metafísica do Ser da Vida: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim. E é assim que tu verás um S nestes dias cegos. É a inscrição no portal dos seus livros, oposta àquela dantesca que intimida. Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou a obra imaginária Viagem a Andara oO livro invisível, transfiguração da Amazônia em Andara: região-metáfora da vida em que natural e sobrenatural convivem em mútua epifania. É onde ambienta todos os seus livros. Andara sendo a Amazônia vista com olhos mágicos, como já foi dito, à medida que, um a um, os livros visíveis de Andara vão sendo escritos como literatura fantástica, desvelam a literatura fantasma do livro invisível de Andara, livro puramente imaginário, do qual só existe o título e que não é escrito - segundo o autor, o não livro, corpo de um corpo que se sonha. Em 1980, o segundo livro de Andara, Os animais da terra, recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Apca - Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara (Editora Iluminuras, São Paulo) reunindo os 7 primeiros livros de Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca. Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo) reunindo mais 4 livros visíveis de Andara. Em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, publicou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento do ano. Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os 7 primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e Terra da sombra e do não (Cejup, Belém). Em 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura, unindo imagens & palavras, também em Portugal: K O escuro da semente (Ver o Verso, Maia). Em 2006, saiu a edição brasileira de Ó Serdespanto (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro). Em 2008 e 2014 lançou as novas iconescrituras oÓ: Desnutrir a pedra (Tessitura, Minas Gerais) e Breve é a febre da terra (Iap, Belém, Prêmio Haroldo Maranhão de Romance). Fonte dos que dormem é o inédito em que reúne os Cantos de Andara. Atualmente gera o novo livro visível Oniá um Lugar cintilante.