Sim 47 Como se fabrica um rei

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 27 DE ABRIL DE 2014

MAGAZINE  11

sim

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VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Como se fabrica um rei?

á sabe em quem vai votar neste - perigoso - ano eleitoral? Antes de responder, é melhor saber primeiro a resposta para a pergunta do título da página Sim de hoje: - Como se fabrica um rei? Você sabe? Pois saiba logo o básico: é a mesma receita usada para fabricar presidentes de república, governadores, prefeitos, senadores, deputados e vereadores – mas, também, ferozes ditadores como Hitler, Stalin e outros com unhas & dentes menos afiados, mas nem tanto, como o general Pinochet, no Chile, os ditadores brasileiros de 64, ou a versão mais discreta dos praticantes das chamadas ditaduras brancas - caso do general De Gaulle erguido à dimensão de herói nacional da França do pós-guerra. Enfim, trata-se de criar, impor à opinião pública & administrar uma Imagem favorável de alguém – mas não espere a fidelidade da imagem refletida por um espelho, nesse jogo de ilusões o que menos importa é que a Imagem corresponda ao Original. Sendo a mesma a receita, o que varia é a maneira de preparar o prato que vai ser servido a você. O que também depende da qualidade dos ingredientes usados - não se gasta na preparação de um prato de Vereador tanto quanto na preparação de um prato de Rei. Ou de Presidente de República. Servido o prato, o que vem depois – você ainda não está cansado de saber? Então, repassemos aqui: Os eleitos – aqueles que você saboreou - continuam servindo, já em seus cargos, a receita que os elegeu, tentando a tornar cada vez mais irresistível - para quando a mesa for posta da próxima vez. Enquanto os não eleitos, os que não agradaram ao paladar político de massa, buscam que venenos acrescentar por baixo da mesa, no próximo banquete, aos pratos dos eleitos – o que é pura maldade e nem é preciso, porque esses geralmente voltam buscando a reeleição com a mesma receita, requentada. E nada irresistível. E tão sem graça, que dispensam uma gota de fel para afastar você dela e experimentar um novo prato. Círculo vicioso. Tudo se repete a cada eleição: os pratos vêm com enfeites diferentes, mas os sabores são os mesmo. O que todo mundo, no fundo, já sabe, embora todo ano volte para provar as iguarias eleitorais como se nada soubesse - e vote com a inocência de uma primeira vez. Embora os anos eleitorais sejam os mais perigosos de todos. Por que? Porque no breve minuto que dura o tempo de votar e com um simples gesto – a mão, a urna, o voto – você pode arruinar muitos anos da sua vida futura e a de muitos outros. Será que este ano vai ser diferente? E despertados por suas manifestações de rua os eleitores e reanimados pelas pressões recebidas os candidatos – os dois lados vão puxar a toalha dessa mesa gasta e mudar o cardápio e quebrar as louças ilusórias em que é servida a magra ração que alimenta a nossa História? - E milagres acontecem? Quem sabe? Talvez lhe ajude poder responder, agora, conhecendo os detalhes, a pergunta lá do alto: - Como se fabrica um rei? Sabendo como se deu a fabricação não de um rei qualquer, mas do mais absolutista dos reis absolutistas do Ocidente Europeu: Luis XIV. Uma receita de construção de imagem pública semelhante a que as campanhas políticas vão usar nestas eleições. Mas tão persistente & diabolicamente eficaz que Luis XIV passou a ser chamado de Rei Sol até o fim dos seus longos dias – mais de setenta anos reinando - e se permitiu declarar, sem ser contestado e sob os aplausos induzidos do povo francês: L’Etat c’est moi/O Estado sou eu.

Por que se retirar e abandonar a partida quando ainda restam tantos seres a decepcionar? CIORAN

“Gargantua”- Charge de Daumier

dia a Wikipédia. Seus livros que aqui nos interessam são A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV, de 1994, e Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot, de 2000. Lançados pela Zahar, os livros se completam. No primeiro, Burke mostra como foi montada e funcionou a máquina de propaganda de Luís XIV para a construção de sua imagem pública. Como ela operou durante seu reinado, empregando, em bloco, todos os recursos disponíveis na época e de um modo nunca visto antes com tamanho impacto. Como usou as Artes e cooptou artistas em todas as áreas: pintura, teatro, literatura, música – e como aqueles que se opuseram ou se recusaram a colaborar pagaram o preço. Burke examina as relações entre Arte & Poder, o componente de propaganda implícito na fabricação de um símbolo e a manipulação da mídia já no século XVII. E, também, como reagiu ao verdadeiro massacre de propaganda que foi a construção do Rei Sol o povo francês – hoje chamado pelo marketing político público-alvo. No segundo livro, Burke nos mostra um panorama mais amplo: faz uma abordagem completa dos efeitos das mudanças nos meios de comunicações sobre o Mundo Medieval, desde a Imprensa criada por Gutenberg até a Enci-

clopédia concebida por Diderot. Luís XIV começa a ser preparado para ocupar o poder muito jovem, em 1643, após a morte do pai, por sua mãe e pelo cardeal Mazarin. Sua coroação em 1654 é feita de modo a projetar a imagem da monarquia sagrada tornando assim Luis semelhante a Cristo. E é assim que ele reinará durante 72 anos, e só será afastado do Poder pela Morte, em 1715. Até 1671, era oficialmente chamado apenas Luis o Grande. Mas logo passou a ser chamado de Rei Sol – além de augusto, belo, brilhante, constante, iluminado e outros adjetivos disseminados e manipulados pela máquina de propaganda real. Sendo o principal rei absolutista, disse de si mesmo: O estado sou eu. Mas no leito de morte teria dito: Vou partir, mas o estado permanecerá depois de mim. Voltando a sua infância, o vemos apresentado publicamente como qualquer bebê, enrolado em cueiros, ou na camisola geralmente usada pelos meninos até os sete anos. Mas a partir de 1643 sua imagem pública passa a ser enaltecida por todos os meios, sobretudo pelas Artes – escritas, plásticas ou dramáticas. Tudo visando criar um Luis XIV realmente brilhante, solar, para persuadir a população da sua grandeza. Consta que sua máquina de manipulação de mentes usava todos os recursos, inclusive fórmulas consagrada por tradições como a romana: a estátua equestre, o retrato solene, a epopeia, as odes, os panegíricos, os sermões e até mesmo a historiografia. Sempre em estilo grandioso ou magnífico - caso das pinturas e retratos – ou elevado caso das epopeias, odes e sermões - e às vezes até mesmo usava o tom sóbrio – via jornal Gazette – para demonstrar imparcialidade e passar de Luis uma aura de confiabilidade. A partir de 1661, Jean-Baptiste Colbert assume a função de conselheiro do estado e passa a patrocinar e conduzir com ainda mais determinação, em nome do Rei Sol, as Artes - para que

A fabricação do Rei Sol Quem nos conta tudo sobre como, desde a sua infância, Luis XIV foi fabricado Rei da França é o historiador inglês Peter Burke. Burke é um especialista na Idade Moderna Europeia e algumas de suas obras mais importantes estão publicadas no Brasil, como Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 15001800 e O Renascimento Italiano: Cultura e Sociedade na Itália. Seu livro mais recente, de 2011, une o Renascimento ao século XXI e se chama Uma história social do conhecimento: da Enciclopé-

Luis XIV e seu manequim - Charge anônima

sirvam e conservem o esplendor das realizações do rei. Com Colbert se implanta uma estrutura pública-cultural inteiramente a serviço da elevação da imagem do rei: são fundadas academias, que eram corporações de artistas, fábricas de móveis, tapeçarias e jornais – e todas essas instituições trabalhavam para dignificar o rei. Orientadas pela recomendação: É importante para a honra de sua majestade que o elogio que lhe seja feito pareça espontâneo. Quando Luis XIV declarou seu absolutismo pleno, com a declaração – L’Etat c’est moi, após a morte do cardeal Mazarin, todos esses artistas e artesões, devidamente cooptados, cuidaram de celebrar a frase e a decisão do rei como um ato magnífico. Anunciada e divulgada como uma prova de coragem de autoafirmação, a frase foi representada, esculpida, cantada, pintada. O mesmo tratamento apologético, de demonstração de força e superioridade do Rei Sol, era aplicado aproveitando todas as oportunidades que surgissem: como quando a Espanha teve que pedir desculpas a França, em 1661, e quando o Papa teve que pedir desculpas a Luis XIV, em 1692, por pretensas ofensas feitas por seus secretários ao embaixador da França. Depois de apregoar suas façanhas diplomáticas, chegou a hora de mostrar Luis XIV praticando façanhas bélicas. E, com sua fábrica de propaganda, delas saiu pintado e decantado sempre como herói conquistador e bem sucedido - como na Guerra da Devolução (1667-68) e a Guerra Holandesa (1672-78). A Guerra da Devolução começou com o rei da França se dando o direito de submeter os Países Baixos espanhóis ao seu domínio. Uma grande produção literária foi engendrada e divulgada, para provar seus direitos. Em seguida, se deu a invasão dos Países Baixos pelas tropas francesas lideradas pelo próprio rei que levou consigo toda sua corte, incluindo a rainha e duas amantes oficiais e dois pintores para pintarem suas proezas. A guerra, apresentada como mais uma vitória do Rei Sol, apareceu em medalhas, poemas, tapeçarias e gravuras. Com o fim da guerra, a paz foi celebrada com um festival, encenações - e foi criado um prêmio para a melhor obra sobre o tema: Luís pacifica a Europa. Na Guerra Holandesa o rei, em vez de pintores, levou historiadores e dramaturgos como Boileau e Racine para registrarem suas façanhas – reais ou inventadas. As odes da época falam da decisão do rei de punir os holandeses e assumir pessoalmente o comando da campanha, abandonando os prazeres da corte para se expor aos perigos e fadigas da guerra. Os feitos de Luis XIV na guerra foram esculpidos no arco do triunfo de Saint Martin, no arco da Place du Trône, encenados em festivais. E cantados em versos fabulosos - como

aquele que narra a travessia em que o próprio rio Reno ficou alarmado com a proeza do rei ao atravessá-lo a nado com seus soldados. Chegou-se à suprema consagração de Luis XIV com a instituição do Ritual do Toque: por ele, se demonstrava o poder miraculoso do Rei Sol – o rei tocava os doentes dizendo: - O Rei te toca, Deus te cura. E tudo culmina com a própria morte de Luis XIV sendo teatralizada e celebrada em publicações, com cenas do rei nos seus últimos momentos de vida - raros momentos reais na vida de um ator saindo do seu papel e descendo do palco – comoventes cenas do Rei Sol se apagando mas ainda dando conselhos aos seus súditos e, sobretudo, ao seu bisneto e sucessor.

A desconstrução do mito Certamente nem todos se deixavam enganar, cooptar e trabalhar para a celebração dessa vida de fantasia para consumo de massa do Rei Sol. Havia aqueles que lutavam pela desconstrução do mito. E usavam as mesmas armas e meios que a máquina de propaganda de Luis XIV: as Artes – literatura, teatro, pintura, música e, também as charges - do francês charger: carga, exagero ou, até mesmo ataque violento, como uma carga de cavalaria - mostrando o que de fato era o rei. Não o gigante solar criado para consumo público, mas apenas um pequeno homem – tinha 1 metro e 60 centímetros, que os saltos altos elevavam – magro – o que mantos e mais mantos que o cobriam disfarçavam - e calvo – o que era disfarçado por grandes perucas. Além disso, a Oposição revelava sua ambição, falta de escrúpulos, tirania, doentio amor próprio e suas fragilidades militares e sexuais. E também mostrava como a imagem pública de Luis XIV não emanava, como o Sol, de um único centro, mas de uma legião de escritores, artistas e patrocinadores oficiais e não oficiais que a criavam. A esses opositores era dado o mesmo tratamento que recebeu o pintor Honoré Daumier, preso por seis meses, um século depois, em 1832, por ter feito uma charge de outro rei da França, Louis-Philippe I, denunciando sua ganância, sua exploração da população através de impostos, sua corrupção eleitoral. A charge de Daumier, que aparece nesta página Sim, compara o rei a Gargantua, o gigante insaciável de Rabelais, mostrando o povo derramando por sua goela seus poucos bens e debaixo do seu trono – no duplo sentido de trono real e vaso sanitário – os deputados submissos ao rei, recebendo os seus dejetos.


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