OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 4 DE MAIO DE 2014
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Como era seu rosto antes de você ter nascido? A luz dos olhos é como um cometa, a atividade do Zen é como um relâmpago.
I
sto é um Koan Zen. -Como era o meu rosto antes de eu ter nascido? Sim. Você pode ficar anos, toda a sua vida, procurando a resposta. Mas se for pelas vias labirínticas da Mente Racional, certamente a resposta jamais virá. E se abandonar essas vias, o que acontece? Simplesmente, sem precisar de anos e anos, talvez num segundo – a resposta se apresentará a você como um relâmpago cortando o céu sem lua nem estrelas da sua noite escura. Experimente, se pergunte: - Como era o meu rosto antes de eu ter nascido? Nada? Eis um outro Koan. Que tal experimentar com este: - Há muito tempo um homem mantinha preso um ganso numa garrafa. Ele cresceu, cresceu, até que não podia mais sair da garrafa. O homem queria tirar o ganso, mas sem quebrar a garrafa nem ferir o ganso. Como o ganso poderia ser retirado? Nada ainda, nem sinal de uma resposta? Ou quem sabe, num relampejar de mente, você já não achou a resposta para os dois Koans acima? E sua Mente Intuitiva se abriu. E, agora, você vai poder responder, com a maior facilidade, a mais este Koan aqui: - Conhecemos o som de duas mãos mãos batendo palmas. Qual é o som de uma única mão batendo palma? Mas, afinal, o que é um Koan? Uma brincadeira de criança? Um jogo de advinhações. Um quebra-cabeças para ser montado, ou desmontado? Uma alucinação desperta? Uma página de Alice no País da Maravilhas? O Koan é uma das formas de meditação usadas pelo Zen para libertar a mente dos seus condicionamentos, para mostrar as limitações da racionalização do mundo e da vida. A função de um Koan é levar a mente a um ponto limite em que ela, esgotando todos os seus recursos pelas habituais vias racionalizantes, explode em uma desistência – cessa de continuar dominando pela Razão e, então, como novos olhos, novas vias de Compreensão se abrem em nós – e nos tornamos árvores brotando novas maneiras de ver & viver a Vida.
Mondo – uma história cheia de significados implícitos que, uma vez compreendida – zás - se tornam todos explícitos. Vou contar com minhas palavras célebre Mondo a você: - Certo dia um mestre Zen caminhava no campo com um discípulo. Sua sandália desamarrou e o mestre se abaixou para amarrar. Nesse instante, passa no céu uma revoada de patos selvagens e o discípulo toca o mestre para lhe mostrar. Quando o mestre se ergue, as aves já sumiram, e ele pergunta ao discípulo: - O que foi? O discípulo responde: - Uma revoada de patos selvagens. O mestre pergunta: - Onde? O discípulo responde: - Já passaram. Então o mestre pega o nariz do discípulo e o torce violentamente. O discípulo cai em prantos. No dia seguinte, na refeição matinal, o discípulo entra no refeitório cantando, dançando e rindo. O mestre lhe pergunta: - O que aconteceu? Ontem estavas chorando, hoje estás rindo? O discípulo responde: - Ontem eu estava chorando, hoje estou rindo. Entendeu?
O Espírito do Zen Alan Watts, em seu livro O Espírito do Zen, descreve o Koan a partir da situação do ganso preso na garrafa como um meio de ultrapassar uma barreira. Segundo Watts, assim como a moralidade, a mente é um bom servo e mau mestre e, enquanto a regra for a de que os homens se tornem escravos por seus modos intelectuais de pensamento, o Zen visa controlar e ultrapassar o intelecto - mas, como no caso do ganso e da garrafa, o intelecto, como a garrafa, não é destruído. O Koan não é um meio para induzir o transe, como se alguma espécie de transe fosse a mais alta conquista possível para seres humanos - é apenas um meio de ultrapassar uma barreira ou, como os mestres zen o descrevem, é um tijolo com o qual batemos na porta - quando ela se abre, o tijolo pode ser jogado fora, e essa porta é aberta no momento do Satori, o discípulo não entra em transe, mas passa a ter uma nova atitude de vida que reflete uma notável beleza. O Koan é, resumindo, um combate não apenas mental mas também espiritual, que exige o que os mestres Zen chamam de um grande espírito de busca. Um deles, o mestre Ku-mei Yu, descreveu assim esse combate: Uma vez elevado diante da mente, não deixes nunca o Koan escapar - tenta, com toda persistência que possuíres, ver a significação que o Koan te dá e nunca vaciles em tua determinação de ir até o fundo do assunto... Não faças do Koan um quebra-cabeças - não busques o seu significado na literatura que aprendeste - vai firme nele sem qualquer espécie de ajuda intermediária. Além do Koan, o Zen usa outros meio de abrir a mente. Um deles é o
Genrõ Suiõ (1717-1789): Ilustração para o Mondo dos Patos Selvagens
Bem, eu entendi que a história toda é uma lição sobre o Agora – sobre o Presente como instante único, e nos chama a atenção para vivermos cada momento como um agora e, sem apegos, deixarmos o passado seguir para o seu lugar e lá ficar, isto é: no Passado. Esse é um Mondo relativamente fácil. Outros, nem tanto. Este aqui, por exemplo: Um dia o mestre Joshu foi a um lugar onde um monge havia se retirado para meditar e perguntou a ele: - O que é, é o que? O monge levantou o punho. Joshu respondeu: - Os navios não podem permanecer onde a água é muito rasa. E foi embora. Entendeu? Observe que um Mondo pode funcionar também como um Koan, isto é: como um enigma que fica martelando sua pergunta na porta da nossa mente racional, até ela se abrir, sair do caminho, e deixar passar a resposta – e se isso não acontecer, o Mondo ou o Koan permanecerão martelando sua Mente até o fim dos seus dias. Pois, segundo o Zen-Budismo, no Fim, não há por-
ta que permaneça fechada: todas se abrem de par em par. Quer mas um? Este – que claramente é, ao mesmo tempo, um dos mais enigmáticos Mondo & Koan: - Um dia o mestre Nansen viu os monges das salas orientais e ocidentais brigando por um gato. Ele agarrou o gato e disse aos monges: - Se algum de vocês dizer uma palavra boa, pode salvar o gato. Ninguém respondeu. Então Nansen cortou o gato em dois pedaços. Naquela noite, Nansen contou a Joshu o que tinha acontecido. Joshu tirou as sandálias e, colocando elas na cabeça, se retirou. Nansen disse: - Se você estivesse lá, poderia ter salvo o gato. Um dos mais puros e célebres Koans é este - sugiro que você o ponha diante da sua Porta Racional com a certeza de que, se for obtida a resposta, só restará dela ruínas para sempre - e você terá acesso, enfim, a sua Mente Real, como ela se apresenta quando chamada de Não-Mente, por Hui Neng, o Sexto Patriarca Zen, ou como Rigpa, a Mente de Clara Luz, pelo Dzogchen, no budismo tibetano. Ei-lo: - Kyogen disse: Zen é como um homem suspenso sobre um abismo preso pelos dentes a uma árvore. Não tem onde apoiar os pés e nem onde se segurar com as mãos. E alguém pergunta a ele: - Por que Bodhidharma veio da Índia para a China? Se o homem na árvore não responder, falha - se abrir a boca e responder, cai e perde sua vida. O que fazer? O mais fascinante nos Koans & Mondos Zen é que eles participam, ao mesmo tempo, de uma natureza Obscura & Transparente. – Obscura como a nossa mente racionalizante, enquanto não são compreendidos. – Transparente a partir do exato momento em que o Clarão da compreensão cintila em nossa mente. Mas não se trata de uma natureza dual, dupla, e sim Una: em sua obscuridade já está contida a transparência, e na transparência, mesmo já atingida, continua a haver obscuridade.
O Sermão da Flor Provavelmente o mais antigo KoanMondo surgiu no Budismo originário, criado pelo próprio Gautama Buda. Se chama O Sermão da Flor e a esse sutra sem palavras são atribuídas as origens do Zen. É assim: Buda reuniu seus discípulos para falar sobre o Dharma. Quando todos estava reunidos. Buda permaneceu inteiramente em silêncio e alguns discípulos acharam que estava cansado, talvez doente. Então, silenciosamente, Buda levantou uma flor. Os discípulos tentaram entender o significado disso, mas nenhum corretamente. Só um deles, Mahakashyapa, também silenciosamente, olhou para a flor e obteve um entendimento além das palavras – o prajna/sabedoria – diretamente da mente de Buda: compreendeu o sentido inexprimível da flor. Buda percebeu isso, sorriu pa-
ra ele e disse: - Eu possuo o verdadeiro olho do Dharma, a mente maravilhosa do Nirvana, a forma verdadeira do informe, o portal sutil do Dharma que não depende de palavras ou escritos, mas é uma transmissão especial fora das escrituras. Isto eu passo a Mahakashyapa. Essa transmissão mente a mente, no Budismo, é muito rara. Dogen a conheceu, também, com seu mestre. E alguns outros. Por esse raro dom de compreensão sem palavras, Mahakashyapa se tornou o primeiro patriarca do Zen chinês, anterior a sua forma japonesa e chamado Chan. Voltemos agora apenas ao Koan, e exatamente ao primeiro lançado nesta página Sim, aquele que pergunta: - Como era o seu rosto antes de você ter nascido? Se você ainda não obteve a resposta, não desista. E deixe que lhe diga uma coisa que eu descobri: só se entende Koans & Mondos quando se entende a Pergunta, e é nela que devemos nos concentrar – não buscando as respostas. Voltemos ao Alan Watts e à compreensão que ele teve do Koan. Watts diz: Uma vez iniciado o trabalho com o Koan, toda uma massa de ideias surgirá na mente, significados simbólicos, associações, possíveis soluções e toda espécie de pensamentos peregrinos. Eles devem ser firmemente postos de lado e, quanto mais insistentes se tornam, mais intensamente temos de nos concentrar no próprio Koan, lutando para penetrar no dilema que ele representa. De tempos em tempos, o mestre entrevistará o discípulo para verificar como está o seu progresso e, inúmeras vezes, quando o discípulo oferecer como solução um pensamento meramente intelectual e lógico, o mestre o desaprovará dizendo que deverá tentar de novo. Em geral, esse processo continuará por vários anos, até que o discípulo eventualmente alcance um completo impasse: compreende então, que qualquer solução intelectual é fútil - atinge um estado onde o dilema da vida contido no Koan se torna uma esmagadora realidade e um problema tão urgente a ponto de poder ser comparado a uma bola de ferro presa na nossa garganta. Do ponto de vista filosófico, podemos compreender perfeitamente que o grande problema da vida é arrancar o ganso da garrafa sem feri-lo, passando além da afirmação e da negação, encontrando a libertação das alternativas impossíveis de dominar o mundo tentando possuir tudo ou deixando que sejamos completamente dominados pelas circunstâncias. Mas isso não significa que compreendamos o problema como sendo a mais urgente de todas as necessidades. A escolha está entre nos afirmarmos contra o mundo, tentando fazer com que todas as coisas se submetam a nós, e por outro lado, nos entregarmos completamente ao destino, negando assim a nossa capacidade
pessoal de alcançar qualquer coisa. A maioria de nós evita essa última forma e tenta francamente a primeira, se apegando rapidamente às posses físicas e mentais na esperança de incorporá-las à sua bagagem.
A última gargalhada Ainda segundo Watts: Mas o trabalho com um Koan faz do problema uma realidade imediata e, quando o impasse é alcançado, o discípulo se assemelha a um rato que é perseguido num túnel sem saída, ou a um homem que subiu até o topo de um poste ou chegou à beira de um precipício tentando escapar de um incêndio. Somente quando esse estágio sem esperança é alcançado é que os mestres estimulam os discípulos a redobrarem seus esforços. Um caminho tem de ser encontrado no topo de um poste, e um rato tem de reunir todas suas forças para romper as paredes do túnel. O mestre T’ui-yin em O espelho para estudantes do Zen descreve assim esse estágio: Quando a investigação continua firme e sem interrupções, verás que não existe nenhuma pista intelectual no Koan, pois ele é completamente desprovido de significado, no sentido normal dessa palavra, é inteiramente plano, desprovido de gosto, não tem nada de apetitoso, e que estás começando a te sentir impaciente e pouco a vontade. Depois de certo tempo – segundo Watts - esse sentimento se intensifica, e o Koan parece ser algo opressivo e impenetrável, a ponto de o discípulo se comparar a um mosquito que tenta picar um pedaço de ferro - mas, segundo T’ui-yin, no mesmo momento em que o ferro rejeita definitivamente o seu fraco ferrão, de imediato e de uma vez por todas ele se esquece de si mesmo, consegue penetrar, e o trabalho é feito. Para Alan Watts, não há como explicar esse momento, a não ser dizendo que é o momento em que os grilhões da ilusão se rompem sob a intensa pressão da vontade do discípulo. Quando o dilema final está diante do discípulo, ele o vencerá com uma tremenda força de vontade e, quando essa tremenda força de vontade faz frente à teimosa resistência do Koan, algo acontece - e, assim como no momento do impacto, quando o mosquito pousa no pedaço de ferro, vem um relâmpago de Satori, a Iluminação, e o discípulo compreende que não existe problema algum! - Nada lhe resta fazer nesse momento, diz o mestre Zen, a não ser explodir numa gargalhada. Entendeu? Ver o seu rosto antes de haver nascido – tirar o ganso da garrafa – ouvir o som de uma única mão batendo palma – é tudo uma coisa só. O relâmpago Zen.