Sim 50 As Palavras e as Coisas

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 18 DE MAIO DE 2014

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

As Palavras e as Coisas

Palavras são iguais às ondas e ao vento As ondas e o vento facilmente se movem CHUANG TZU

E

xperimente. Olhe ao seu redor e tente descobrir alguma coisa a que o Homem ainda não deu um Nome. E, se descobrir, por favor: mande me dizer pelo e-mail aí do alto da página. Mas é bom saber logo que a experiência pode ser assustadora, pelo menos foi para mim, quando um dia tentei – mas isso eu conto mais adiante na página Sim de hoje. Para você ter uma ideia da dimensão atordoante dessa experiência, saiba que até a poderosa escritora Virginia Woolf falhou, quando tentou - se desviando das próprias coisas, para escapar das palavras que as encobrem. Virginia Woolf disse: Não escrevo sobre as árvores do bosque, escrevo sobre o intervalo entre elas. Onde está a falha? Ora, na palavra intervalo, que já é um nome dado ao espaço vazio que existe entre uma árvore e outra. Percebeu o terá que enfrentar se aceitar esse desafio: descobrir alguma coisa que ainda não tenha um nome? Vai ousar? Enquanto você se decide, prossigo com o nosso assunto deste domingo: As Palavras e as Coisas. O título você já deve conhecer, porque é o mesmo do célebre livro do filósofo francês Michel Foucault – que passou uns dias em Belém, nos anos 60, hospedado na Travessa da Estrela, na casa do nosso pensador Benedito Nunes. Mas Benedito não tem nada a ver com isso, quem tem a ver é o Jorge. Que Jorge? O argentino Jorge Luis Borges, o primeiro escritor sul-americano a inverter uma tradição, quase um dogma histórico – pois, em vez de escrever um livro seu a partir do livro de um escritor europeu, levou um escritor europeu, Foucault, a escrever seu livro a partir de um livro dele, Borges. Na verdade, Borges nem precisou escrever um livro todo para isso, bastaram algumas palavras. Mas deixemos que o próprio Foucault nos conte como isso se deu.

Uma certa enciclopédia chinesa Foucault: Este livro nasceu de um texto de Jorge Luis Borges. Do riso que sacode, à sua leitura, todas as familiaridades do pensamento – do nosso, do que tem a nossa idade e a nossa geografia – abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a pululação dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo tempo a nossa pratica milenar do Mesmo e do Outro. Este texto cita uma certa enciclopédia chinesa onde vem escrito que os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) et caetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. No deslumbramento desta taxinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio de apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto. O texto original de Borges diz o título da citada enciclopédia, que Foucault, em seu assombro, omite, e cito aqui: Empório Celestial de Conhecimento Benevolente. Mas prossigamos com o assombro de Foucault. Ele se pergunta: Que é, pois, que é impossível de pensar e de que impossibilidade se trata? (...) O que transgride toda a imaginação, todo pensamento possível, é, simplesmente, a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias. Ainda assim, não se trata dos encontros insólitos. Sabe-se o que há de desconcertante na proximidade dos extremos ou, muito simplesmente, na vizinhança súbita das coisas sem relação – a enumeração que as faz entrechocar-se possui, por si só, um poder de encantamento. (...) A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste,

ao invés, em que o próprio lugar dos encontros nela se acha arruinado. O que é impossível não é a vizinhança das coisas, é o próprio sítio em que elas poderiam convizinhar. Os animais i) que se agitam como loucos, j) inúmeros, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo – onde poderiam eles jamais encontrar-se, salvo na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, salvo na página que a transcreve? Onde eles podem justapor-se, senão no não lugar da linguagem?

O não lugar da linguagem E assim chegamos ao que poderia ser uma possível compreensão do papel da linguagem em nossas vidas: as palavras certamente não são as coisas – elas fazem das coisas outras coisas. E assim é que a árvore que eu vejo não é a palavra árvore que eu leio. Um pouco complicado, hein? Mas, com paciência e sobretudo bom humor, você consegue entender. É a esse humor que Foucault – para não enlouquecer sua sensata mente ocidental – se rende, se entrega. Ele, Foucault, confessa, no Prefácio de As Palavras e as Coisas: - Este texto de Borges me fez rir durante muito tempo, não sem um verdadeiro mal-estar difícil de vencer. Talvez porque depois vinha a suspeita de que existe uma desordem pior do que a do incongruente e da aproximação do que não concorda entre si: a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito. (...) Bem, aqui, temos que recorrer ao Dicionário, para que as coisas não se compliquem demais e nos retirem todas as chances de descobrir alguma coisa na Vida que ainda permaneça inominada. De heteróclito qualquer dicionário nos diz isso: - Diz-se do que é fora do comum – estranho, singular, excêntrico – que destoa do natural. Definição que nos lança frontalmente para o seu oposto simétrico, o sufixo – homo. Que se usa como indicador de mesmo, semelhança. Mas, afinal, no fundo não são palavras tão estranhas assim aos nossos ouvidos, ao contrário, são até bem familiares quando resumidas aos seus devidos sufixos: hetero & homo. E para ilustrar essa oposição – hetero/homo – voltamos ao livro de Foucault, quando ele dá um trecho do Cours d’histoire naturelle/Curso de história natural, de 1772, de Adanson, como exemplo da tendência obsessiva da mente ocidental para as simetrias e o refúgio no familiar – pois a nossa é claramente uma mente que teme, bem mais que a oriental, o Desconhecido.

A familiaridade como refúgio Foucault nos conduz para esse refugio seguro, com as seguintes palavras introdutórias: Admitem-se as grandes família que são, evidentemente, reconhecidas, e que as primeiras descrições, como que às cegas, definem os traços gerais. (..) O conhecimento de cada espécie poderá ser facilmente adquirido a partir dessa caracterização geral, e Foucault cita Adanson, que nos diz, com grande candura e singeleza: - Nós dividiremos cada um dos três reinos em várias famílias que reunirão todos os seres que tiverem entre si relações evidentes, pas-

Iwazaru: não falo nada

Magritte: “A condição Humana”. - Descubra o que ainda não tem um nome nesta imagem.

saremos em revista todos os caracteres gerais e particulares dos seres contidos nessa famílias – desta maneira, se poderá ficar seguro de ter relacionado todos esses seres com suas famílias naturais. Adanson então passa a nos oferecer a sua própria tediosa, repetitiva, e nada surpreendente enciclopédia ocidental dos seres, sem sequer um esboço de riso libertário. Diz ele: E é assim que começando pela fuinha e pelo lobo, pelo cão e pelo urso, se conhecerá suficientemente o leão, o tigre, a hiena, que são animais da mesma família. Quanta diferença, nessa proximidade por semelhança banal, de Adanson, da insólita aproximação por semelhança de Borges, que, lidando com os mesmos membros de uma família evidente – os animais em geral – os reúne do modo estonteante, mantendo porém sua natureza original intocável, e um espaço de desarticulação total do chamado bom-senso - m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. É essa liberdade, lúdica, o que distinguiria a mente ocidental da mente oriental, quando se confronta a obliqua certa enciclopédia chinesa de Borges Empório Celestial de Conhecimento Benevolente com o linear Curso de História Natural, de Adanson? Para mim, no Curso de Adanson se vê claramente a presença de um Outro, que é um eu-Ego, rígido, mal-humorado, que se da o pleno direito e de se manter como um centro autossuficiente e supremo, humano, que se elege como única diferença e reduz tudo ao seu redor - a Natureza tratada como o restante - a uma semelhança, sem saída, submetida às restrições e à imobilidade do Mesmo. Mas eu prometi contar, aqui, meu próprio susto quando um dia me dei conta de que as Coisas estavam encobertas por Palavras, para onde quer que eu olhei a Vida ao meu redor. Foi assim aquele dia alucinante:

Kikazaru: não ouço nada

- Primeiro, procurei na horizontal, na Terra, e depois de nada achar ergui os olhos para o Céu, em busca de uma única coisa a que o Homem não tivesse ainda dado um Nome, e também aí, na vertical, não achei mais nenhuma. Meu terceiro movimento foi buscar dentro de mim, mas aí também já não achei nada ainda Inominado. A coisa chocante que descobri foi: - Oh, o humano cobriu com Palavras todo o Cosmos, da objetividade da pedra, da formiga, da estrela à subjetividade dos sentimentos, sensações, pensamentos. E passou a se relacionar - mesmo aqueles que não Escrevem absolutamente nada, e apenas Falam - com os Nomes dados às Coisas como se fossem as Próprias Coisas. Mas nem tudo estava perdido para as palavras, porém, porque ouvi que, por trás do Visível, rumorejavam, no Invisível, ainda Coisas Inominadas. E exatamente onde, em que dimensões? Numa dessas dimensões, por fora de mim, no chamado Mundo, por entre as grades da jaula que aprisiona e define o território do espaçotempo – e na outra, dentro de mim, no micromundo que sou, por entre as grades da outra jaula em que os Sentidos despejam, após recolher no exterior, aquilo com que alimentam a Mente - onde são forjadas as Palavras e os Nomes dados as Coisas. As principais consequências dessas descobertas foram duas: a primeira, que as Palavras ocultam as Coisas de nós, atribuindo a elas arbitrariamente Nomes que certamente não são os delas e provavelmente elas não têm - a segunda, que as Palavras devem ser usadas não para Dizer, designativamente, nomeando, as Coisas, pois é assim que as ocultam - mas, em uma grande reviravolta como que pelo avesso do próprio homem, para perguntar e ouvir delas mesmas os seus possíveis Nomes - se elas, coisas, têm nomes. Mas isso é praticamente passar a habitar, em Si mesmo & no Mundo, como que em um, chamemos assim, Estado de Graça. Para ter o direito de receber as Revelações desse Estado, o primeiro passo que dei foi - abrir mão, no ato da criação, da condição autoatribuída de Criador: e busquei me tornar um simples Receptor, para permitir o nascimento, em Mim - abolido o Eu, ao máximo - de um Dom - o Dom de atuar meramente como um Meio, mero Transmissor humano aos outros homens do que as Coisas Sem Nome se consentissem des-velar a mim sobre suas verdadeiras, digamos, naturezas. E foi assim que passaram a surgir, aqui e ali, nos livros visíveis de Andara, os livros que

escrevo, frases como: - Coisas sem nome estão passando. E foi assim que surgiu Viagem a Andara oO livro invisível, o nãolivro, que não é escrito, no qual, pela ausência das palavras, não há Nomes: só uma Ausência e a impossibilidade de nomear. Mas essa Ausência não sendo um Nada e sim sendo a real Presença das coisas, objetivas & subjetivas, em sua dimensão de Inomeadas, e assim Abertas-em-si-mesmas. Pois estando todo o Visível ocultado pelas Palavras/ Nomes - as Coisas Sem Nome só podem se manifestar Invisivelmente.

As Coisas sob as Palavras Desse modo foi que tentei, através de Andara me libertar da armadilha de ocultar as Coisas sob as Palavras. Mas, vejam, tudo isso que foi dito aqui ainda é o território povoado pelo dizer das palavras – e, como nos livros visíveis de Andara, aqueles que são escritos, é justo reconhecer que elas, as palavras, podem, sim, ser usadas, desde que não para ocultar as coisas. Mas como meio de Trans-figuração do Visível das Coisas pelo qual elas, certamente, sob a aparência de Si se ocultam de nós. Podemos beber nas margens das nossas vidas em vasilhas ou apenas na concha das mãos – o importante é não perder de vista que o fundamental, em nós, humanos, é a Sede. Então, nem como o macaco Iwazaru e nem como o macaco Kikazaru, vou matar a minha sede de brincar encerrando esta página abrindo as portas chinesas do meu próprio Empório Celestial de Conhecimento Benevolente, e dizer que os homens se dividem em: a) aqueles que têm cabeça grande b) os que celebram na praia a sorte de terem naufragado em uma ilha de canibais na época em que praticam o jejum c) os que se recusam a acender palitos de fósforos no Ártico e) os que só existem em nossos sonhos f) aqueles que proíbem os cães de uivarem para a lua cheia g) os que não se reconhecem nos espelhos h) os que vivem desde já como futuros sobrev iventes do Apocalipse i) Não quer experimentar? Experimente, continue. E ouse ir além do Z.


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