Sim 51 René Char: Poesia & Resistência

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 18 DE MAIO DE 2014

sim

MAGAZINE  11

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

René Char: Poesia & Resistência Aquele que vem ao mundo para nada perturbar não merece nem consideração nem paciência. RENÉ CHAR

P

repare-se para conhecer na página Sim de hoje, se ainda não conhece – o que é uma pena – mas logo se tornará uma alegria - René Char, um dos mais originais, livres e libertários poetas dos nossos tempos. Homem de ação em todos os sentidos, Char tanto usou as palavras quanto, quando necessário, as armas, a serviço da Liberdade humana. Durante a Segunda Guerra Mundial nós o achamos comandando outros homens em luta contra o nazismo, na Resistência. Antes, logo após a Primeira Guerra Mundial, já o tínhamos usando as palavras como armas, como participante do Movimento Surrealista. E sobrevivendo à Segunda Guerra, eis Char plenamente de volta às palavras libertadoras. René Char é um fenômeno raro na Literatura: seu nome evoca uma unanimidade espantosa, desde seus contemporâneos, até aqueles que o leem hoje em dia. Todos têm por ele o mesmo respeito e admiração que seus célebres amigos – os poetas surrealistas Paul Éluard, André Breton e Louis Aragon, cineastas do movimento como Luis Buñuel, pintores como Salvador Dalí, Max Ernst, Braque, Juan Miró, Kandinsky e Picasso, que o pintaram e ilustraram seus livros. Mas comecemos pelo começo. René Char nasceu em 1907, em Isle-sur-la-Sorgue, na França. Perdeu o pai no último ano da Primeira Grande Guerra, em 1918, aos 11 anos de idade. Logo se mudou para Paris, onde de dia trabalhava no comércio e após o Crepúsculo se transfigurava infiltrado na vida noturna da cidade. Foi nessas penumbras iluminadas que conheceu, em 1929, Aragon, Breton e Éluard. Escreveu e publicou junto com Breton e Éluard, em 1929, o livro Ralentir Travaux. Em 1930, aos 23 anos de idade, fundou com Éluard, Breton e Aragon a publicação Le Surrealisme au Service de la Révolution/O Surrealismo a Serviço da Revolução e assinou a declaração surrealista em defesa da liberdade de expressão na obra de arte em resposta ao ataque violento de fascistas ao Studio 28, durante o lançamento do filme L’Age d’Or/A Idade de Ouro, de Buñuel e Dalí, em 1928, quando os agressores invadiram o cinema, jogaram tinta na tela de projeção e destruíram obras de Dali, Ernst, Man Ray, Miró e Tanguy. Mas depois Char se afastou do surrealismo, como movimento, e seguiu seu caminho poético solitário, se mantendo próximo apenas de Paul Éluard. Seu primeiro livro individual aparece em 1934: Marteau Sans Maître, reunião de poemas celebrando, com nostalgia, os encantos da sua terra natal, como um refúgio paradisíaco confrontado com a Paris caótica que começa a surgir entre as duas grandes guerras. A Guerra Civil que explodiu na Espanha reaproximou momentaneamente Char e os surrealistas, contra o fascismo do General Franco. E a explosão da Segunda Guerra Mundial levou Char a trocar de armas – parou de escrever e foi combater o nazismo, como membro da Resistência francesa. Char retorna inteiramente às palavras a partir 1945, com o fim da guerra – então, surgem suas obras mais pessoais, que refletem as marcas desse tempo de morte, como Feuillets d’Hypnos, em 1946, e, em 1948, talvez o seu livro mais admirado, Fureur et Mystère/Furor e Mistério, que a crítica define como uma celebração da poesia e do seu papel apaziguador da fúria do mundo. Outro livro famoso de Char, de muitos anos depois, é Le Nu perdu/O Nu perdido, de 1971. Em 1983 saiu uma edição da sua obra poética completa, Œuvres Complètes, e René Char se foi, em Paris, cinco anos depois, em 1988.

Max Ernst: “Europa depois da chuva”

As Palavras do Poeta

Enquanto Ernst pinta a Europa devastada pela guerra, Char combate os nazistas na Resistência francesa

O poema Os companheiros no jardim, em forma de aforismos, do seu livro Furor e Mistério, foi escrito por René Char durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto combatia os nazistas em sua Provença natal, comandando um grupo da Resistência. Char mescla a transparência da percepção poética com a obscura vida do corpo no mundo, não como dualidade, mas como compromisso unificado do humano.

Les compagnons dans le jardin Os companheiros no jardim René Char

L’homme n’est qu’une fleur O homem não passa de uma flor do ar sustentada pela terra, maldita pelos astros, respirada pela morte; o sopro e a sombra de tal coalizão, por vezes, o sobrelevam. Notre amitié est le nuage blanc Nossa amizade é a nuvem branca preferida do sol. Notre amitié est une écorce Nossa amizade é uma casca livre. Não pode ser separada das proezas de nosso coração. Où l’esprit ne déracine plus Ali onde o espírito já não desenraiza mas replanta e cuida, nasço. Ali onde começa a infância do povo, amo. XXe siècle: Século XX: o homem desceu ao máximo. As mulheres se iluminavam e se deslocavam rapidamente num superpatamar a que só nossos olhos tinham acesso. A une rose A uma rosa me uno. Nous sommes Somos ingovernáveis. Nosso único senhor propício é o Relâmpago, que ora nos ilumina, ora nos fende. Éclair et rose Relâmpago e rosa, em nós, em sua fugacidade, para nos realizar, se juntam. Je suis d’herbe dans ton matin Sou de relva em tua manhã, minha pirâmide adolescente. Eu te amo sobre tuas mil flores, de novo fechadas. Prête au bourgeon Disposta ao broto, cedendo-lhe o futuro, todo o esplendor da flor profunda. Teu duro segundo olhar, pode. Assim o gelo não o destruirá. Ne permettons pas Não permitamos que nos roubem a parte da natureza que guardamos. Não percamos dela nem um fio, não cedamos nem um seixo de sua água. Après le départ des moissonneurs Após a partida dos ceifadores, nos planaltos de Île-de-France, esse pequeno sílex esculpido que emerge da terra, apenas em nossa mão, faz surgir de nossa memória um caroço equivalente, caroço de uma aurora cuja alteração e fim, acreditamos, não iremos ver; apenas o rubor sublime e o rosto erguido. Leur crime: O crime cometido: uma furiosa vontade de nos ensinar a desprezar os deuses que vivem em nós Ce sont les pessimistes São os pessimistas que o porvir eleva. Em vida, vêem se realizar o objeto de sua apreensão. No entanto, as uvas, após a colheita, em cachos coroam o cepo; e os filhos das estações, não reunidos segundo o hábito, prementes firmam a areia na

borda da onda. Isto os pessimistas também notam. Ah! le pouvoir Ah! O poder de levantar-se de outra maneira. Dites Digam, o que somos nos fará jorrar em buquê? Um poète doit laisser des traces Um poeta deve deixar pegadas de sua passagem, não provas. Só os vestígios fazem sonhar. Vivre Viver é obstinar-se a consumar uma lembrança? Morrer é tornar-se, mas em parte alguma, vivo? Le réel O real, algumas vezes, mata a sede da esperança,. É por isso que, contra toda espera, a esperança sobrevive. Toucher Tocar com nossa sombra um estrume, por serem tantos os males guardados no flanco e pensamentos loucos no coração, isso se permite; mas ter em si um sagrado... L’Histoire n’est que le revers A História é apenas o avesso da roupa dos amos. Também uma terra de pavor onde o Licaon caça, e que a víbora raspa. A miséria está no olhar das sociedades humanas e do Tempo, com vitórias que ascendem. Lorsque je rêve Quando sonho e avanço, quando retenho o inefável, ao despertar estou de joelhos. Luire et s’élancer Luzir e lançar-se - rápida faca, lenta estrela. Dans l’éclatement Na explosão que experimentamos do universo, prodígio! Os pedaços que caem estão vivos. Ma toute terre, comme um oiseau Minha querida terra, tal pássaro carregado em fruto numa árvore eterna, sou teu. Ce que vos hivers nous demandent O que seus invernos nos pedem é que levantemos pelos ares aquilo que sem isso não passaria de limalha e bode expiatório. O que seus invernos nos pedem, é que preludiemos por vocês ao sabor: um sabor igual ao que a civilização do fruto canta sob sua redondeza alada. Ce qui me console Isto me consola: quando estiver morto, estarei aí desagregado, repugnante - para me ver poema. Il ne faut pas que ma lire me devine Não preciso que minha lira me adivinhe, que meu verso desvele o que eu poderia ter escrito. Le merveilleux chez cet être O maravilhoso neste ser: toda fonte, nele, dá a luz um riacho. Com o menor de seus dons provoca uma tempestade de pombas. Dans nos jardins Em nossos jardins preparam-se florestas. Les oiseaux libres Os pássaros livres não suportam ser observados. Em sua proximidade, sigamos obscuros, renunciemos a nós mesmos. Ô survie encore, toujours meilleure! Oh, sobrevivência, cada vez melhor!

Char denunciar o fascismo e a hipocrisia. Ele diz em uma entrevista: - Estamos rodeados, nos homens mais comuns, por juízes com caras de verdugos, e por cães de polícia farejadores! Mas, como é isso? Ninguém tem jamais por que examinar nem condenar a alguém que se contenta em sofrer a realidade cotidiana com todas suas imperfeições e todas suas debilidades e que não erige sua própria vulnerabilidade em púlpito, de onde denunciar o próximo à vingança pública... No entanto, isso já não é assim, tão depressa vai o mal... Penso, a esse respeito, muito especialmente em Villon, que é, sem dúvida, o maior poeta francês. Mas justamente quando certos escritores, que não são – o ignorem ou não – senão atores da literatura – olímpicos ou frenéticos – entendem de intervir – então creio que há uma impostura manifesta que é preciso reduzir. Vejam, todo homem é, em geral, diferente do que crê ser tanto no bem quanto no mal, no erro como na verdade. Nenhum de nós escapa dessa fatalidade. Os truques não levam a nada. Char põe a Esperança acima de tudo. Ele diz: - No momento em que vivemos – e penso sobretudo naqueles que vivem nesta hipnose tão particular que difunde o clima de nossa época – a Esperança e verdadeiramente a única linguagem ativa e a única ilusão suscetível de ser tra nsformada em bom movimento. Nós, homens, poetas, temos que nos contentar em assegurar esta esperança. Não poderia haver poesia ou vida sem esperança – poesia: esperança extrema – existência: esperança relativa. A poesia é a solidão nobre por excelência, uma solidão, enfim, que tem direito de se confiar. Hegel disse que, do ponto de vista do sentido comum, a filosofia é o mundo ao contrário. Parafraseando ele, se poderia dizer que, do ponto de vista da equidade, a poesia é o mundo em seu melhor lugar. Ainda que se enfrente uma natureza pessimista, aquele que aceite as perspectivas do Devir deve se dar perfeita conta de que, neste caso, o móvel deste pessimismo é ambiguamente a esperança – esperança de que algo inesperado surja, de que a opressão será derrubada. Parece que a poesia, pelos caminhos que ela tem seguido, pelas provas a que resistiu para merecer seu nome de poesia, constitui a posição que permite ao ser exausto e desmoralizado voltar a encontrar forças novas e razões frescas para perseguir a presa ou a sombra uma vez mais.


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