Sim 52 A Bolsa e a Vida

Page 1

OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 1 DE JUNHO DE 2014

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

A Bolsa e a Vida

Hoje se vive da arte de gastar o dinheiro que o próximo tem no bolso FRIEDRICH HEBBEL

A

lguém deve ter pago para que Belém aparecesse, na semana que passou, em sétimo lugar entre as cidades mais violentas do Brasil. E com isso já entramos parcialmente no assunto da página Sim de hoje, conforme indica o seu título – mas não plenamente no seu tema: o Dinheiro. Do qual nos aproximaremos aos poucos, com cautela, porque se trata de um dos animais mais selvagens que a chamada Civilização tentou, e, até agora, não consegui domar. Nós criamos a Fera e deixamos que entrasse em nossas casas e convivesse conosco como os cachorros, como se o dinheiro fosse, também, outro melhor amigo do homem. Quanta ingenuidade, ou má fé. E eis a colheita do que plantamos, eis o desastre: - Sua presença se impôs tanto, que o mundo, ocupado pelo dinheiro, se tornou como a Casa Tomada de Cortázar, e nós como os dois irmãos que nela moravam e não couberam mais e tiveram que a abandonar. Vocês sabem como nós, homens, ficamos dando voltas em torno de uma jaula criando coragem para nos aproximar das grades que retêm, do outro lado, qualquer tipo de fera. E é através dessas voltas que, me aproximando do centro do nosso assunto, eu também vou. Paciência. Bresson – o francês que foi um cineasta-santo, à maneira ocidental, um asceta, e dizem até que um jansenista – assim como Ozu foi um cineastasanto oriental, e sem dúvida alguma um mestre Zen das imagens, esse Bresson, pois, sobre o tema dinheiro, fez dois dos mais belos filmes do Cinema. O primeiro, em 1959, Pickpocket/traduzível por Batedor de Carteira, o segundo, em 1983, e seu último filme, assumindo diretamente em seu título toda a sua angústia e perplexidade perante o assunto: L‘Argent/O Dinheiro. Ora, mas aqui não é o Mal associado ao chamado vil metal o que interessa a Bresson. É o homem em sua pureza possível para se por fora do alcance do Mal. Em Pickpocket Bresson transfigura o ato de furtar em um balé de mãos e sutilezas, música visível, e em uma declaração de profunda amizade pelas possibilidades de elevação humana do fundo da Miséria. Pela Arte, o que vemos são mãos santas, hipnóticas, se apossando dos que têm no fundo de seus bolsos e cofres mais do que precisam, aquilo que o dono das mãos precisa para um mínimo viver, comer, vestir, morar. E seu batedor de carteira é tão inocente quanto o Cordeiro de Deus que lavais os pecados do mundo – isto é, quanto o asno vítima dos homens em seu mais luminoso filme, Au Hasard Balthazar/A Grande Testemunha, de 1966. Nenhum dos dois pode ser tocado pela justiça dos homens, mas por seu excesso de Pureza, como numa inversão do Homo Sacer, o homem sagrado do antigo Direito Romano, estudado no livro de Giorgio Agamben – que por cometer um crime tão acima do tolerável pelos homens se torna intocável: nenhum homem mais poderá puni-lo, só os deuses – mas qualquer um poderá matá-lo impunemente. Os personagens de Bresson, homem e animal, o batedor de carteira e o asno Balthazar, em sua relação com o dinheiro & a violência humana, não são contamináveis pelas aberrações humanas, embora, que pena, nada possam fazer para banir essas aberrações da face da Terra e purificar a Vida, o Homem, o mundo. Quando o batedor de carteira é preso, é nossa alma que vai aprisionada com ele, quando o Asno Balthazar cai mortalmente ferido pelas balas de um conflito humano, que homens disparam cegamente, novamente é nossa Alma que é ferida mortalmente com ele.

E assim demos mais um passo de aproximação indo para o nosso tema, quando aproximamos essas duas feras criadas e abrigadas pelo Homem: a violência & o dinheiro.

Meu cavalo por um reino Mas tentemos não ser intolerantes e condenar assim tudo por antecipação. Tentemos entender o dinheiro. - Para que serve o dinheiro, por que os homens o criaram? Certamente não para que o mundo se transformasse no Inferno na Terra, mas até, pelo contrário, para aproximar a Terra do Céu. Bem simplesmente, e com algum humor, digamos que a intenção inicial foi nos aliviar o fardo de levarmos nossos elefantes através de desertos, mares e florestas para trocar por alimento ou roupas ou fosse lá o que fosse que se estivesse precisando. Mas não se teve o cuidado de ponderar sobre as consequências negativas que isso pudesse vir a ter. Até se descobrir que, por mais bem guardado ou oculto em cofres com segredos de ferro que puséssemos o dinheiro, ele atrairia – como uma simbólica riqueza ostensiva ainda que convencionada: apenas pedaços de metal com códigos de valores gravados ou papeis impressos - a ambição alheia. E se deixaria levar, em silêncio. Tão diferentemente dos urros e estrondos com que nossos elefantes nos despertariam, ao se verem arrastados para longe de nós. Mas, elefantes ou moedas, não estaríamos livres do que passou a se chamar propriedade privada. Melhor seria se tivéssemos inventado a propriedade coletiva, o que seria uma contradição nos termos. Mas a essa altura a Ambição já havia criado raízes em todos os corações e mentes que se arrastam sobre a Terra – menos nos personagens generosamente sonhados por Bresson, mas condenados à Terra Pura - não a do budismo, nem a nossa, impura - e sim a dos seus filmes-santos. À ambição vindo se juntar outra fera, essa talvez ainda mais temível por sua dissimulação, brotou, como enxames de urtigas, a Hipocrisia. Não apenas entre os homens – mas também entre as nações, os povos. E bastará, em nosso pouco espaço, mencionar de um exemplo do antro de cobiças, mentiras e violências que se tornou o mundo. Falemos da pirataria. Não dos

Pirata de Wall Street: século XXI comparação? Mas há mais semelhança do que a princípio se imagina – tal o poder de contágio do dinheiro, em todas as épocas humanas.

Reis & Piratas

Pirata de Tortuga: século XVII

atuais piratas do Caribe dos filmes de doces aventuras irreais made in Usa – mas dos verdadeiros corsários, aqueles que entre os séculos XVI e XVII tornaram a famosa Ilha de Tortuga um antro de especulações financeiras tão semelhante a nossa contemporânea Wall Street. O que foi: achou demais a

Era o tempo das grandes conquistas marítimas, das Américas, das Índias, da África, das grandes frotas comerciais saqueando o transportando seus saques pelos chamados sete mares: Inglaterra, França, Holanda, Espanha, Portugal desfraldavam suas bandeiras de glórias manchadas de sangues nativos. Mas sofrendo o homem da insaciabilidade em todas as suas ações, decidiram saquearem-se umas às outras. E foi assim que surgiram os piratas, os navios piratas, as bandeiras com a caveira desfraldada também nos mares do mundo. Piratas holandeses, mantidos pelo Rei da Holanda, saqueavam navios ingleses e roubavam do Reino da Inglaterra os tesouros por ele roubados das terras que saqueava. Mútuos assaltos, em que as nações se ocultavam sob a bandeira da caveira e escondiam as suas bandeiras. Isso durou pelo menos dois séculos – quando ser pirata a serviço de um reino era uma ocupação regular, quase regulamentada, com car-

- Quando o dinheiro vai na frente, todos os caminhos se abrem. SHAKESPEARE - Não há dinheiro mais bem empregado que o que deixamos que nos roubem, pois nos serve para comprar um pouco de prudência. SCHOPENHAUER - Quero pintar um quadro no ar, quero construir um palácio na ponta de uma agulha, quero erguer uma montanha com as partículas que dançam em um raio de sol – pois acabo de encontrar uma mulher que não ama o dinheiro. LOPE DE VEJA - Os que têm por certo tudo poder ser feito com o dinheiro estão indubitavelmente dispostos a tudo fazer pelo dinheiro. BEUACHÊNE - Admiramos o talento, a coragem, a bondade, os grandes deveres e as grandes provas – mas só respeitamos o dinheiro. BECQUE - Nos empréstimos de dinheiro, quem devia lembrar, esquece, e quem devia esquecer, lembra. BECQUE - O dinheiro dá um verniz de beleza à própria fealdade. BOILEAU. - Ninguém melhor do que as mulheres e os poetas sabe tratar o dinheiro como ele merece ser tratado. BONNARD - O dinheiro é o único monarca. FULLER - Um cretino pobre é um cretino, um cretino rico é um rico. LAFITTE

- Se não a víssemos com os nossos próprios olhos jamais poderíamos adivinhar a estranha desproporção que o dinheiro causa entre os homens. LA BRUYÈRE - Há gente que com o dinheiro só ganha o medo de perdê-lo. RIVAROL - Se queres saber o que Deus pensa do dinheiro, olha a quem ele o dá. ANÔNIMO - O dinheiro é como o adubo – só serve quando espalhado. BACON - Desprezar o dinheiro é destronar um rei. E há nisso um doido prazer. CHAMFORT - O amor ao dinheiro e o amor à ciência raramente andam juntos. HERBERT - O caminho mais seguro para arruinar um homem que não sabe administrar o dinheiro é lhe dar dinheiro. SHAW - O avarento enriquece parecendo pobre, o dissipador empobrece parecendo rico. SHENSTONE - Não há homem que aceite conselho, mas todos aceitam dinheiro. SWIFT - Quem não tem dinheiro no bolso deve ter mel na boca. WATKINS - Sem dinheiro, é útil ser um rapaz simpático. WILDE

- O dinheiro público é como água benta – todos metem a mão. ANÔNIMO - Chamamos de Idade de Ouro a idade em que o ouro não existia. DOSSI - O dinheiro, trazendo consigo a avareza, empobrece a alma de quem o possui. GALIANI - O mundo tem pouco estima por quem pouco paga. SETEMBRINI - Oh, miséria humana, de quantas coisas te fazes escrava por dinheiro. DA VINCI - Nada existe tão sagrado que o dinheiro não possa violar, e nada tão forte que não possa expugnar. CÍCERO. - A virtude e o nascimento, sem dinheiro, valem menos que as algas do mar. HORÁCIO - Os generosos nunca têm dinheiro, e os que têm dinheiro nunca são generosos. SADI - Veja agora o juízo curioso quanto no rico, assi como no pobre, pode o vil interesse e sede imiga de dinheiro, que a tudo nos obriga. CAMÕES - Com uma bolsa no pescoço, ninguém é enforcado. ANÔNIMO - O dinheiro, em si, é um mal. TOLSTOI

teira profissional assinada e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Até quando não interessou mais aos reinos manterem esse relacionamento sangrento e já indissimulável para todos. Então, eles se voltavam, unidos, contra os piratas – sumariamente demitidos, caçados por todos os mares, exterminados, postos fora da lei, enfim. As coisas mudam – se diz. E mudaram. Dos piratas restaram apenas as lendas que agora alimentam os filmes supérfluos de Hollywood. Menos para alguns – porque uma outra enfermidade já tinha vindo à tona e grassava na Terra: o chamado cinismo – não o lúcido dos luminosos filósofos gregos Cínicos, inspirados por Pirro de Eléia, mas o simples e ostensivo descaramento. E foi assim que, por exemplo, Francis Drake, um dos piratas mais famosos do seu tempo, após toda uma vida de saques por todos os mares, a serviço dos reis da Inglaterra, foi regiamente, oh, recompensado pelos serviços prestados a sua pátria – recebeu o título de sir e ganhou um castelo, no qual passou em paz os últimos anos da sua vida. Depois de tudo isso, o mundo em que vivemos se tornou algo mais do que aquele em que ainda se ouvia, vindo das Sombras, uma voz roufenha nos interrogando, e oferecendo uma alternativa: - A Bolsa ou a Vida? Agora, alquimistas de infâmias crescentes, já fizemos a fusão, não apenas do átomo que destruiu Hiroshima e Chernobyl, mas também dos mais mortais pecados: unimos o – Não roubar ao – Não matar. E invertemos radicalmente a máxima de São Francisco de Assis – É dando que se recebe, para – É tomando que se recebe. Todos sabemos que nem o liberalismo prometido ao mundo em 1776 por A Riqueza das Nações/The Wealth of Nations de Adam Smith nem o socialismo prometido ao mundo em 1867 por O Capital/Das Kapital de Karl Marx nada resolveram. E agora? Você sabia que mais de 1/3 do dinheiro que consta existir no mundo, de fato, não existe? É dinheiro virtual, irreal, criado por artifícios de créditos combinados entre as partes, negociatas de grandes corporações que fazem desertos de miragens passarem por desertos reais, e, pior: por lagos fecundos, em que os modernos corsários de Wall Street jogam suas iscas? E sabia que os corsários, ou lobos, de Wall Street, têm nas mãos e em seus telefones e computadores o poder de falir um país, simplesmente apertado um botão que transfira dele todos os investimentos para outro país momentaneamente mais lucrativo? Qualquer economista que se leve a sério sabe que, se um dia, por uma dessas calamidades coletivas humanas tão comuns, e atualmente mais comuns neste mundo assim Global, se um dia todo o dinheiro que se diz existir tiver que ser posto na mesa – será a ruína final. Nosso consolo seja que, com a volta dos elefantes e o fim das moedas de ouro, pagaremos o preço que o mundo nos cobra para não sermos mais roubados de tudo. E, quem sabe, seremos felizes em um novo mundo – sem bolsas – mas com nossas vidas.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.