OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 8 DE JUNHO DE 2014
MAGAZINE 11
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VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
O giro do santo & o andar do bêbado
Cântico das Criaturas e na sua Oração, que vemos nesta página. Mas Francisco nunca foi visto com bons olhos e totalmente aceito pelos Papas do seu tempo, que cultuavam a riqueza da Igreja e a pessoal, enquanto ele, Francisco - devotado à probreza e ao despojamento – chegou a buscar um dos papas no Vaticano, envolto em trapos, para obter dele o fim das Cruzadas mobilizadas por Roma para saquear os árabes, e o islã, falsamente acusados pela Igreja Católica de infiéis – pois se sabia que Maomé tenha sido um seguidor de Cristo. Francisco, para muitos – e eu sou um deles – sendo a outra grande presença do Cristianismo ao lado de Cristo, conversou intimamente com as feras e as aves, beijou o leproso, passou fome para alimentar - e dele disse Dante que foi uma luz que brilhou sobre o mundo. E a prática do que ficou sendo conhecido como o Giro de São Francisco – se você também quiser praticar – era feita assim: despertando cedo, caminhava até uma Encruzilhada e, ali, retirando de seu euEgo qualquer possibilidade de assumiu o comando, passava a girar cada vez mais velozmente – aliás, como fazem as crianças – até cair tonto no chão. Depois, voltando a si, a escolha estava feita: na direção em que sua cabeça houvesse caído, se levantava e caminhava para fazer suas boas ações do dia. Era a direção que Deus lhe apontara.
Tendo alcançado aquele que está em toda parte, o sábio nele entra íntegro. UPANISHADES
D
izem que a Inocência protege. E costumam dar quase sempre dois exemplos clássicos: as crianças e os bêbados. Consta que quando uma criança ou um adulto embriagado caem, não se machucam. Diferentes das pessoas grandes e dos adultos sóbrios, crianças e bêbados teriam seus próprios anjos da guarda. E de onde surgiriam esses guardiões, senão do fundo de uma inconsciência de si que, estável na criança e provisória no bêbado, como que transfere diretamente para a Vida a responsabilidade por cuidar deles, zelar por eles? Se poderia tirar disso uma dedução que tem algo de assustador: se é assim que as coisas são, será que é a nossa própria Consciência do mundo o que nos torna vulneráveis a ele? Vendo por esse ângulo, eu poderia deduzir que: ao me conduzir pelo que considero o Meu Eu, autossuficiente, me sentindo capaz de ver todos os palmos diante do meu nariz – a Vida me entrega a mim mesmo, sozinho nos caminhos do mundo, e como que me diz: Te vira? A Inocência nas crianças habita em um estado de Graça, também no duplo sentido de que a criança não precisa pagar nada por ela, nem quer, através desse estado, conquistar alguma coisa. Já nos bêbados, a coisa tem seu preço – e, no entanto, apesar disso, pelo menos um tipo de bêbado quer a mesma coisa que as crianças, isto é: coisa alguma, é aquele de quem se diz que – Bebe para esquecer. E esquecer o que? Além dos seus múltiplos desgostos pessoais, pelo menos uma coisa, que a tudo engloba, é certa: esquecer que sua Infância se foi, e que, sem Inocência, o mundo pode ser um colo bem duro para pousar a cabeça depois que se cresceu. Mas voltemos àquela curiosa e terrível possibilidade levantada aí em cima, e renovemos a pergunta: - Será que é a nossa própria Consciência do mundo o que nos torna vulneráveis a ele? Consciência da qual as crianças e os bêbados, abrigados nas asas de suas inocências, ou melhor: em suas inconsciências do mundo, estariam livres? Isso nos leva a peregrinar pelas dimensões oníricas da existência humana. Como seria uma Vida em que vivêssemos, todos, intocáveis como quando somos personagens de nossos próprios Sonhos noturnos: caímos de montanhas e permanecemos intactos, atravessamos desertos sedentos por dias e dias, imortalmente, seguramos balas nos dentes como super-homens, nossos desejos se realizam em um piscar de olhos, morremos e ressuscitamos – se há Dor, só dói em sonhos, se sofremos, só em um sonho, e tudo se desfaz ao abrirmos os olhos. Embora pesadelos deixem marcas que continuam nos atravessando já de olhos abertos. Essa existência em sonhos não seria muito diferente da existência dos desenhos animados, que na última cena vimos explodir em cacos e na seguinte reaparecem parecendo ter acabado de nascer naquele instante, novos em folha. - Seria de muito mau gosto perguntar se você quer continuar sendo uma criatura humana, como se diz, de car-
O andar do bêbado de Mlodinow
Giotto: “Estigmatização de São Francisco” Século XIII
ne & osso, ou preferia ser uma criação a lápis de Lee Falk, como Mandrake, ou de Charles Schultz, mesmo como o cachorro Snoop? O certo é que não vivemos só em nossos sonhos, nem somos personagens de HQ. E se não somos mais a Criança que fomos, nem bebemos para esquecer – só nos resta sermos os anjos da guarda de nós mesmos – com ou sem termos em nós a Inocência do Mundo. Nesse caso, como nos conduzirmos pelos caminhos que sobem ou descem, nos lançam para a esquerda ou para a direita, se fecham para nós ou se abrem em perigosas seduções fatais, sem falar nas encruzilhadas de Dúvidas e aparentes Certezas que encontraremos pela frente, ao longo da nossa breve vida? Os místicos entregam tudo a uma única coisa: as mãos de Deus. Os pragmáticos, cientistas e outros, inclusive os que se dizem ateus, se permitem fragmentar essa única coisa em mil e uma possibilidades e se lançam por todas elas – simultaneamente e todos ao mesmo tempo.
Como se dão essas marchas e contra marchas de uns e de outros?
O giro do santo de Assis Contam a Lenda & os fatos, misturados, que São Francisco de Assis havia se unido tão intimamente a Cristo e, através do Filho, ao Pai, que do primeiro adquiriu as chagas feitas em seu corpo pelos homens – e, ao segundo, entregou seu eu pessoal a um tal ponto que praticamente o neutralizou, anulou, e dele, desse Meu Eu humano, como que se desfez. Na verdade, entregou tudo às Criaturas, o que é o mais fulminante veneno para o Ego. E era assim que, todos os dias, bem cedinho, ao acordar e sair para ir fazer suas pregações nas pequenas cidades e vilas ao redor de sua ainda menor e mais pobre ainda igreja, ele, Francisco – Mas quem disse que todo mundo ainda sabe quem foi São Francisco de Assis, um homem do já quase um milênio distante século XII, nestes tempos atuais de hiper espaços e telescópios Hubble rondando o que os homens do
século XXI sonham ser a Fronteira final, ou original, do Universo visível? E quem sabe não haja ainda os que querem saber quem ele foi, e, também, coisas que dele ainda não sabem? Então, falemos um pouco disso, antes de contar o que ele fazia ao acordar e sair para ir fazer suas pregações nas pequenas etc Francisco que nasceu como Giovanni di Pietro di Bernardone, em Assis, na Itália, em 5 de julho de 1192, se foi em 2 de outubro de 1226 - no mês que vem você poderá celebrar o seu aniversário, não esqueça. Viveu irrequieta e mundanamente sua juventude, até perceber o vazio desse caminho e se tornar um dos raros metafísicos da Humanidade que se voltou, pela via Mística, frontalmente para todas as criaturas vivas. Raro caso de um metafísico apaixonado pelo físico. No Ocidente, foi aquilo que o Budismo chama, no Oriente, um Bodisatva – alguém que se recusa à salvação pessoal enquanto houver sofrendo um único ser senciente – que tem sensibilidade, sensações, sente a Vida. A relação de Francisco com a Vida ficou luminosamente expressa em seus atos e, também, em suas obras escritas – como no
São Francisco de Assis
Cântico das Criaturas
Oração
Altíssimo, onipotente e bom Senhor, a ti subam os louvores, a glória e a honra e todas as bênçãos. A ti somente, Altíssimo, eles são devidos, e nenhum homem é sequer digno de dizer teu nome. Louvado sejas, Senhor meu, junto com todas tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, que é o dia e nos dá a luz em teu nome. Pois ele é belo e radioso com grande esplendor, e é teu símbolo, Altíssimo. Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã lua e as estrelas, as quais formaste claras, preciosas e belas. Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão vento, e pelo ar, pelas nuvens e o céu claro, e por todos os tempos, pelos quais dás às tuas criaturas sustento. Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta. Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão fogo, por cujo meio a noite alumias, ele que é formoso e alegre e robusto e forte. Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã, nossa mãe, a terra, que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores, e também as ervas. Louvado sejas, Senhor meu, por aqueles que perdoam por amor a ti e suportam enfermidades e atribulações. Benditos aqueles que sustentam a paz, pois serão por ti, Altíssimo, coroados. Louvado sejas, Senhor meu, por nossa irmã, a morte corpórea, da qual nenhum homem vivo pode fugir. Pobres dos que morrem em pecado mortal e benditos quem a morte encontrar conformes à tua santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal. Louvai todos vós e bendizei o meu Senhor, e dai-lhe graças, e o servi com grande humildade.
Senhor: Fazei de mim um instrumento de vossa Paz. Onde houver Ódio, que eu leve o Amor. Onde houver Ofensa, que eu leve o Perdão. Onde houver Discórdia, que eu leve a União. Onde houver Dúvida, que eu leve a Fé. Onde houver Erro, que eu leve a Verdade. Onde houver Desespero, que eu leve a Esperança. Onde houver Tristeza, que eu leve a Alegria. Onde houver Trevas, que eu leve a Luz. Senhor, fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado, compreender, que ser compreendido, amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna. Amém.
Existe um livro recentemente lançado por Leonard Mlodinow chamado O Andar do Bêbado: Como o aleatório influencia nossa vida/The Drunkard’s Walk: How Randomness Rules Our Lives, em que Leonard, que é um especialista, entre outras coisas, em Física e leis de probabilidades e incertezas, fala de como os acontecimentos podem nos fazer dobrar esquinas decisivas para nossas vidas, sem querermos, ou – mais misteriosamente ainda – nos conduzem até essas esquinas como se estivéssemos indo até lá por nossa própria vontade. É a isso que ele chama de o andar do bêbado. Que talvez seja guiado não por anjos da aguarda, como as crianças, mas por níveis arraigados e muito sutis da nossa Memória que – agindo ainda no inconsciente – nos guiam de olhos fechados até a porta de nossas casas. Na Grécia Antiga, essa dimensão da Vida, que hoje chamamos aleatória, era chamada Destino – e, nesse tempo, ainda eram os deuses – os muitos, do paganismo, e não ainda o único do monoteismo - que guiavam os homens. Destino que se confundia, como mostram os grandes trágicos do teatro grego, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, com fatalidade – algo do qual era humanamente impossível escapar. Entre os semideuses, Sísifo, Prometeu, e entre os homens, Édipo, foram vítimas dessa fatalidade. De lá para cá, a existência humana atravessou vastos campos de conhecimento e experiências – mudaram as concepções humanas sobre muitas certezas adquiridas e que pareciam sedientadas para sempre, um tumulto de ideias e conceitos em que somos atropelados por uma multidão de palavras e significados que tanto se fundem, confundem, como se rejeitam mutuamente, buscando predominar uns sobre os outros. Tente se situar no verdadeiro andar de bêbado que é atravessar o amontoado de palavras já familiares formado por acaso, destino, fatalidade, sincronicidade, coincidência, azar, causalidade & casualidade, determinismo & indeterminismo, ou os novos passos trocados que damos pela vida atualmente chamados de diagramas de Feynman sobre fenômenos quânticos, epifenômeno, lógica difusa, aleatoriedade, teoria das variáveis ocultas, princípio da incerteza. Etc E em último caso, não sendo mais uma criança segura do seu anjo, nem um bêbado buscando sua porta na noite escura guiado por naufragadas lembranças remotas, se se sentir perdido demais, tente o giro de São Francisco. E se entregue, confiantemente, à direção para onde sua cabeça apontar, após tombar na Encruzilhada.