Sim 54 A vanguarda primitiva de Manoel de Barros (I)

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 15 DE JUNHO DE 2014

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

A vanguarda primitiva de Manoel de Barros (I)

Tem mais presença em mim o que me falta MANOEL DE BARROS

M

e meti pelo meio de uma conversa de Manoel de Barros e das coisas que nela ele falou, quando passou pelos noventa anos de idade, em novembro do ano passado, e trago algumas delas muito interessantes para vocês, aqui, nesta página Sim. E para que se veja cintilantemente que um poeta dos raros & reais como Manoel jamais é duas pessoas – uma quando fala & vive e outra quando, em transe, gera seus poemas – ponho nesta página, além do que ele diz, também, alguns dos poemas. Aí, se, depois de tudo, você ainda continuar vendo dois homens, só pode ser porque você tem dois olhos discordantes, que veem cada um só o que querem - porque esse Manoel de Barros é mesmo um só, integralmente. Mas nem por isso é um homem linear, insosso, previsível. Não aquele Manoel que vi e com quem convivi, e por isso garanto. Uno, Manoel é daqueles, poucos, que se entrega todo à grande Dança entre criatura & criador que vai do Visível ao Invisível e tudo preenche. Foi justamente sob o signo dessa dança cósmica que coloquei o meu Silencioso como o Paraíso, publicado em 1995, pondo em uma das entradas, ou capa, a frase de Angelus Silesius A divindade agrada o jogo de criar e na outra entrada, ou capa, A criatura é o seu gosto de brincar. E assim o livro ficou com duas entradas mas nenhuma saída. E mais de um leitor já se perdeu dentro dele para sempre – aqueles que me aparecem em sonhos acenando desesperadamente por socorro. Mas isso já seria um outro livro de Andara. E estamos aqui é para falar da travessia dos noventa anos de Manoel de Barros. Não se espere nada com começo meio e fim – porque, sempre rumorejante & remoto, Manoel de Barros saltita todo tempo entre a primeira idade e a idade avançada, como um entrevistado em giros numa montanha russa.

Rosa De Guimarães Rosa, que conheceu há muitos anos, ele nos revela: - Outra vez o Rosa me contou: Precisei botar o nosso idioma a meu jeito afim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais,

Manoel de Barros - POEMAS

Uma didática da invenção I Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. IV No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite E um sapo engole as auroras.

Manoel de Barros: – Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui.

sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel? Me perguntou. Respondi: eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério. Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque para mim ele era um mito. Porém no instante que o conheci ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva! Sobre a Infância, declara o quanto lhe deve, fazendo alusão ao filósofo Sócrates e seu celebre só sei que nada sei. Para Manoel o que ele, aos noventa, tem a dizer sobre o menino que foi, é: - Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis. A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra de velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias

infantis da velhice. De Morte, Manoel diz gostar da ideia de ter duas vidas: uma para ensaiar e outra para representar. Sempre lúdico e irreverente, ele se entusiasta com a possibilidade: - Até proponho uma solução científica. Seja esta: O Tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer É só amarrar o Tempo no Poste. Eis a ciência da poesia: Amarrar o Tempo no Poste! E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste. E sobre a Angústia, Manoel? - Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até aqui...

Fé E sobre a Fé, Manoel? Ante a mistério das coisas, como você se situa? – Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do misté-

VI As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.

monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor. A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

VIII Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh. IX Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz . Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

Tratado geral das grandezas do ínfimo

O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

rio. Pra mim a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio. Sendo um homem de fé, o que tem a dizer sobre Cristo? - Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo - Amar o próximo como a nós mesmos. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também. E quanto a Deus? - Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinou mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância. Manoel de Barros também tem escritos livros decididamente infantis, para serem lidos mesmo por crianças e jovens. Mas nem nessa bifurcação ele se afasta de si mesmo – onde termina o homem de noventa anos

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio. Falava que vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira. Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios.

e começa a criança , como saber? Nele, o mundo adulto se mistura ao mundo infantil, a linguagem é quase a mesma. Enfim, ele, o avô Manoel, convive com Manoel o Neto nos mesmos termos em que se dá o encontro, em Angelus Silesius, entre o criador e o jogo de criar e a criatura e o seu gosto de brincar. Falando sobre porque alguns acham graça na sua poesia – o que, por nos mesmos, logo veremos mais adiante - a poeta conta: – Aprendi com meu filho de cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: - Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: É o impossível verossímil. Pois não tem disso a poesia? Sobre a relação entre viver & escrever, Manoel vê nisso um percurso que pode muito bem ser rastreado ao longo da história da Literatura. Ele diz: - O poema passou a ser um objeto verbal. Antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias. A gente logo vê que a admissão e preservação da dimensão infantil não é, em Manoel, e longe disso, uma simplificação do mundo e da arte – embora o poeta não estabeleça fronteiras rigorosas entre jogar o jogo da criação & brincar o jogo da diversão. O poeta e a criança participam de uma dimensão comum: são videntes, como insistia Rimbaud que o poeta devesse ser. Manoel diz: - Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal. Agora, o que anda fazendo Manoel? Com o tempo amarrado no Poste, ele esta escrevendo a sua terceira parte das suas Memórias Inventadas. E que mais, Manoel? – Ah, releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões. Atingindo os seus noventa anos, Manoel, que já morou com índios, agora anda decididamente voltado para o lado primitivo da Vida. Ele, no seu aniversário, até anunciou uma nova vertente em seu viver-escrever, que chamou de Vanguarda Primitiva. Onde vejo vê vir à tona os dois temas, ou dimensões básicas, que unificam toda a sua vida, e que me leva inclusive a chamar de: a Originária Infância Ancestral das Coisas. Nos fala um pouco disso, ó antiquíssimo menino Manoel. - Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos. Em seu Livro sobre nada, Manoel de Barros nos fez uma revelação de adulto, esta: - A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. E no mesmo livro, esta confissão de criança: - O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras.


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