OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 22 DE JUNHO DE 2014
MAGAZINE 11
MAGAZINE
Hélio de la Peña encara novo desafio. Página 8.
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VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
A vanguarda primitiva de Manoel de Barros (II)
O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. MANOEL DE BARROS
A
tal vanguarda primitiva do poeta Manoel de Barros, de que começamos a falar aqui nesta página Sim no domingo que passou, nasceu, segundo ele conta, de uma invenção sua com o jornalista Bosco Martins e veio à tona quando Manoel, que nasceu em 1916, fez noventa e sete anos no dia 19 de dezembro do ano passado. Manoel mesmo conta como tudo aconteceu: - É uma vanguarda, mas é primitiva, que renova. Ler a palavra, a poesia, renova a gente. Se você entrar em contato com os primitivos, eles são nossa origem. Então, o original vem das palavras, do contato que você tem com o primitivismo, que pra mim é sempre fascinante. Inclusive andei e morei por lá, era uma questão só de fascinação. Não tinha intenção de empregar na minha poesia, não percebia o quanto iria ajudar na minha poesia. Depois dessa viagem que eu fiz pela Bolívia, Equador, Peru, que tive um choque cultural e comecei a mergulhar bem nessa questão. Quando fui morar nos Estados Unidos, chego lá e como a conhecer Picasso, escutar Bach, Beethoven, vou conhecer pessoas que eram artistas de verdade. Era jovem ainda, devia ter meus 27, 28 anos e coisa contemporânea e erudita causou um choque entre o erudito e o primitivo dentro de mim. Eu passava a tarde inteira numa igreja do Século XIII, que foi transportada de avião pedra por pedra de uma cidadezinha da Itália e que foi construída perto de um parque. A Itália tinha dinheiro e fazia coisas grandiosas. Dentro da igreja tinha bancos, e o dia inteirinho até às 10 horas da noite, tinha algum padre tocando Bach, Beethoven, alguma coisa da musica barroca e eu me empolgava, por que era uma coisa que alimentava muito a minha sensibilidade. Mas a Fonte, a nascente mesmo da coisa que poderia ter vindo à Vida como pedra, pássaro ou estrela, mas veio sob a mesma forma humana que nós e que é Manoel – embora jorrando por essas margens pelas quais ele passou através dos anos enquanto os anos passavam por ele – foi, é, e continua sendo o Pantanal onde nasceu e vive, essa geografia em que brotou, nosso vizinho, por secreto desígnio, exatamente aqui, quanto poderia ter sido em qualquer outro ponto da imensidão do Universo. - Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as emanações do campo. E assim com os outros sentidos. O que eu tenho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles chamaria de nossos primeiros conhecimentos. No entanto, no grande devaneio de Natureza vivida & Vivência poética que é a sua vida diária, Manoel se descreve como um homem de rotinas: - Acordo às 5 horas, tomo um copinho de guaraná em pó, caminho 25 minutos, tomo café com leite, subo para o meu escritório de ser inútil. Desço meio dia, tomo dois uísques, almoço e sesteio. O resto é pra ouvir música. E ver o dia morrer. Mas ninguém se engane: dentro da pedra de rotinas, que faz de conta que é, Manoel de Barros, o pássaro andarilho não cessa de explorar as possibilidades de toda a sua Leveza. Ele define assim esse recolhimento em que discretamente Manoel, andarilho, é homem-ave, voa: – Andarilho é um ser que honra o silêncio. Essa é uma qualidade de escol. Ele não sabe se chegou. Não sabe pra onde vai. E gosta de rio, de árvore e de passarinho. Andarilho é um ser errático – igual à poesia. Entre a pedra em sossego ouvindo música e a ave dando seu passeio matinal, Manoel reflete sobre a ação do Tempo sobre o homem e o poeta:
– As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia.
– No meu caso, o tempo estragou mais ou meu corpo. Não posso mais amar total. Não posso mais correr, dar salto mortal, ver longe, nem ouvir longe. Na minha imaginação criadora o tempo não se meteu. Sobre os outros homens, cada um tem sua carga. A gente envelhece mesmo. Desde os cinco anos eu já era velho, por que uso óculos. Desde os cinco anos descobriram e me levaram ao médico e receitaram óculos. Pra longe. Mas isso nunca atrapalhou a poesia. Pra perto eu tiro os óculos. Eu escrevo sem óculos na minha velha Olivetti. Manuel já declarou sua disposição de humanizar todas as coisas. Como fazer isso, Manoel? – É um dialeto infantil. Eu acho que eu passei a vida inteira brincando, por que todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim, quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso, pra procurar o sentido, num acha a ideia, porque a linguagem apaga a ideia, a metáfora destrói qualquer ideia. As ideias depois se quiserem inventam. Cria uma outra ficção a partir do poema, da frase. É a humanização que eu faço das coisas. A humanização de todas as coisas. E às vezes, a coisificação do homem. A humanização das coisas, do tempo, por exemplo, aquela linguagem que eu fiz nesse livro aí: “manhã de pernas abertas para o sol, e o sol a fecunda”. Quer dizer, é a hu-
manização do tempo. A manhã como se fosse uma mulher. Tem um texto aí, que se chama pintura. Eu pinto a lápis a história, uma metáfora. Você repara que meus versos todos são humanização da coisa e ou coisificação do homem. Tem um livro meu que chama Retrato do artista enquanto coisa, esse livro é pensado assim. Lembra o livro do Joyce, Retrato do artista quando jovem, só que eu botei enquanto coisa. Manoel já nos disse: - Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Vamos, aos poucos, ao encontro de um homem, dos raros, que diz que não se sente infeliz: – É a questão do nascimento, da criação. Eu acho que isso influi muito na vida. Eu sempre tive uma vida muito tranquila, porque fui criado no Pantanal com minha mãe, meu pai, meus irmãos, sem conflitos, com muito carinho, sem fome, sem notícia de que havia gente passando fome. Tudo isso conta para que minha poesia tenha substância.
Lição viva No Poeta que é, Manoel é também como que uma lição viva de como se construir, nutrir e se tornar um território humano em paz consigo mesmo – um bom lugar em que ele se vive em si, como que no seu próprio colo – enquanto por fora o mundo tropeça em seus desenganos, rosna ao re-
dor e morde a si mesmo. O segredo é seu permanente retorno à Infância: – Sabe, é aquilo que conversamos. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Porque os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Porque tem os repentistas que são analfabetos e sabem fazer uma obra de arte, mesmo que não estudaram? Não é verdade? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de ideias. Falando em palavras, Manoel de Barros cita: - Carlos Drummond de Andrade escreveu que lutar com palavras é uma luta vã. E em seguida, Manoel desce pelo tema como quem escorrega por uma ladeira: - Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Se eu pudesse reinventaria outro sinônimo para Poeta. Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis. E quando tem que aplicar a si mesmo as palavras, acrescentando cores e fatos para fazer um autorretrato, res-
Um Songo Manoel de Barros Aquele homem falava com as árvores e com as águas ao jeito que namorasse. Todos os dias ele arrumava as tardes para os lírios dormirem. Usava um velho regador para molhar todas as manhãs os rios e as árvores da beira. Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos pássaros. A gente acreditava por alto. Assistira certa vez um caracol vegetar-se na pedra. mas não levou susto. Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis vegetados em pedras. Era muito encontrável isso naquele tempo. Ate pedra criava rabo! A natureza era inocente. P.S: Escrever em Absurdez faz causa para poesia Eu falo e escrevo Absurdez. Me sinto emancipado.
ponde: - Palavra: parvo; cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio. Pergunte ao Manoel quais são as três coisas mais importante da vida, ele responde: - As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia. E a Poesia permanecerá, a Terra tem futuro Manoel? - Não sei. Acho que os cientistas estão furando tanto o planeta que não sei nada sobre o futuro. Sou um homem de fé e acredito na terra para sempre. Se a terra permanecer e os seres humanos não voltarem ao chipanzé, que Darwin diz que tomará – se isso não acontecer a poesia permanecerá. Mas, não sei. Nesse momento, é inevitável que Manoel recorde Sócrates, e ele diz: Você sabe que a frase de Sócrates procede. Nós chegamos no fim da vida e não sabemos o sentido da vida. Mas como até esse socrático - Só sei que nada sei parece se dissolver na Presença de um Saber mais essencial, que se basta a si mesmo em seu - Só sei que de mim em mim sei, eis de volta o Pantanal onde foi semeada e aí se dá em permanente florescência a criança Manoel de Barros, e o poeta acrescenta: – O que aparece sempre é resultado de percepções, como se estivesse sentindo o mundo pela primeira vez. Isso é provado por Aristóteles que dizia que o conhecimento que conta é aquele que vem pelas percepções da infância, quando você está conhecendo o mundo e é esse que me alimenta até hoje. É verdade que eu estudei, tenho conhecimento fora disso, tenho conhecimento de linguística, estudei tudo. Isso aí só importa para sua técnica. Por que tem aquele poeta que diz que cultura é o caminho que o homem percorre pra se conhecer. E o Sócrates fez esse caminho pela vida dele e no final concluiu que tudo que ele sabia é que nada sabia.
Completados pelo mistério E a totalidade? Deus? – É, nós não sabemos nada mesmo. Podemos discutir coisas aqui outra ali, mas o sentido da vida é incompreensível. Nós somos incompletos, nos sentimos incompletos. Só podemos ser completados pelo mistério. Na verdade não tem sentido nenhum mesmo, nós podemos dar sentidos. Essa incompletude nós só podemos completar com o mistério. O Mistério, Manoel? - É a coisa mais real. Sou um homem de fé, porque sou incompleto mesmo, eu preciso me completar através de uma fé. É uma escapatória. Tenho um irmão que é agnóstico, que não acredita em nada. Agora eu não, eu sou assim. Tenho necessidade. Preciso desse amparo. Grande parte da humanidade tem, os fundamentalistas, os árabes, todos têm crenças, pra se completar. Eu acredito em Deus e conto isso pra todo mundo. Não tenho vergonha não, eu tenho é muito orgulho. Eu acho que a religião completa a gente, é o meu sexto sentido. Nossa fé é o sexto sentido. E a relação entre Poeta & Deus, Manoel, qual é? - É o criador. A natureza foi criada a partir de Deus. O poeta é uma pessoa que mexe com a criação. Bem, mas vivendo nestes tempos de tantas fúrias, neste ponto em que chegamos em nosso século, como fica a esperança no futuro? Manoel responde: - Eu me considero um songo no assunto. Um songo? E o que é um songo, Manoel? A essa pergunta final, do fundo da sua vanguarda primitiva o Poeta responde como sabe, como um homem falando com árvores – com o Poema ao lado, que é novamente um elogio à Inocência.