Sim 56 Rosa: Flor Humana

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BELÉM, DOMINGO, 29 DE JUNHO DE 2014

OLIBERAL

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Joachin Platinir (1480-1524)

Rosa: Flor Humana

O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas GUIMARÃES ROSA

D

e João Guimarães Rosa não há praticamente o que se possa dizer que ele próprio, através de seus livros e personagens, transcriativamente já não tenha dito. Mas já que é preciso dizer algo, digamos que: Rosa é um caso muito raro de escritor que - como dizem os leitores e críticos literários sonolentos - escrevendo difícil, disse coisas que passaram a correr, como também se diz, de boca em boca, sem nenhuma dificuldade. A mais célebre delas sendo: - A gente não morre, fica encantado. Mas não apenas essas, que até – ou sobretudo – pedra entende. Pois até mesmo as enigmáticas palavras que criou circulam pelo mundo afora, atravessando a fronteira das páginas de seus livros. É o caso daquele misterioso – Nonada, a palavra que abre seu romance Grande Sertão: Veredas, ainda hoje, mais de meio século após o livro, revirada e examinada por todos os lados pelos linguistas e especialistas em literatura. Quem sabe, sendo especialista em nada, mas jogando com o próprio Nada & o Ser, eu consiga decifrar o enigma para eles? Tentemos? Juntos? Aleatoriamente, liguemos as duas coisas que Rosa disse separadamente, e o resultado seria este: - Nonada. A gente não morre, fica encantado. Para mim, já ficou bastante claro e nem tentarei clarear ainda mais com outras e minhas próprias palavras. Mas nada nos impede de continuar jogando – já que somos destinados a ser seres lúdicos em todos os momentos da nossa existência, e não desperdiçar nenhuma oportunidade que se apresente e nos permita isso. Então, continuando o Jogo, saltemos para estas palavras de um outro – Calderón de La Barca, que entre o Enigma & a Transparência, como Guimarães Rosa, por sua vez disse: - A vida é sonho. E os sonhos, sonhos são. Seguimos em frente? Que tal essa outra mistura do brasileiro Rosa & do espanhol Calderón: - Nonada. A vida é sonho, e os homens sonhos são. Ou: - A vida é sonho e a gente não morre, fica encantado. Quer continuar jogando por sua conta e risco – continue.

E, para enriquecer o jogo, acrescente o grego Píndaro: - O homem é o sonho de uma sombra.

Amazônia & Sertão Eu vou me desviar, neste ponto, e tomar outro caminho – voltar ao Passado, e, em vez de repetir o já dito, evocar, aqui, o que Guimarães Rosa me inspirou a dizer sobre ele, e a partir dele, quando precisei, no Manifesto Curau que lancei, por a Amazônia, real e mítica, em diálogo insurrecto poético/político com outra região real & mítica como ela, o Sertão. Transcrevo o trecho: [ Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo do Sertão de João Guimarães Rosa. Não apenas como literatura, mas como espelho válido para todas as nossas linguagens: plásticas, sonoras ou aquelas do silêncio da nossa perplexidade regional, amazônica. Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente, com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressado como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital? Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um homem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta. Esse tomar-se como indivíduo e ir

mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar melhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós, e também esse tomar uma região

para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da invenção do fogo, essa operação, enfim, de mesclar

A Terceira Margem do Rio João Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez em jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu de indo a sobra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. (...) fragmento / De Primeiras Estórias

destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando-nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de realidade imposto a ferro pelo colonizador. Será, antes, entregando-nos embriagadamente à nossa condição de homens, digo: de inventores de uma realidade mais vasta, será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a Razão do imperialismo, André Breton, e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos. Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós. Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo. Essas são as práticas urgentes. De uma perspectiva menos elementar, essa é a nossa fome mais urgente.] E foi assim que, nas asas do pássaro Curau, se fundiram o Sertão & a Amazônia. Deixemos, agora, João Guimarães Rosa nos falar, com suas próprias palavras, o que tentei dizer com as minhas, do Sertão que ele viveu e sonhou: - Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias (...) Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel.Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Foi no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova, em 1965, conversando com Günter Lorenz, que Rosa disse essas palavras, em que podemos ler – através do Sertão e sua gente de que ele fala – a Amazônia e a nossa gente, que também deve se nutrir e libertar em seu lendário realizando a exigência radical das palavras com que, em 1983, o Manifesto Curau se encerrava, assim se abrindo para um outro Futuro regional: Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor. Façamos isso enquanto estamos por aqui. Sim. Sem esquecer o que foi dito no alto desta página, lembra? - Nonada. A gente não morre, fica encantado.


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