OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 6 DE JULHO DE 2014
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Vozes da África: Mia Couto Andara é a África que temos dentro de nós.
De OS JARDINS E A NOITE
S
ilenciada durante séculos pela ambição insaciável e a brutalidade genocida do Colonialismo Europeu, a África jamais deixou de ser África. O que a sustentou em si, sem perder sua identidade, durante todo esse tempo? Seu Imaginário, que os colonizadores não conseguiram calar. Ele continuou falando, através de suas Lendas e Mitos passados - de gerações a gerações oprimidas – pelos seus contadores de história, os griôs, os guardiões da Memória do Continente Africano. Da energia para resistir que transmitiram ao seu povo à inspiração que até hoje alimenta a Literatura Africana, eles são a alma do que os colonizadores chamaram de continente negro, sua defesa, seu guia e sua Luz. Literatura Oral. Essa foi a origem do meu escritor africano favorito: o nigeriano Amos Tutuola, autor de, entre outros, O Bebedor de Vinho de Palmeira e de Minhas Aventuras na Floresta dos Fantasmas. Analfabeto até os vinte anos, só com essa idade Tutuola aprendeu a ler e escrever - em inglês. E, imediatamente, como ele própria nos conta, logo se pôs a fazer isso: escrever. E em seus livros emergiu o que para ele, antes, era somente oral. Foi como uma desforra: usar o inglês, uma das línguas dos colonizadores, para soltar no mundo, por escrito, a Voz Africana. Não custa lembrar que Kafka fez o mesmo e foi um tcheco que escreveu em alemão. E acrescentar que gosto de Tutuola quase tanto quanto de Kafka – o incomparável. E que obra de Tutuola é uma das minhas um tanto raras alegrias de leitor - pura criação onírica, absolutamente surreal, muitas vezes atingindo níveis de invenção e originalidade superiores a dos próprios criadores europeus do Movimento Surrealista. Certamente, como quase todo mundo no Brasil, você não conhece o pouco que foi traduzido da obra de Amos Tutuola e circula em Portugal e nos países africanos que também falam o português. Mas deve conhecer – porque ele já escreve em nossa língua e as nossas livrarias estão cheias dos seus livros – o também escritor e africano Mia Couto. E isso é bom, porque será ele, e não Amos Tutuola, quem ocupará esta primeira página Sim dedicada às Vozes da África. Mia Couto merece a nossa admiração também por ser um dos escritores nascidos na África que, apesar de branco, ecoa o ancestral Imaginário africano, fazendo ressoar em sua obra escrita a oralidade dos griôs. Nascido em Moçambique, onde vive, Mia Couto também é biólogo. E neste diálogo ora fala como escritor, ora como cientista. Permanecer na África não impediu sua obra de correr mundo, traduzida em muitas línguas. Bem diferente dos tristes tempos da Escravidão, quando os africanos também corriam mundo, sim, mas extraídos a força de suas terras natais e acorrentados. Mia diz que embora goste de traba-
lhar com a Biologia, o trabalho o rouba da Literatura e se confessa angustiado por não ter o tempo que gostaria para escrever e estar com os personagens. Mas reconhece que a vida de biólogo não apenas tira, também dá alguma coisa à vida de escritor: - O trabalho de campo é muito enriquecedor pelo contacto com a diversidade. Com este trabalho atravesso Moçambique de norte a sul, muitas vezes em tendas, próximo da vida das pessoas. Falo com elas e recolho histórias que são núcleos para outras histórias. Algumas dessas viagens levam Mia Couto a lugares com muita significação para ele. Em bom português moçambicano, que frequentemente soa com o de Portugal, ele diz: - Sabe-me bem estar na região onde nasci. Alguma coisa me recorda das línguas que ali se falam, embora já não as fale, mas acredito que rapidamente conseguiria recomeçar. É curioso como é importante conhecer essa música de infância. O assunto linguagem nos leva ao Prêmio Camões, que Mia Couta recebeu recentemente. Segundo Mia, quase nada mudou em sua vida de escritor após o prêmio, mas alguma tem de mudar na própria natureza do prêmio: -Tem de contemplar um autor, claro, mas perceber que a nossa comunidade linguística é mais uma utopia do que uma coisa real. No Brasil, o Camões é pouco divulgado. Uma das intenções do prêmio era a de suscitar a curiosidade, a de divulgar a obra. Por exemplo, no caso de Alberto da Costa e Silva, um dos premiados, não se percebe porque é que a sua obra é tão pouco conhecida nos outros países, fora do Brasil. Este fundo deveria permitir que a obra dele fosse contemplada, e que editoras o pudessem publicar, fazer o escritor viajar. No Camões, o que deve ser importante é a obra, e não especi-
Mia Couto
ficamente o autor. Há prêmios que se organizam num sentido mais formal e de reconhecimento, mas outros organizam-se para que jovens e alunos conheçam a obra. Mia Couto é enfático em suas restrições ao prêmio que recebeu: considera que o Prêmio Camões está de costas voltadas para quem realmente pode beneficiar. E insiste em mudanças, mas denunciando, também, a omissão dos escritores. - Alguma coisa tem de mudar. Mas é também uma preguiça nossa. Os escritores têm de brigar mais, não se pode abdicar e dizer: - São eles. Estamos numa posição estranha, deixamos que as iniciativas sejam daqueles de quem dizemos mal, dos políticos etc. Temos de ocupar esse espaço. De crítica em crítica, o diálogo converge para a chamada Lusofonia. Seu objetivo, em princípio, é unir todos os países marcados pelo Colonialismo Português e que herdaram e empregam o português como uma de suas línguas nacionais. Mas há um excesso de concentração lusófona em Portugal. Sobre isso, Mia Couto é ainda mais enfático e crítico: - Acho que tem de haver uma aprendizagem. Este projeto ou é de todos, ou vamos ter Insti-
tutos Camões que vão ser institutos de Portugal. É preciso que exista uma instituição da lusofonia e que seja suportada por todos. Porque é que no júri do Camões não estão Portugal, Brasil e África em conjunto? Não é justo. Mas a verdade é que os países africanos nunca deram um passo em frente para dizer que também queriam participar. O que custa a Angola e a Moçambique participarem? Estão só numa posição de reclamar. Preocupa-me que Moçambique tenha uma posição menos ambivalente, menos de queixa. Mesmo em relação à língua. Depois destes anos todos, a língua portuguesa ainda é vista como a língua dos outros? Ou se assume e vamos tratar dela como uma coisa nossa, ou não se pode pedir aos portugueses que façam certas coisas em relação à língua como se fosse deles. Em seguida, Mia fala da questão linguística no âmbito da lusofonia. Ele reconhece que a língua inglesa está ganhando terreno em Moçambique, mas não vê ameaça nisso, situando a posição atual da língua portuguesa no país: apenas 4,5% dos moçambicanos falavam português no tempo da independência e hoje, nos centros urbanos, 40% dos moçambicanos já tem
o português como língua materna. Quanto às línguas nacionais de Moçambique, vê hipocrisia no modo como são cuidadas: - Publicamente toda a gente faz um grande discurso sobre as línguas indígenas, mas isso implica trabalho e financiamento, e não está a acontecer nada. Sobre o não surgimento de vozes novas na Literatura moçambicana, Mia Couta evoca comparativamente o passado nacional, e põe a culpa na guerra – um dos flagelos, ainda hoje, do continente africano: - A guerra em Moçambique ajudou a destruir a ligação, que já era tão frágil, que passava pela escola, e as pessoas só tinham contacto com a língua portuguesa através do livro. Houve uma geração que foi sacrificada na relação com a leitura e o livro. Nas cidades talvez não tanto. Agora estão a ressurgir valores, e é curioso que Moçambique retoma a espécie de natureza mais ligada à poesia – como Angola, mais ligada à prosa – e há muitos jovens promissores no domínio da poesia. É que os escritores nascem de outros escritores, as ideias nascem de onde há ideias. Lembro-me da geração do Ungulani Ba Ka Khosa, frequentavam a esplanada do Charrua, Goa, das cervejarias, debates, tertúlias em Maputo, o café Scala, onde se reunia o Rui Knopfli e o Craveirinha, isso agora não existe. Neste ponto, o tema da conversa novamente se desloca. Desta vez para o meio ambiente. E o escritor – que, aliás, praticamente nada falou da sua própria literatura – se retira para dar lugar ao cientista que Mia também é. Mia Couto, o biólogo, diz o que pensa sobre a possibilidade de um equilíbrio entre o chamado desenvolvimento e a chamada agricultura sustentável: - Essa dualidade está mal desenhada. Não sei se está relacionado com este modelo de desenvolvimento, se há outros mais felizes. Talvez seja uma coisa utópica, mas não deve deixar de ser dita e pensada. Acabamos por aceitar como o modelo único possível. Pode haver problemas ambientais, mas as grandes questões são de ordem social: como são desarrumados os modos de vida, culturas inteiras arrancadas do seu habitat social e histórico. A solução não pode ser deixar como está. Existe a ideia irrisória de que as coisas estão bem porque as comunidades estão lá, mas elas estão dentro deste modelo e são empurradas para modos de sobrevivência muito agressivos. Por exemplo, nos mangais de Moçambique os viveiros dos peixes estão a ser assaltados pelas próprias comunidades que precisam de sobreviver e pescam com redes-mosquiteiro, cortam onde antes não cortavam. Havia gestão e códigos próprios, e até zonas sagradas que eram poupadas. Mia Couto representa a África atual, que conseguiu sobreviver ao dilaceramento do Colonialismo e chegar à aldeia global que é a Terra no século XXI. É essa África, que hoje em dia pode fazer sua voz ser ouvida no mundo, ecoando nos corredores das casas grandes dos interesses do Neo-Colonialismo, disfarçado em capitalismo liberal, que voltaremos a ouvir, mais e outras vezes, aqui, em algumas próximas páginas Sim dedicadas às Vozes da África.