BELÉM, DOMINGO, 27 DE JULHO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Conhece-te a ti mesmo Gnothi Seauton/ Conhece-te a ti mesmo.
E
ram essas as palavras inscritas na entrada do templo de Apolo, em Delfos – onde os gregos antigos iam consultar o Oráculo – isto é: iam perguntar ao Sagrado sobre seus destinos. Se você é um daqueles que - vivendo hoje e ainda por cima em um tempo já sem oráculos e de onde os deuses foram expulsos - se faz a pergunta – O que eu sou? E acrescenta a isso, mais perdido ainda – E o que isto que não sei o que é está fazendo aqui nesta vida? – se sentindo um estranho em uma terra estranha – será bem difícil obter uma resposta. Pois você próprio se retirou da Vida, que é o que poderia, talvez, conforme seus merecimentos, do profundo de você lhe responder. Algo muda substancialmente se você não se percebe como algo separado da Vida, mas já sabe de algum modo o que é e se sente parte dela, Vida, e sua pergunta é apenas uma demanda de sua identidade pessoal e um simples, mas abissal – Quem eu sou? A mesma oscilação certamente acontecia entre aqueles remotos gregos – com a imensa diferença que eles tinham deuses e confiavam em seu Oráculo, enquanto nós – confiaremos no que, e sobretudo – em Quem? Voltemos a eles. Que espécies de perguntas deveriam fazer ao Oráculo de Delfos? Todas deviam ser sobre o que o Futuro lhes reservava, como agradar aos deuses que eram muitos, dezenas, liderados por Zeus, e não atrair suas fúrias - além de haverem os semideuses, como Prometeu - que roubou o Fogo divino e deu aos homens e por isso foi condenado pelos deuses a rolar a pedra montanha acima, para ver ela novamente cair e ter que voltar para outra ver rolar montanha acima, e assim pela eternidade. Eram tempos panteístas. Antes do monoteísmo concentrar todos os deuses em um só, o que foi feito por três religiões: o Judaísmo, o Catolicismo e o Islamismo – que, no entanto, esquartejaram esse deus único em três, que puseram a combater entre si: o Jeová judeu, o Deus católico e Alá muçulmano. Suspeito que vários desses peregrinos gregos sofressem um choque ao chegar diante da inscrição na porta do Oráculo com suas perguntas prontas – algumas bem triviais como, digamos: - Serei feliz se me mudar de Atenas para Eleia? Ou: - Meu comércio irá prosperar se eu deixar de ser pastor e me tornar vinhateiro? E que ao lerem a recomendação – Conhece-te a ti mesmo, rasgassem suas perguntas e voltassem para suas casas entendendo que, antes dessas questões, deveriam primeiro ter obtido as respostas para perguntas, de fato, essenciais, que deveriam se fazer a si mesmos: - Quem sou eu? Ou, mais vertiginosamente: - O que sou eu? Imagine-se, agora, como um desses gregos antigos voltando para casa com essas duas perguntas, ou pelo menos uma delas. Mas, antes de as fazer a si mesmo, se pergunte: - Me sinto parte da Vida ou separado dela, como um estranho aqui extraviado, sem saber nem o que sou, quanto mais quem eu sou – pois sequer sei o que é a própria Vida? Assim sendo seu caso, como provavelmente é o de muita gente, adiemos as perguntas – O que sou eu/Quem sou eu? E também as menos importantes sobre nossas viagens e ganhos. E vamos em busca de saberes fundamentais, sem os quais jamais realizaremos a recomendação do Oráculo: Conhece-te a ti mesmo. Ponto de partida para todas as demais perguntas – que, talvez, e tudo indica, até nem se tornem mais necessárias após haver nos conhecido a nós mesmos. Muitos homens, no Oriente e no Ocidente, desde tempos imemoriais – se perguntaram o que é a Vida e qual o significado de viver, existir, ser pedra, árvore, água, fogo – e, sobretudo, o que é ser humano? Qual o nosso, digamos, papel no Universo? Por que e pelo que fomos criados?
A pergunta central é sempre sobre a Origem de Tudo. Puros filósofos, no mundo grego, como Platão, a partir de anteriores a ele como Parmênides e Heráclito, ou filósofos místicos, como Suhrawardi, na Pérsia, se perguntaram e nos legaram suas respostas. Também puros místicos buscaram respostas, como Buda, Cristo, Moisés, e a partir deles se criaram doutrinas ou religiões. E vieram os cientistas, dos clássicos aos modernos, como Newton e sua Gravidade, Einstein e sua Relatividade. A variedade das respostas dividiu os homens e, sem dúvida, se contentou a uns que se concentraram em torno de algumas delas, lançou outros na angústia de tantas possibilidades como as múltiplas respostas revelaram possível. Em casos particulares, como o meu próprio exemplo – me são suficientes a resposta dada pelo Oriente chinês atribuindo ao Tao a origem de tudo e a dada pelo Ocidente através do grego Plotino que atribui essa origem ao Uno. Do Tao de Lao Tsé falamos em outras páginas Sim, mas aqui e ali – e devemos dedicar a ele toda uma página. Também o Uno de Plotino sempre andou por aqui desde a primeira Sim - e esta já é a de número 60 – e já dedicamos a ele uma página, em que conversamos sobre A Beleza Inteligível. Nesta, vamos nos concentrar no que Plotino nos diz sobre o Uno, como Origem da Vida, no Tratado 9, da Enéada 6. Plotino, que no século III DC viveu e escreveu a sua obra - organizada por seu discípulo Porfírio em 6 livros, contendo 9 tratados cada um, sob o título geral Enéadas - nos conduz por um caminho de regresso às nossas origens, a partir do humano, desde estes entes habitantes de um corpo físico que somos, atravessando outros níveis da existência que ele identifica como a Alma/psukhé, o Intelecto ou Inteligência/noûs, até atingirmos o Uno/hén. Nós iniciamos esse percurso como homens através do universo sensível, que captamos pela sensibilidade dos nossos sentidos, e vamos nos erguendo através da dimensão do que já só pode ser percebido como o inteligível pela nossa inteligência – até chegarmos a Fonte que nos jorrou e todo o Cosmos: esse Uno, que é o Um primordial origem de todos os uns individuais que existem no Universo – sejam homens, formigas ou estrelas.
Plotino: Sobre o Bem ou o Uno Tudo o que está sendo, está sendo por causa do uno, tanto as coisas que, antes de tudo, são unas, quanto as que, de algum modo, dizemos que sejam unas em presença do que é uno. (...) À medida que sacrificam a unidade com a divisão, elas abandonam o ser. (...) Há integridade quando o corpo está disposto numa unidade, há beleza nas coisas quando o surgimento da unidade acolhe as partes, e há virtude da alma quando, pelo uno e numa mesma língua, singularizase. Mas então, se é a alma que rege a unidade de todas as coisas, produzindo-as e moldando-as, figurandoas e arranjando-as, devemos dizer que, regendo em coro a unidade, a alma é o próprio uno? Não é necessário. (...) A alma promove o uno, mas o promove como algo diferente de si mesma. Enxergando através do uno, ela cria a unidade de cada coisa. Da mesma maneira, a alma cria o homem, enxergando o homem através do homem, compondo com ele sua unidade. (,,,) É certo que a alma não é o uno em si mesmo, pois ela é uma unidade, e a unidade é uma contingência. A alma e o uno são duas coisas distintas, como são o corpo e o uno. (,,,) Da mesma maneira que os corpos e a unidade não são a mesma
coisa, ainda que o corpo participe da unidade. Acrescente-se que, a alma é múltipla, mesmo aquela que é uma unidade, ainda que nesta não haja partes. Pois muitas são as potências da alma: raciocinar, desejar, apreender, consonantes pela unidade, atreladas umas às outras como que por um laço tênue. E assim, estando a alma una em si mesma, ela também rege a unidade de outras coisas, contudo, a própria alma recebe a unidade de um outro. (...) É prudente verificar se cada ser é idêntico à unidade, ou se ele é completamente idêntico ao uno. Mas, se cada ser é uma multiplicidade, a unidade e o ser serão diferentes um do outro, pois é impossível que a unidade seja uma multiplicidade. Senão, vejamos, o homem é um animal e é, também, dotado de razão, isso significa que muitas partes estão ligadas à unidade. Nesse caso, o homem e a unidade são coisas diferentes, pois um é divisível, outro indivisível. Por isso, o que está sendo totalmente, o que tem em si mesmo todas as coisas que são, será ainda mais múltiplo e diferente da unidade, só a possuindo por participação. Além do mais, o ser tem percepção e vida, pois é, claro, não está morto, por isso é múltiplo. E, como ele também é percepção, necessariamente, é múltiplo. (...) E, se é ela que percebe e que é percebida, ela – a percepção - será dupla, e não simples, e não será mais
Esse Uno, que é o Um primordial origem de todos os uns individuais
uma. (...) Afinal, o que é o uno e qual é seu surgimento? (...) O descaminho surge, sobretudo, porque nossa apreensão do uno não se realiza nem por meio da ciência nem por meio da percepção, como é o caso das outras coisas perceptíveis, mas ela resulta de uma imanência que é superior à ciência. Não sendo totalmente una, a alma faz a experiência de sua falta de unidade quando adquire a ciência de algo. Pois a ciência é um discurso, e o discurso é múltiplo. A ciência abandona, portanto, a unidade e recai no número e na multiplicidade. É lícito, então, alçar-se além da ciência e não sair de forma alguma da unidade. (...) Quando o contemplamos – ao Uno - é uno com nós mesmos? (...) Já que não eram duas coisas, aquele que via estava unido ao que era visto, o que via não era realmente visto, uma vez que estava unificado a ele. [Aqui Plotino descreve a sua própria visão do Uno.] Assim, se ele recordar como era quando estava unido a ele, guardará para si sua imagem. Ele era uno em si mesmo, pois não guardava em si nenhuma diferença, nem em relação a si mesmo, nem em relação às outras coisas. Tanto assim, que ele não tem dentro de si nada que lhe perturba, nenhuma ira, nenhuma outra procura o atravessa quando ele se eleva. Nele não havia, sequer, razão ou percepção, ele mesmo não estava lá, se podemos dizer isso. Estava como que raptado ou inspirado, numa quieta solitude e num estado de calma, sem desviar-se de nenhuma maneira de sua própria presença, sem desligarse de si mesmo mantendo-se numa quietude, tornando-se ele mesmo uma quietude. (...) Ao perceber que, de fato, chegou a esse ponto, considerando a si mesma como uma cópia dele - Uno - , como uma imagem alcança seu arquétipo, partindo de si mesma, ela - a alma - chegará ao fim da viagem. Mesmo se ela desabar de tal contemplação, a alma despertará em si mesma a virtude, ao perceber em si mesma a ordem e a beleza, e se levantará da virtude à percepção, da percepção à sabedoria, da sabedoria ao próprio. Esta é a vida feliz dos deuses e dos homens divinos: distanciarse do imediato, viver sem deleitar-se com as coisas imediatas, e voar em meio à solidão ao Solitário.