Sim 63 Escritores célebres: Borges

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 17 DE AGOSTO DE 2014

MAGAZINE  11

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sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Escritores célebres: Borges La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única. A bela máscara mudou, mas como sempre é a única. JORGE LUIS BORGES

V

ocê já conversou com um escritor de verdade, assim, como se diz: cara a cara? Se não, é bom saber que conversar com escritores pode ser a coisa mais fácil do mundo, ou a mais difícil. Em certos casos – como, por exemplo, o de J.D. Salinger, o norteamericano autor do surpreendente e belo romance O Apanhador no Campo de Centeio/The Catcher in the Rye – a palavra deve ser trocada para impossível. Salinger isolou sua vida – casa, mulher e filhos, toda sua vida privada – da ávida curiosidade do mundo. Jamais deu uma entrevista, não se deixava fotografar ou filmar. E a única vez que alguém conseguiu dele algo parecido com uma entrevista, na verdade foi mais uma conversa que teve com uma estudante, para um trabalho escolar que ela estava fazendo. Agora, que se anuncia um filme sobre a sua vida – desconfie. Assim como das biografias em livros que têm aparecido aqui e ali sobre ele. São, todas, meras tentativas de perfurar a intimidade de Salinger, com base em documentos como certidão de nascimento, registros escolares, algum emprego, algumas raras cartas – que, com deduções feitas a partir do que escreveu em seus livros, forçam a montagem de um quebra-cabeça, que deverá se manter insolúvel. Portanto, se você quer saber algo de Salinger – então, leia os seus livros e descubra, se ainda não o conhecia, um escritor com rara capacidade de perceber e apreender a Vida em suas cotidianidades, onde flutuam ilhas de assombros. Invisibilidade, só penetrável pelas palavras que escreveu. Foi isso que ele quis, e que assim sua vida fosse – e para isso viveu com o recolhimento de um mestre Zen e de um silencioso chinês caminhante do Tao. Mas nesta página não teremos Salinger – em outra, quem sabe mostremos alguma ficção dele - e sim o visionário escritor argentino Jorge Luis Borges. E Borges torna esta página possível porque, sendo o oposto simétrico de Salinger, não apenas pelo predomínio do assombro sobre o cotidiano em sua literatura, mas, também, porque jamais se cansou de dar entrevistas e se deixar ver em público, fotografar, filmar. Borges andou pelo mundo todo falando sobre tudo: da Mitologia Celta a Cabala judaica – de onde terá emergido o seu conto mais famoso:

Borges cego relia na memória os livros que lera El Aleph/O Aleph - do Budismo, dos grandes místicos, da Metáfora, dos símbolos, também da sua própria Literatura, claro, e de Shakespeare, Kafka, Cervantes e dos mil e um livros que leu – sempre declarando As Mil e Uma Noites o seu favorito, permanentemente lido e relido. Borges foi o autor de centenas de poemas, menos conhecidos que suas ficções – mostramos um deles, El Amenazado, com tradução fiel e intercalada ao original, nesta página Sim – e de dezenas de contos – mas nunca escreveu um romance, sequer uma breve novela, e costumava dizer que o assunto da maioria deles cabia em duas ou três páginas, no máximo. A Literatura foi tudo para ele, desde criança – nasceu em 1899 – até seus últimos dias – se foi da Terra em 1986 – quando, já cego, não conseguia mais ler e dependia dos olhos de outros e que lessem para ele – ou, suprema devoção, se deixava ficar em estado de leitura pela memória, recordando os livros que, quando ainda via, havia lido. Borges criou com as Palavras um mundo singular, de Labirintos & Espelhos, evocativo da Arte Maneirista da Idade Média, que nos convida a delirar ininterruptamente - mas não os delírios surrealistas, em que predomina o Inconsciente, e sim nos fazendo atravessar realidades em que os olhos, quanto mais pragmaticamente abertos, mais nos farão ter visões assombrosas. Aqui, Borges nos falará quase nada sobre Literatura - mas muito sobre o seu amor pelos livros, sobre o que chamamos de Realidade, alguma coisa de política, sobre o Sagrado, o Tempo e ainda da Felicidade.

Borges: sobre Livros, Realidade, o Sagrado, o Tempo e a Felicidade Os livros Borges: - Não me lembro de uma época em que não soubesse ler e escrever. Se me dissessem que estas são condições inatas, inerentes ao homem desde o seu nascimento, eu acreditaria, baseado na minha experiência pessoal. Criei-me na biblioteca do meu pai, composta em grande parte por livros ingleses. Li os contos dos irmãos Grimm, li Kipling e mais tarde os contos de Andersen. Eu me criei-me lendo. Na biblioteca do pai Borges: - Apesar de ter percorrido o mundo todo, tenho a impressão de nunca haver saído da biblioteca do meu pai. O leitor cego Borges: - Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo que pode parecer patético e não quero que seja patético - quero que seja como uma confidência que faço a cada um de vocês -; não a todos, mas a cada um de vocês, porque todos é uma abstração e cada um é verdadeiro. Eu sigo brincando de não ser cego, sigo comprando livros, sigo enchendo a minha casa de livros. Outro dia deram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia de Brokhause. Senti a presença desse livro em casa, sentia como uma espécie de felicidade. Aí estavam vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, no entanto, o livro estava

ali. Sentia como que uma gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que temos, os homens. Sobre o Caos/Cosmos Borges: - O que acontece é que essas nossas racionalizações da realidade são parte da realidade que querem explicar. Nós vivemos dos sonhos dos mortos, dos esquemas dos mortos. O mundo pode parecer um caos, mas nós tratamos de que seja um cosmos, uma ordem. O mundo como comunidade Borges: - O nacionalismo é o maior problema do nosso tempo. Infelizmente para os homens, o mundo foi parcelado em países, cada um provido de lealdades, de memórias queridas, uma mitologia particular, direitos, fronteiras, bandeiras, escudos e mapas. Enquanto durar este estado arbitrário de coisas, as guerras serão inevitáveis. O pacifista Borges: - Quero insistir no fato de que sou pacifista. Neste país – a Argentina - havia 82 generais, que depois da derrota na guerra das Malvinas foram reduzidos a 40: agora há, pois, um excesso de 40 generais. Gênio? Borges: - Gênio, eu? É uma injúria. Eu sou apenas um homem lúcido, que não tem valor e com pouca esperança. Não há muito o que esperar na minha idade. Eu só gostaria de poder ver mais moralidade, mais ética ao meu redor. Em outros planos e esferas, a economia sempre encontrará alguma solução. Mística Borges: - Perguntaram um dia a Bernard Shaw se ele acreditava que o

El Amenazado O Ameaçado Jorge Luiz Borges

Es el amor. Tendré que ocultarme o huir. É o amor. Terei que ocultar-me ou fugir. Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz. Crescem os muros do seu cárcere como um sonho atroz. La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre A bela máscara mudou, mas como sempre es la única. ¿De qué me servirán mis talismanes: el é a única. De que me servirão meus talismãs: o ejercicio de las letras, la vaga erudición, el aprendizaje exercício das letras, a vaga erudição, a aprendizagem de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus das palavras que usou o áspero Norte para cantar seus mares y sus espadas, la serena amistad, las galerías de mares e suas espadas, a serena amizade, as galerias da la Biblioteca, las cosas comunes, los hábitos, el joven Biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, amor de minha mãe, a sombra militar de meus mortos, la noche intemporal, el sabor del sueño? a noite intemporal, o sabor do sonho? Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo. Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.

Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se Já o cântaro se quebra sobre a fonte, já o homem se levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que levanta à voz da ave, já se escureceram os que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz. olham pelas janelas, mas a sombra não trouxe a paz. Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, É, já sei, o amor: a ansiedade e o alivio de ouvir tua voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo. a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo. Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles. É o amor com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis. Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar. Há uma esquina por onde não me atrevo a passar. Ya los ejércitos me cercan las hordas. Já os exércitos me cercam as hordas. (Esta habitación es irreal, ella no la ha visto). (Esta casa é irreal, ela não a viu). El nombre de una mujer me delata. O nome de uma mulher me delata. Me duele una mujer en todo el cuerpo. Me dói uma mulher em todo o corpo.

Espírito Santo havia escrito a Bíblia. E Bernard Shaw respondeu: - Todo o livro que valha a pena ser lido foi escrito pelo Espírito. Deus Borges: - Não acredito em Deus, não consigo. Mas um dia o meu pai disse-me que este universo é tão estranho que pode ser, subitamente, que a Santíssima Trindade exista. Não posso acreditar na pessoa de Deus, mas consigo acreditar em um Deus que está em transformação, como Bernard Shaw disse, um Deus que trabalha através de nós, através das plantas e dos animais. Panteísmo Borges: - Talvez sejamos ao mesmo tempo, como querem os panteístas, todos os minerais, todas as plantas, todos os animais, todos os homens. Mas felizmente não o sabemos. Felizmente acreditamos na existência de indivíduos. Porque senão estaríamos esmagados, aniquilados por esta plenitude. O Tempo Borges: - O que é o tempo? Não sei se, mesmo depois de 20 ou 30 séculos de meditação, já avançamos muito na questão do tempo. Eu diria que sempre sentimos esta antiga perplexidade, esta que Heráclito sentiu, mortalmente, naquele exemplo a que eu volto sempre: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Porque é que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio? Em primeiro lugar, porque as águas do rio fluem. Em segundo lugar - e isto é algo que nos toca metafisicamente, que nos dá uma espécie de horror sagrado -, porque nós mesmos somos também um rio, nós também somos flutuantes. O problema do tempo é este. É o problema da fugacidade: o tempo passa. Eternidade Borges: - O tempo é sucessivo, porque, tendo saído do eterno, quer voltar ao eterno. Quer dizer, a ideia de futuro corresponde ao nosso desejo de voltar ao princípio. Deus criou o mundo. E todo o mundo, todo o universo das criaturas, quer voltar a este manancial eterno que é intemporal, não anterior nem posterior ao tempo, mas que está fora do tempo. A Felicidade Borges: - De algum modo, a juventude parece mais próxima de mim hoje do que quando era moço. Não mais considero a felicidade inatingível como há muito tempo eu a considerava. Agora sei que ela pode acontecer a qualquer momento, mas que nunca deveria ser buscada. Quanto ao fracasso ou à fama, são muito irrelevantes e nunca me preocupei com eles. O que estou procurando agora é a paz, a alegria de pensar e da amizade, e, embora possa parecer demasiada ambição, uma sensação de amar e de ser amado.


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