BELÉM, DOMINGO, 24 DE AGOSTO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Como escrevem os escritores?
À divindade agrada o jogo de criar A criatura é o seu gosto de brincar ANGELUS SILESIUS
V
ocê gosta de escrever? Gostaria? Qualquer coisa: não apenas um mero e-mail, nem só ainda uma das antigas cartas à mão, talvez um Diário – secreto ou não – ou uns poemas, talvez contos – quem sabe até um longo romance? Muita gente não escreve porque acha que escrever é só para Escritores, assim mesmo, com E maiúsculo. Como fazer uma cirurgia no próximo é só para cirurgiões – uma especialidade. Atividade de profissionais. Bobagem. Escrever é a coisa mais amadora do mundo. Quero dizer: - Quanto mais feita com amor e menos técnica, melhor. Esse é o sentido profundo que se escondeu na palavra amador, hoje invertida e tornada ofensiva. Ah, mas pessoas já se libertaram desse trauma fantasmático de não serem capazes de escrever depois que vieram me perguntar: – Como é que se escreve como um escritor? Ao menos um conto? E eu respondi: - Conte para o papel. Para mim, se você sabe falar e dizer o que quer dizer – e tem o que dizer, diga para o papel. As palavras são as mesmas, a diferença é que quando ditas vão para os ouvidos e quando escritas vão para os olhos. Mas penetram no outro, que nos ouve ou lê do mesmo modo. Vou contar uma dessas conversões da palavra oral para a palavra escrita que aconteceu na minha própria família: minha mãe, Yara Cecim, era uma encantadora contadora de histórias – encantadora, no sentido mágico, hipnótico da palavra. Um dia, aos 60 anos, decidiu por suas histórias em livros. Eu já fazia isso há alguns anos, e ela perguntou ao escritor que eu era: - Como eu faço? E eu disse justamente isso a ela: - Conte para o papel. O papel virtual não muda nada. E ainda há muita gente que se sente mais íntima de si mesma e do que escreve, escrevendo à mão. Os meios mudam: da antiga pena de ave & tinteiro para o computador, passando pelas máquinas de escrever, manuais e depois elétricas – mas o essencial – o ato de escrever – permanece o mesmo.
Humanizando o ato de escrever Quando escrevo ficções ou poemas, e até mesmo esta página, eu fico variando todo o tempo: ora escrevo à mão, ora no teclado do computador. O que importa mesmo é humanizar o ato de escrever. Ser um verdadeiro amador, e mais que isso – um ardoroso amante - quando está escrevendo. Claro que quando se começa a escrever se é como uma criança, engatinhando. Depois se aprende a andar, a cair e a levantar. Até a andar de bicicleta – proezas do equilíbrio. Bem mais tarde é que a criança se torna um Kafka, um Bruno Schulz, um Proust, um Beckett, um Rulfo, um
Joyce ou um Guimarães Rosa – escritores que são grandes criadores de novas linguagens usando a palavra escrita. Mas não esqueça: eles também começaram sugando no seio da Literatura, enquanto ainda filhotes dessa mãe. Depois, se tornaram independentes e ousados. Bem depois, mesmo jovens como Rimbaud, que fez toda a sua obra poética entre os 17 e os 19 anos. E quando se tornam independentes, e já sabem caminhar sozinhos – o que os verdadeiros escritores fazem? Se tornam inventores de novas formas de usar a Palavra. Foi o que fizeram os videntes & poetas do movimento Dadá, no início do século XX: eles criaram o que chamaram de Escrita Automática – que depois continuou sendo praticada pelos Surrealistas – para dar, digamos, uma largada no ato de começar a escrever. Como faziam? Eles – Tristan Tzara, o criador do Dadá, e os outros dadaístas – baixavam a mão no papel e escreviam a primeira letra que lhes viesse na ponta do lápis, caneta ou no teclado de uma máquina de escrever. Digamos, a letra: O. E sem nenhuma pausa para refletir e escolher racionalmente a próxima, deixavam sair uma segunda letra, uma terceira, uma quarta, uma quinta, até terem escrito, por exemplo, a palavra Ontem - e assim iam adiante até terem formado uma primeira frase qualquer, por exemplo: Ontem vi em sonhos o meu rosto, amada, e descobri que não era mais o meu, era o teu. E assim nasciam inteiros os seus poemas e seus outros textos. Todo um livro, como O Homem Aproximativo, de Tzara, era escrito assim.
Libertando o Imaginário Mas o mais importante que a chamada escrita automática trouxe para a Literatura foi a libertação do Imaginário do autor das racionalizações decorrentes da palavra meticulosamente escolhida antes de ser escrita. E não é tudo: mais inventivo e inteiramente livre, o caminho fica aberta para que por ele passe o misterioso milagre da escrita, que é: o que você estava começando a escrever ainda como o autor da obra passa a se escrever por si mesmo, toma as rédeas nos dentes, isto é, nos dedos – e a sua Escrita se torna o verdadeiro autor da obra. Nessa inversão, você é que se torna o meio pela qual as palavras falam, e não mais elas, como quando usadas como um meio de expressão por você. Como essa, há muito mais coisas sobre o ato de escrever do que sabe a nossa vã escritura. Uma delas não é propriamente oriunda do ato em si – e sim do lugar, ou meio ambiente em que o autor escreve. Exemplos: O francês Marcel Proust gostava de escrever com as cortinas fechadas, na penumbra – e foi assim que escreveu os sete substanciais volumes da sua obra Em busca do tempo perdido. Era um escritor que precisava do máximo recolhimento para que as palavras brotassem dele e criassem um outro mundo, puramente verbal, para onde transportava os seus leitores. Já o norte-americano Ernest Hemingway escrevia de pé, sobre a pele de um leopardo que havia caçado na África. Essa era a base – como a penumbra
de Proust o seu meio ambiente – que ele precisava para escrever, o que lhe dava energia, inspiração, ideias. Enfim - Proust, para escrever, precisava fugir do exterior, Hemingway, para escrever, precisava se sentir no exterior. E assim os escritores vão variando suas formas, ou hábitos de escrita. Há, por trás disso, possíveis causas que se deve registrar, mas não levar tão a sério, porque o mistério do verbo humano sem dúvida participa daquele Outro Mistério, sobre o qual São João escreveu em um dos Evangelhos: - No princípio era o verbo. (...) E o verbo se fez carne. E o ato de escrever se situa, ou acontece, em uma dimensão não tão simples quanto as biografias dos escritores poderiam suficientemente explicar. No caso de Proust, consta que ele sofria de asma e por isso se fechava eu seu quarto, onde escrevia. No caso de Hemingway, sabe-se que ele gostava de acontecimentos violentos – apreciava touradas, participava de safares. E terminou por explodir a própria cabeça com a arma que usava em suas caçadas.
Como eles escrevem Mas basta de especulações. Já falei demais e agora vamos deixar que os escritores, eles próprios, nos digam – Como os escritores escrevem. Selecionei, entre outros, para ouvirmos suas confidências sobre seus hábitos de escrita: Ray Bradbury, Susan Sontag, Henry Miller, Simone de Beauvoir, o próprio Hemingway, Anaïs Nin, Kut Vonnegut, Jack Keruac, o japonês Haruki Murakani e alguns mais.
Comecemos por Ray Bradbury Bradbury nos revela que pode escrever em qualquer lugar. Diz ele: - Eu consigo trabalhar em qualquer lugar. Escrevi em quartos e salas de estar na adolescência com meus pais e meu irmão em uma pequena casa, em Los Angeles. Eu trabalhava em minha máquina de escrever na sala, com o rádio, meu pai, minha mãe e meu irmão, todos falando ao mesmo tempo. Mais tarde, quando queria escrever Fahrenheit 451, eu encontrei uma espécie de sala de escrever, em um porão, onde você colocava uma moeda de 10 centavos na máquina e comprava 30 minutos de tempo de escrita. Segundo Bradbury, minha paixão me leva à máquina de escrever todos os dias da minha vida, e ela tem feito isso desde que eu tinha 12 anos. Então, nunca tive que me preocupar com cronogramas. Alguma coisa nova está sempre explodindo em mim, e é isso que me programa, eu não faço nada. Ela diz: - Vá para a máquina de escrever agora mesmo e termine isso. E eu vou e escrevo. Susan Sontag Já Susan Sontag nos revela: - Eu escrevo com uma caneta hidrográfica, ou, às vezes, um lápis, em blocos de anotações amarelos ou brancos, aquele fetiche de escritores americanos. Eu gosto da lentidão da escrita à mão. Então eu digito isso e depois rabisco tudo. E continuo redigitando, sempre fazendo correções, tanto à mão quanto diretamente na máquina de escrever, até que não veja mais como tornar aquilo melhor. Até cinco anos atrás, era assim. Desde então há um computador em minha vida. Depois do segundo ou terceiro rascunho isto vai para o computador, então eu não redigito todo o manuscrito mais, mas continuo revisando a mão numa sucessão de rascunhos e cópias para o computador. Diz ela: - Eu escrevo em jorros. Escrevo quando tenho que escrever, quando a pressão aumenta e sinto confiança suficiente que algo amadureceu em minha cabeça e eu tenho que escrever isto. Quando algo está realmente a caminho, eu não quero fazer mais nada. Eu não saio de casa, na maioria das vezes me esqueço de comer, eu durmo muito pouco. É uma forma de trabalho bem indisciplinada e não me faz muito prolífica. Mas eu estou muito interessada em várias outras coisas. Mas, que pena: o espaço desta página Sim acabou. Os outros autores vão ter que esperar o próximo domingo, para nos revelar, cada um do seu jeito, como escrevem os escritores.