Sim 65 Como escrevem os escritores? (II)

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 31 DE AGOSTO DE 2014

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Como escrevem os escritores? (II) cumprir e vencer várias supertições: Eu costumava ter um ritual de acender uma vela e escrever sob sua luz e apagá-la quando tivesse terminado por aquela noite… também ajoelhar e rezar antes de começar... mas agora eu simplesmente odeio escrever. Minha superstição? Estou começando a suspeitar da lua cheia. Também fico fascinado com o número nove, apesar de ouvir dizer que um Pisciano como eu deveria ficar com o número sete mas eu tento fazer nove touchdowns por dia, isso é, eu deito com a cabeça no chão no banheiro, com uma pantufa, e toco o chão nove vezes com as pontas dos meus dedos dos pés, quando equilibrado. Isso, aliás, mais que yoga, é uma proeza atlética, digo, imagine me chamarem de desequilibrado depois disso. Francamente eu sinto minha mente funcionando. Então outro ritual é rezar para Jesus para preservar minha sanidade e minha energia para que eu possa ajudar minha família: que são minha mãe paralisada, minha esposa...

Onde queimam livros, acabam queimando homens. HEINE

C

ada um escreve como quer. Ou como pode. As va riações vão, por exemplo - do tcheco Kafka, que no século XX queria que sua vida se tornasse somente Literatura e além de suas ficções, mantinha um longo Diário e chegava a escrever, para uma mesma pessoa, meia dúzia de cartas por dia – ao japonês Bashô, que no século XVII só escrevia breves e cintilantes Hai Kais ao longo de viagens que podiam durar muitos dias, convivendo com a Natureza, através do Japão. Ou de Samuel Beckett – que esquecia a comida que sua mulher colocava do lado de fora, na porta do quarto, às vezes por dias – até William Faulkner – para quem não podiam faltar uma garrafa de uísque e um cachimbo. Cada escritor tem seu modo de escrever, e não apenas o seu estilo de escrita – e, provavelmente, o estilo determina o modo que melhor lhe permite fluir. Nesta segunda página Sim sobre Como escrevem os escritores vamos conhecer essas variações, ouvindo

Haruki Murakami

Eu escrevo todos os dias… Faço meus melhores trabalhos pelas manhãs.

Kurt Vonnegut

Beckett alguns outros escritores – já ouvimos Ray Bradbury e Susan Sontag na página passada - confessarem, ou simplesmente revelarem, seus modos de escrever. Antecipemos trechos de algumas dessas revelações: O norte-americano Don DeLillo nos diz que - Um escritor toma medidas sérias para garantir sua solidão e então encontra infinitas maneiras de desperdiçá-la. Para o japonês Haruki Murakami – Escrever uma longa novela é como um treino de sobrevivência. Força física é tão necessária quanto sensibilidade artística. Jack Kerouac revela - Eu costumava ter um ritual de acender uma vela e escrever sob sua luz e apagá-la quando tivesse terminado por aquela noite… Kurt Vonnegut mistura escrever com viver – Eu acordo às 5:30, trabalho até às 8:00, tomo café da manhã em casa, trabalho até às 10:00 e ando alguns quarteirões pela cidade. Anaïs Nin prefere o começo do dia – Faço meus melhores trabalhos pelas manhãs. Henry Miller acha bom – conceder tempo suficiente durante o dia para uma ocasional visita a um museu ou um rascunho ou uma volta de bicicleta. Rascunhos em cafés e trens e ruas. Simone de Beauvoir começa relando o que escreveu antes – Eu passo de quinze a trinta minutos lendo o que eu escrevi no dia anterior, e faço algumas correções. Então eu continuo daí. Ernst Hemingway compara escrever com fazer amor – Você começa às seis da manhã, digamos, e pode continuar até o meio-dia ou seguir após isso. Quando você termina, está tão esgotado e ao mesmo tempo tão carregado, que é como se estivesse feito amor com alguém que você ama.

Faulkner Comecemos por ele, Hemingway, de quem já antecipamos, no domingo passado, que escrevia sobre a pele de um leopardo que havia caçado em um safári na África. E sigamos com os outros que nos falarão nesta segunda página:

Ernest Hemingway Quando estou trabalhando em um livro ou uma história, eu escrevo toda manhã no mais próximo ao amanhecer possível. Não há ninguém para te perturbar e é fresco ou frio e você vai para seu trabalho e se aquece ao escrever. Você lê o que havia escrito e, como você sempre para quando sabe o que vai acontecer a seguir, você segue dali. Você escreve até chegar num lugar onde ainda tenha sua essência e saiba o que vai acontecer depois, então você para e tenta viver até o próximo dia, quando volta a isso. Você começa às seis da manhã, digamos, e pode continuar até o meio-dia ou seguir após isso. Quando você termina, está tão esgotado e ao mesmo tempo tão carregado, que é como se estivesse feito amor com alguém que você ama. Nada pode machucá-lo, nada pode acontecer, nada importa até o próximo dia quando você faz isso de novo. A espera até o próximo dia é a parte difícil. Depois que começo a escrever, imagens costumam brotar em minha cabeça, facilitando a continuidade da história.

Simone de Beauvoir Eu sempre estou com pressa para iniciar, embora, em geral, não goste de começar o dia. Primeiro eu tomo chá e, então, por volta das dez da manhã, começo e trabalho até uma hora da tarde. Então eu vou ver meus amigos e após isso, às cinco da tarde, volto ao trabalho e sigo até às nove. Eu não tenho dificuldades em recuperar

o fio da meada à tarde. Quando você sair, eu vou ler o jornal ou talvez fazer compras. Na maioria das vezes é um prazer trabalhar. Se o trabalho está indo bem, eu passo de quinze a trinta minutos lendo o que eu escrevi no dia anterior, e faço algumas correções. Então eu continuo daí. A fim de recuperar o segmento eu leio tudo o que escrevi.

Henry Miller Há revelações surpreendentes, como estas de Miller, para quem após ler seus livros espera encontrar por trás do escritor um homem sem métodos. Ele chegou a escrever até uma rotina diária, para seguir rigorosamente. Eis: MANHÃS: Se estiver inseguro, digitar notas e alocar, como estímulo. Se estiver bem, escreva. TARDES: Trabalhar a sessão à mão, seguindo o plano escrupulosamente. Sem intromissões, sem diversão. Escrever para terminar uma sessão por vez, definitivamente. NOITES: Ver amigos. Ler em cafés. Explorar lugares desconhecidos – a pé, se estiver seco, de bicicleta, se estiver molhado. Escreva, se estiver no clima, mas em menor volume. Pinte se estiver sem ideias ou cansado. Faça notas, faça gráficos, planos. Conceder tempo suficiente durante o dia para uma ocasional visita a um museu ou um rascunho ou uma volta de bicicleta. Rascunhos em cafés e trens e ruas. Corte os filmes! Bibliotecas para referências uma vez por semana.

Vonnegut nos deixa entrever como vive e escreve, nesta carta escrita para sua mulher: Em uma vida sem rumo como a minha, sono, fome e trabalho organizam-se sozinhos para serem atendidos, sem me consultarem. E eu estou tão feliz que eles não me consultaram sobre os detalhes cansativos. O que eles têm decidido é o seguinte: Eu acordo às 5:30, trabalho até às 8:00, tomo café da manhã em casa, trabalho até às 10:00, ando alguns quarteirões pela cidade, mando recados, vou até a mais próxima piscina municipal, a qual eu tenho toda para mim, nado por meia hora e retorno para casa às 11:45, leio as correspondências e almoço ao meio-dia. À tarde eu faço trabalho escolar, seja dar aula ou prepará-la. Quando chego em casa da escola, por volta das 5:30, eu entorpeço meu vibrante intelecto com vários shots de whisky com água ($5.50 na loja State Liquor, a única loja de bebidas da cidade. Embora haja um monte de bares.), faço o jantar, leio, ouço jazz (muita música boa nas rádios daqui) e deslizo para a cama às dez. Eu faço flexões e abdominais o tempo todo, e sinto que estou ficando magro e musculoso, mas talvez não. Na noite passada, o tempo e meu corpo decidiram me levar ao cinema. Eu vi Os guarda-chuvas de Cherbourg, o que me fez muito mal. Para um homem de meia-idade sem rumo como eu, foi de partir o coração. Está tudo bem. Eu gosto de ter meu coração partido.

Jack Kerouac Kerouac nos diz que o melhor lugar para escrever é a mesa no quarto, perto da cama, com uma boa luz, da meia-noite até o amanhecer, uma bebida quando você fica cansado, de preferência em casa. Mas para isso tem que

Don DeLillo Bem diferente de Murakami é DeLillo, que se pega frequentemente distraído, olhando pela janela: Eu trabalho de manhã em uma máquina de escrever manual. Faço isso por volta de quatro horas e então vou correr. Isso ajuda a me livrar de um mundo e entrar em outro. Árvores, pássaros, garoa – é um bom tipo de interlúdio. Então eu trabalho de novo, no final da tarde, por duas ou três horas. O esporte está presente na rotina de muitos escritores. É, indubitavelmente, uma excelente forma de clarear as ideias, aquela distância que se faz necessária às vezes, para que possamos enxergar as coisas melhor. Além de ser renovador. De volta ao tempo do livro, que é transparente – você não sabe que está passando. Sem lanche, comida ou café. Sem cigarros – eu parei de fumar há muito tempo. O espaço é limpo, a casa é quieta. Um escritor toma medidas sérias para garantir sua solidão e então encontra infinitas maneiras de desperdiçá-la. Olhando pela janela, olhando entradas aleatórias no dicionário. Para quebrar o feitiço eu olho para uma fotografia de Borges. O rosto de Borges contra um fundo escuro – Borges feroz, cego, sua narina escancarada, sua pele esticada, com a boca incrivelmente viva - sua boca parece pintada - ele é como um xamã pintado por visões, e todo o rosto tem uma espécie de arrebatamento férreo. Eu li Borges, é claro, embora esteja longe de ter lido tudo, e não sei nada sobre a forma com que ele trabalhava – mas a fotografia nos mostra um escritor que não desperdiça tempo na janela ou em qualquer outro lugar. Então eu tento transformá-lo em meu guia que me leva da letargia e da deriva, para um mundo de magia, arte e adivinhação. As divagações, enquanto escrevo, são um problema. Muitas vezes me pego olhando pela janela, longe do assunto que estou escrevendo. E nem sempre posso colocar a culpa na Tv ou no barulho ao meu redor. Que eles continuem escrevendo - sem serem queimados - e nós queimando os olhos, lendo seus livros através das madrugadas.

Anaïs Nin Eu escrevo minhas histórias de manhã, e meu diário à noite.

O japonês Murakami se programa para render o máximo quando escreve: Quando estou em modo escrita para um romance, eu acordo às 4:00 da manhã e trabalho por cinco ou seis horas. À tarde, corro por 10 km ou nado por 1500m - ou faço os dois. Então, leio um pouco e ouço musica. Eu vou para cama às 9:00 da noite. Mantenho tal rotina todos os dias, sem variações. A repetição em si se torna a coisa importante - é uma forma de mesmerismo. Eu me automesmerizo para alcançar um estado mental mais profundo. Mas suportar tal repetição por tanto tempo — seis meses a um ano — requer uma boa quantia de força mental e física. Nesse sentido, escrever uma longa novela é como um treino de sobrevivência. Força física é tão necessária quanto sensibilidade artística.

Kerouac


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