Sim 68 O Eterno Retorno e o Sonho de Brahma

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BELÉM, DOMINGO, 21 DE SETEMBRO DE 2014

OLIBERAL

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

O Eterno Retorno e o Sonho de Brahma

As sociedades arcaicas recusam o tempo histórico e são nostálgicas dos seus mitos de origens. MIRCEA ELIADE

V

ocê gostaria que sua vida, em vez de um dia acabar, recomeçasse? Tudo igualzinho ao que foi? Antes de responder, pense bem: se sua resposta for – Não, sua vida termina onde irá terminar, e Fim – como no final de um filme, em que quando ele acaba se levanta e vai embora. Se a sua resposta for – Sim, então seria como se você, no fim do filme, ficasse para assistir uma segunda sessão, depois uma terceira, uma quarta, uma quinta – e assim interminavelmente. Se você ainda fosse um homem préhistórico, ou primitivo, já sei qual seria a sua resposta e nem precisaria perguntar, pois ela seria, sem sombra de dúvida – Sim. E sabe por quê? Porque o homem arcaico vivia em sonhos de atingir o Eterno Retorno e, através dele, regressar à mítica Idade de Ouro que, sob vários nomes e atributos culturais diversos, aparece em todas as culturas primitivas – e não só as antigas, mas também as que sobrevivem contemporaneamente ao mundo moderno. Mas como nem eu nem você somos mais primitivos – pelo menos assim não nos consideramos – continuemos a conversar como homens modernos. E então você haveria de querer me perguntar, antes de responder sim ou não: - Vicente, se eu dissesse sim, a minha vida repetida seria inevitavelmente igual à original, ou nela haveria mudanças – promovidas por mim e pelos acontecimentos? Confesso que não tenho a resposta – que, aliás, ninguém até agora teve com absoluta certeza. Desde a sua formulação mais profunda e uma das mais antigas: o Sonho de Brahma, que nos cria, descria e recria, segundo a mística indiana. Quem sabe entrevemos alguma pista para essa resposta levando adiante o assunto desta nossa página Sim, que, além da referência ao Sonho de Brahma, trata basicamente de O Mito do Eterno Retorno, livro do romeno Mircea Eliade, e também passa por O Eterno Retorno do Mesmo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E falando em Nietzsche, bem antes da minha pergunta ser feita nesta página ele já havia feito a mesma pergunta, que lhe ocorra durante um passeio, em 1881, e que o próprio Nietzsche considerava um dos seus pensamentos mais aterrorizantes - se você é impressionável, passe por cima. Nietzsche escreveu a pergunta tenebrosa sobre o Eterno Retorno como o aforismo 56 do seu livro A Gaia Ciência, lançado no ano seguinte. Ei-la: - E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: - Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira! Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: -Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino! Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: - Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes? pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? Mircea Eliade, em seu breve livro

Dali O Mito do Eterno Retorno e em vários outros, como o imenso História das Crenças e das Ideias Religiosas, ou O Xamanismo, registrou suas profundas descobertas da mística arcaica, que a frase no alto da página sintetiza: - As sociedades arcaicas recusam o tempo histórico e são nostálgicas dos seus mitos de origens.

Eliade e o Mito do Eterno Retorno E justamente porque nós, homens históricos, somos o inverso exato dos homens anteriores à História, é que eu não posso ter absoluta certeza de sua resposta, como disse lá encima que teria se você fosse um primitivo. Em nosso caso, a síntese de Eliade seria: - As sociedades modernas vivem unicamente no tempo histórico e esqueceram os seus mitos de origens. Eliade nos diz: - O homem dito primitivo, arcaico, não reconhece qualquer ato que não tenha sido previamente praticado e vivido por outra pessoa, algum outro ser que não tivesse sido um homem. Tudo o que ele faz já foi feito antes. Sua vida representa a incessante repetição dos gestos iniciados por outros. Essa repetição consciente de determinados gestos paradigmáticos revela uma ontologia original. O produto bruto da natureza, o objeto modelado pela indústria do homem, adquire sua realidade, sua identidade, mas apenas até o limite de sua participação numa realidade transcendental. O gesto se reveste de significado, de realidade,

unicamente até o ponto em que repete um ato primordial. Diversos grupos de fatos, desenhados aqui e ali, a partir de diferentes culturas, nos ajudarão a identificar a estrutura dessa ontologia arcaica. Estudando seu mecanismo, poderemos abordar o problema da existência humana e da história dentro do horizonte da espiritualidade arcaica. E nos mostra como distribuiu sua coleta de dados sob diversos títulos principais, assim: I. Fatos que nos mostram que, para o homem arcaico, a realidade é uma função da imitação de um arquétipo celestial. II. Fatos que nos mostram como a realidade é atribuída através da participação no Simbolismo do Centro: cidades, templos e casas tornam-se reais pelo fato de serem semelhantes ao Centro do Mundo. III. Por fim, rituais e gestos profanos significativos, que adquirem o significado que lhes é atribuído, e que materializam esse significado, só porque repetem de maneira deliberada estes ou aqueles atos praticados ab origine por deuses, heróis ou ancestrais. E acrescenta: - A apresentação desses fatos, por si mesma, estabelece as bases para um estudo e interpretação da concepção ontológica que os fundamenta. Pena que não teremos espaço para acompanhar minuciosamente, passo a passo, as descobertas feitas por Mircea Eliade – e recomendo que você, querendo fazer isso, busque seus livros, que são relativamente fáceis de achar.

Uroboros: A serpente metafisica que devora a própria cauda, símbolo do Eterno Retorno

Mas há coisas essenciais, que não podemos deixar de citar. E uma delas é quando ele nos aponta um caminho para entendermos que O Eterno retorno, para o homem primitivo, contém a promessa da restauração do Paraíso Perdido – em todas as culturas e durante todos os tempos antigos.

O Retorno Cíclico de Platão Eliade: - O mito do paraíso primordial, evocado por Platão, e que conseguimos discernir nas crenças indianas, era conhecido dos hebreus - por exemplo, o Illud Tempus messiânico em Isaías 11,6, 8 e 65,25 - assim como dos iranianos no Dênkart, VII, 9, 3-5 - e das tradições greco-latinas. Além do mais, combina perfeitamente com a concepção arcaica – e talvez até universal - do Princípio Paradisíaco, que encontramos em todas as avaliações do Illud Tempus primordial. Não se pode considerar de modo algum assombroso o fato de Platão reproduzir essas visões tradicionais nos diálogos que datam de sua velhice - a evolução de seu próprio pensamento filosófico o obrigou a redescobrir as categorias mitológicas. A memória da Idade de Ouro sob Cronos, sem dúvida alguma estava disponível para ele na tradição grega. E além dessa referência a Platão, ele cita o próprio Platão dando a sua versão do Eterno Retorno, que ele chama de Retorno Cíclico. Ele, Eliade, diz: - Vamos considerar a interpretação de Platão sobre o mito do retorno cíclico, mais especialmente no texto fundamental, que ocorre no Político. Platão encontra a causa da regressão cósmica e das catástrofes cósmicas num duplo movimento do Universo, e nos fala delas assim: - ...deste nosso Universo, a divindade ora orienta inteiramente sua revolução circular, ora o abandona a si próprio, uma vez que suas revoluções tenham alcançado a duração que combina com este Universo - e ele então começa a girar na direção oposta, com seus próprios movimentos... Esta mudança de direção é acompanhada de gigantescos cataclismos: a maior destruição ocorreu tanto entre os animais em geral como no seio da raça humana, da qual, como seria de esperar, só restavam alguns

poucos representantes. Mas essa catástrofe foi seguida de uma paradoxal regeneração. Os homens começaram a ficar jovens de novo: os cabelos brancos da idade escureceram, enquanto aqueles que estavam na puberdade começaram a diminuir de estatura dia a dia, até voltarem ao tamanho dos bebês recém-nascidos - então, finalmente, ainda continuando a definhar, eles deixaram de existir por completo. Os corpos daqueles que morreram nesse momento desapareceram completamente, sem deixar qualquer sinal, depois de alguns dias. Foi então que nasceu a raça dos Filhos da Terra - Gegeneis, cuja memória foi preservada por nossos ancestrais. Durante essa era de Cronos, não existiam animais selvagens nem inimizade entre os animais. Os homens daqueles dias não tinham mulheres nem filhos: Ao se erguerem da terra, todos eles voltaram a viver, sem conservar qualquer lembrança de sua antiga condição de vida. As árvores lhes davam frutos em abundância, e elesdormiam sem roupa, sobre o chão, porque todas as estações tinham bom clima. No Retorno de tudo, segundo Platão, porém, não há menção à versão dos Vedas sobre o chamado Sonho de Brahma. Segundo eles, Brahma quando dorme sonha o Universo, que passa a existir – quando desperta, todo o Universo se desfaz. A mesma sequência se repete. Depois de se passarem um número infinito de Kalpas. E sabe quanto dura cada Kalpa – um tempo infinito. Faça as contas. Bem, basta de citações. A página vai acabando e só há espaço para ainda uma observação: E se as coisas se passassem como descreve Platão? - Ao se erguerem da terra, todos eles voltaram a viver, sem conservar qualquer lembrança de sua antiga condição de vida. As árvores lhes davam frutos em abundância, e eles dormiam sem roupa, sobre o chão, porque todas as estações tinham bom clima. Isso faria com que muitos que disseram – Não, à pergunta – Você gostaria que sua vida se repetisse – passassem a dizer um entusiasmado – Sim?


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