Sim 71 Cinderela chinesa

Page 1

BELÉM, DOMINGO, 19 DE OUTUBRO DE 2014

OLIBERAL

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Cinderela romântica

Cinderela chinesa

A verdade não está em um só sonho, mas em muitos sonhos. De AS MIL E UMA NOITES

O

milenar pensamento chinês se assemelha a um Diálogo entre o Céu e a Terra, em busca da Harmonia, através do Humano obediente aos Princípios Cósmicos que regem toda a Vida, das Estrelas às Formigas: oscilando entre a Metafísica de Lao Tsé e o Pragmatismo de Kung Fu Tsé, que o Ocidente chama de Confúcio – isto é: entre o Tao, que nos diz no Tao Te Ching, em delírio:

Há algo indefinido e perfeito antes de nascerem o céu e a terra e o Confucionismo, que nos diz, nos Analectos, sisudamente:

Um homem apropriado para ser o parceiro de alguém nos estudos não é, necessariamente, apropriado como parceiro na busca pelo Caminho. Dessa oscilação entre o sonho de existir e o existir desperto, nasceu uma cultura única no mundo, de elevada sabedoria e sensibilidade. Não é por acaso que a versão chinesa de Cinderela, de Tuan Ch’eng-shih, do século IX, na qual ela se chama Yeh Hsien - não menos fantástica, embora sem abóbora se transformando em carruagem - seja a primeira das muitas variações que esse sonho inspirou a outros autores, ao longo dos séculos. R. D. Jamenson, estudioso da literatura chinesa, diz: - O que nos fere nessa versão chinesa é que ela contém elementos de todas as duas tradições, a eslava e a alemã, na primeira das quais um animal amigo é o motivo principal e onde, na segunda, a perda do sapatinho num baile é o fato mais importante. A madrasta cruel e as filhas são comuns a ambas. Lin Yutang, tradutor do original chinês para o inglês, de onde resultou esta tradução para o português, diz em seu prefácio: - A história foi contada a Tuan Ch’eng-shih por um velho servo da família que provinha de Yungchow, a atual Nanning, em Kwangsei, e que descendia dos povos das cavernas daquele distrito. No Ocidente, foi Charles Perraut quem

tornou famosa a história de Cinderela, no século XVII, com sua versão, após a mais antiga versão ocidental: de Des Perriers em seu Nouvelles Récréations et Iojeux Devis, Lion, 1558. Perrault se tornou conhecido como o Pai da Literatura Infantil por ter sido o primeiro no Ocidente a tratar como verdadeira Literatura os Contos de Fada, quando publicou, em 1697, Histórias ou contos do tempo passado com moralidades, mais conhecido pelo subtítulo: Contos da mamãe gansa. O que, embora a grande beleza dos Contos de Fada do dinamarquês Hans Christian Andersen, parece bem justo, pela quantidade e qualidade da sua obra, que as crianças do mundo inteiro conhecem, se não de livros, pelo menos de filmes e HQ: Chapeuzinho Vermelho/Le Petit Chaperon rouge, A Bela Adormecida/ La Belle au bois dormant, O Gato de Botas/Le Maître chat ou le Chat botté, Cinderela/Cendrillon ou la petite pantoufle de verre, Barba Azul/La Barbe bleue, Pele de Asno/Peau d’Âne e O Pequeno Polegar/Le Petit Poucet. É Yeh Hsien, a Cinderela chinesa, que a página Sim de hoje traz para você. Coisa rara, aproveite.

Yeh Hsien: a Cinderela chinesa Tuan Ch’eng-shih Certa vez, antes de Ch’in (222-206 AC) e Han, havia um chefe das cavernas da montanha a quem os nativos chamavam chefe Wu. Ele se casou com duas mulheres uma das quais morreu lhe deixando uma menina chamada Yeh Hsien. Essa menina era muito inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai a amava ternamente, mas, quando ele morreu, se viu maltratada pela madrasta que sempre a forçava a cortar lenha e a mandava a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos. Um dia, Yeh Hsien pescou um peixe com mais de duas polegadas de comprimento e que tinha as barbatanas vermelhas e os olhos dourados. Trouxe-o para casa e o pôs numa vasilha com água. Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a vasilha não lhe serviu mais e a menina o soltou numa lagoa que havia por trás de sua casa. Yeh Hsien costumava ali-

perimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma conseguisse calçá-lo. O rei, então, suspeitou que o homem que tinha levado o sapato o tivesse obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo. Mas o pobre infeliz nada pôde dizer sobre a procedência do sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado.

Cinderela samurai mentá-lo com as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se alguém se aproximasse não aparecia. Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse à enteada: - Não está cansada de trabalhar? Quero lhe dar uma roupa nova. Em seguida fez Yeh Hsien tirar a roupa que vestia e mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A velha, então, pôs o vestido de Yeh Hsien e estendeu uma faca afiada na manga da blusa, se dirigiu para a lagoa e chamou o peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora d’água, ela o matou. Por essa ocasião, o animalzinho já media mais de dez pés de comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes melhor do que qualquer outro. E a madrasta enterrou seus ossos num monturo. No dia seguinte, Yeh Hsien voltou e ao se aproximar da lagoa viu que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida no meio do mato e nisso um homem de cabelo desgrenhado e coberto de andrajos desceu dos céus e a consolou, dizendo: - Não chore. Sua mãe matou o peixe e enterrou os ossos num monturo. Vá para casa, leve os ossos para seu quarto e os esconda. Tudo o que você quiser peça que lhe será concedido. Yeh Hsien seguiu o conselho e pouco tempo depois tinha uma porção

de ouro, de joias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o coração de qualquer donzela. Na noite de uma festa tradicional chinesa, Yeh Hsien recebeu ordens de ficar em casa para tomar conta do pomar. Quando a jovem solitária viu que a mãe já ia longe, se meteu num vestido de seda verde e a seguiu até o local da festa. A irmã, que a reconhecera, virou-se para a mãe dizendo: - Não acha aquela jovem estranhamente parecida com minha irmã mais velha? A mãe também teve a impressão de reconhecê-la. Quando Yeh Hsien percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu um dos sapatinhos, que foi cair nas mãos dos populares. Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com os braços ao redor de uma árvore - assim pôs de lado qualquer pensamento que pudesse ter sido acerca da identidade da jovem ricamente vestida. Ora, perto das cavernas, havia um reino insular chamado T’o Huan. Por intermédio de forte exército governava duas vezes doze ilhas e suas águas territoriais cobriam vários milhares de li. O povo vendeu, portanto, o sapatinho para o Reino T’o Huan, onde foi parar nas mãos do rei. O rei fez as suas mulheres experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada menor que os pés das que tinham os menores pés. Depois fez com que o ex-

A casa foi encontrada, e também Yeh Hsien. Fizeram-na calçar os sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal como uma deusa. Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Yeh Hsien para seu palácio na ilha juntamente com os ossos do peixe. Assim que Yeh Hsien foi levada, a mãe e a irmã foram mortas a pedradas. Os populares se apiedaram delas, sepultando-as num buraco e erigindo um túmulo a que se deu o nome de Túmulo das Arrependidas. Passaram a reverenciá-las como espíritos casamenteiros e sempre que alguém lhes pedia uma graça no sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha certeza de que sua prece era atendida. O rei voltou à sua ilha e fez de Yeh Hsien sua primeira esposa. Mas durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu aos ossos do peixe tantos jades e coisas preciosas que eles se recusaram a conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou os ossos e os enterrou bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas e uma porção de ouro. Quando seus soldados se rebelaram contra ele, foi ter ao lugar em que enterrara os ossos, mas a maré os levara e nunca mais foram encontrados até hoje. Essa história me foi contada por um velho servo de minha família, Li Shih-yüan. Ele descendia de um povo chamado Yungchow e sabia de muitas histórias estranhas do sul.

Tradução original: Lin Yutang


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.