BELÉM, DOMINGO, 26 DE OUTUBRO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
A China está perto
Sem sair de casa se conhece o mundo Sem espiar pela janela se vê o curso do céu LAO TSÉ/Tao Te King
V
ocê concorda que para conhecer uma pessoa o caminho mais rápido e revelador pode ser conhecer os sonhos que ela deseja realizar? Não é um método infalível, mas ajuda bastante. E um país: além de viajar e passar um tempo vivendo lá, o que mais se pode fazer para conhecer melhor um povo pelo caminho mais curto? Conhecendo a sua História? Sim, mas não apenas. Minha experiência me mostrou que isso pode ser feito conhecendo, também, a sua Imaginação, o seu mundo imaginário – que, como representações refletidas em sua Cultura, nos desvelam esse povo através de sua Literatura, Pintura, Teatro, Música, Cinema – enfim: através das suas Artes. Podemos fazer isso com qualquer país? E por que não com a China – da qual todos falam, sobretudo no mundo dos negócios internacionais, mas, no fundo, quase ninguém no Ocidente conhece de fato? Nesta Sim de hoje, após a Cinderela chinesa, do século IX DC, mostrada aqui na semana passada – voltamos à China para conhecer, nos aprofundando em seu mundo imaginário - através dos seus Escritores – o que é esse Povo, esse País, que após milênios voltados para si, agora, economicamente, se abre e avança cada vez mais para o mundo. Assustando a frágil economia ocidental, com seus mais de 1,36 bilhão de habitantes – quase um1/5 da população mundial – e seus 9,6 milhões de quilômetros quadrados de território - um gigante em população, e também geográfico – o maior país da Ásia Oriental. Por exemplo: poucos sabem que, por volta de 1484, ainda no século anterior ao das grandes navegações europeias de conquista de territórios e massacres de outras culturas – Astecas, Maias, Tupis e Guaranis, e tantas outras, a China já havia construído uma imensa frota naval e feito a primeira viagem de circunavegação da História da Humanidade. Consta que, nesse seu primeiro se abrir, para fazer um reconhecimento do mundo exterior, os chineses fizeram um completo mapeamento dos mares, registrando terras ainda desconhecidas. Mas a China, ao contrário dos conquistadores europeus, retornou ao seu território e se fechou novamente em si. E quem usou os mapas chineses foram os países ocidentais: sobretudo Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Holanda. O que quase todo mundo sabe é
que a China, a partir de 1949, com sua Revolução, transformada por Mao em Revolução Cultural, já havia estremecido politicamente o mundo nos anos 60. Com evidentes efeitos sobre os jovens, que, muitos com O Livro Vermelho de Mao nas mãos, em 1968, incendiaram a Europa exigindo a libertação e transformação total da Vida Humana na Terra – e foram reprimidos a ferro e fogo por todos os governos, em todos os países. Foi o tempo do É Proibido Proibir. Não apenas na Europa, também na América Latina, em que a insatisfação era uma reação frontal às Ditaduras implantadas no continente com a participação dos Estados Unidos. Devo a um desses jovens, o rebelde cineasta italiano Marco Belloccio, e ao seu filme de 1967, La Cina è vicina/A China está perto - o título desta página.
Contos Chineses O Homem que vendia fantasmas Do “Soushenchi”, século IV
Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com um fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era um fantasma. - “Quem é você?”, perguntou por sua vez o fantasma. Tingpo mentiu e respondeu: - “Eu também sou um fantasma.” O fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou - “Estou a caminho para a cidade de Wanshih.” - “Também vou para lá,” afirmou a aparição. Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, o fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. - “Ótima ideia,” achou Tingpo. O fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse: - “Você é pesado demais para um fantasma. Tem certeza de que é um fantasma mesmo?” Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar o fantasma, mas esse era tão leve que tinha a impressão de não estar carregando nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou ao companheiro qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. - “Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana”, afirmou o fantasma. Assim foram andando, andando até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que o fantasma fosse adiante e observou que ele não fazia barulho algum ao nadar, mas quando ele entrou na água o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. Tingpo explicou novamente: - “Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar a correnteza.” No
momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar o fantasma nas costas apertando-o fortemente. O fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para se soltar, porém Tingpo o apertou com mais força ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e o fantasma se transformou em um bode. Tingpo cuspiu no animal a fim de que não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos dinheiros e foi para casa. Eis a razão do ditado de Shih Tsung: “Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos dinheiros.”
É maravilhoso ficar bêbado
Do “Soushenchi”, século IV Ti Hsi era um nativo de Chungshan e sabia fazer “vinho de mil dias”, capaz de manter um homem bêbedo durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Hsüan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Ti Hsi e pediulhe um gole, Ti Hsi respondeu - “Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo a você.” - “Quero prová-lo assim mesmo”, disse Hsüan. Ti Hsi não pôde dizer “não” e deu- lhe um copo. - “É delicioso,” observou Hsüan, “quero outro copo.” - “Deve ir para casa agora,” replicou
Ti Hsi. “Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias.” Hsüan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e o enterrou. Após três anos, Ti Hsi disse consigo mesmo: - “Hsüan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo.” Quando chegou à casa de Hsüan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse: - “Morreu há muito. Até já tiramos o luto.” Ti Hsi ficou aflito e disse: - “O que! foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo.” Deu, então, ordens para que a família de Hsüan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem “morto” abrir os olhos, bocejar e dizer - “Oh! como é delicioso ficar bêbedo!” Depois perguntou a Ti Hsi “Que vinho é esse que você faz? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?” As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos caíram bêbedos por três meses.
É bom não ter cabeça
Do “Luyichi”, século IX No tempo de Han Wuti (140-87 AC), Chia Yung de Ts’angwu servia como magistrado em Yüchang. Um dia saiu para dar combate a bandidos. Foi ferido e teve a cabeça decepada. Mesmo assim, o corpo montou a cavalo e voltou ao campo. Os soldados, e o povo que ali estava, ficaram admirados e Yung falou pelo peito: “Fui derrotado pelos bandidos e eles me cortaram a cabeça. Digam-me francamente se é melhor ter cabeça ou ficar sem cabeça?” Os homens lamentaram-no e disseram - “É melhor ter cabeça.” E Yung replicou: - “Não penso assim. Andar sem cabeça também é bom.”
A Coruja e a Codorna De Liu Hsiang
Uma coruja em viagem encontrou com uma codorna, e esta perguntou: “Para onde você vai, coruja”? A coruja lhe respondeu: “Vou para Oeste, pois as pessoas da aldeia reclamam muito do meu piado”. Disse-lhe então a Codorna: “Aceite uma sugestão: mude o seu pio, ou vão te odiar onde você for”.
O cego e o sol
De Su Tungp’o Era uma vez um cego de nascença. Nunca tinha visto o sol e perguntava como ele era para as pessoas. Alguém lhe disse: “É como uma bandeja de latão”, e quando o cego, um dia, deu com uma bandeja pendurada, ouviu o som de metal e guardou-lhe como recordação do sol. Um dia, porém, tocaram sinos de bronze e o cego pensou que era o sol. Até que alguém lhe disse: “A luz do sol, na verdade, é como uma vela”. Um dia, o cego apalpou a vela e pensou que esta era a forma do sol. Assim, um dia encontrou um pedaço de bambu no chão e pensou tratar-se do sol. O sol é muito diferente do sino ou do bambu, mas o cego não pode ver isso porque nunca viu o sol. O Tao - o Caminho - é mais difícil de ver do eu que o sol, e por isso os homens são como o cego. Ainda que vocês façam comparações, exemplos e tratados, o Tao será como o sol para o cego, parecido com uma bandeja, com um sino ou um bambu. Sempre imaginaremos uma coisa, esquecendo de outra. Assim, os homens se afastam cada vez mais da verdade, dando lhe aparências através de nomes. Todos estes enganos são tentativas de compreender o Tao. Traduções do original chinês: Lin Yutang